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Estado de Minas

Filósofo diz que descrer da ciência é prejudicial à sociedade

Professor especialista em Ceticismo aponta ambiente 'anti-iluminista' que menospreza a razão como fator de desconfiança no conhecimento científico


postado em 17/05/2020 04:00 / atualizado em 16/05/2020 23:18

Médica da província chinesa de Jilin se despede de enfermeiros do hospital de Wuhan com quem trabalhou, no aeroporto de Tianhen, no último dia 8 de abril, quando os profissionais de saúde foram autorizados a retornar para suas cidades. A %u201Ccapacidade de simpatia%u201D, conceito de David Hume, é um aspecto fundamental para lidar com a crise sanitária, segundo o filósofo mineiro Bruno Pettersen(foto: Hector Retamal/AFP )
Médica da província chinesa de Jilin se despede de enfermeiros do hospital de Wuhan com quem trabalhou, no aeroporto de Tianhen, no último dia 8 de abril, quando os profissionais de saúde foram autorizados a retornar para suas cidades. A %u201Ccapacidade de simpatia%u201D, conceito de David Hume, é um aspecto fundamental para lidar com a crise sanitária, segundo o filósofo mineiro Bruno Pettersen (foto: Hector Retamal/AFP )

"Notamos essa característica de as pessoas acharem que a opinião delas vale tanto quanto a de alguém que estudou aquilo profundamente. É uma ideia de que não existe verdade. Cada um fala o que quiser, um relativismo exacerbado e extremamente perigoso, porque, dessa forma, nada pode ser debatido, já que o que vale é a posição de cada um. Isso é prejudicial para a sociedade"

Bruno Pettersen, filósofo

Entre muitos aspectos inusitados oriundos da pandemia do novo coronavírus, chamam a atenção os embates envolvendo a confiança (ou não) da sociedade na ciência. Enquanto o combate ao vírus mortal depende dos avanços e da eficiência das pesquisas para a elaboração de vacinas ou tratamentos eficazes contra a microscópica e contagiosa ameaça, muitas pessoas, incluindo governantes, divergem das conclusões e orientações dos especialistas sobre o tema.

Em pleno século 21, a desconfiança sobre o que é atestado por quem dedicou a vida ao estudo de um assunto específico alimenta polêmicas e resgata ideias de filósofos que viveram há mais de 300 anos, quando o Iluminismo transpunha as trevas e a fogueira.

O escocês David Hume (1711-1776) é reconhecido como um dos principais pensadores do Empirismo e do Ceticismo. Suas ideias colaboraram para a afirmação da experimentação como o caminho para o conhecimento. Estudioso de sua obra e especialista em Ceticismo, o professor Bruno Pettersen, da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, aponta que, concomitantemente à pandemia, vivemos um período chamado por alguns autores de “anti-iluminismo”, marcado pela desistência da razão.

“Notamos essa característica de as pessoas acharem que a opinião delas vale tanto quanto a de alguém que estudou aquilo profundamente. É uma ideia de que não existe verdade. Cada um fala o que quiser, um relativismo exacerbado e extremamente perigoso, porque, dessa forma, nada pode ser debatido, já que o que vale é a posição de cada um. Isso é prejudicial para a sociedade”, afirma o professor.

Com base nas teorias filosóficas, ele exemplifica o problema. “Da forma que eu vejo, a ciência não é a verdade final sobre tudo. Nenhuma ferramenta humana é a verdade final sobre qualquer conhecimento. Mas a ciência está baseada na ideia de que qualquer afirmação feita tem que ter duas características básicas. Uma delas é que qualquer teoria só será justificada se tiver evidência. Pode ser experimental, matemática, mas isso distingue a ciência da mera opinião. É o primeiro e principal fundamento científico. Outra característica, baseada em Karl Popper (1902-1994), estabelece que qualquer hipótese deve ser falseável ou refutável. Ou seja, qualquer ideia em ciência pode ser refutada, desde que tenha também outra evidência para refutar. Não posso basear uma teoria científica simplesmente na minha opinião”, afirma.

Para esclarecer por que identifica a emergência de uma descrença na ciência, Pettersen exemplifica que “vemos agora uma situação em que qualquer pessoa diz que um remédio x ou y é adequado para uma doença, porque uma tia falou, um conhecido disse que usou. Qual a evidência? A eficácia e indicação de um remédio são atestadas depois de longos procedimentos em pares, grupos, comprovações complexas”.

RECUSA 
Para o filósofo mineiro, “muito da recusa da ciência nos nossos tempos tem a ver com essa dificuldade das pessoas de entender que tudo em ciência pode, sim, ser questionado, desde que haja outra evidência científica”.

Ele lembra que, “no Ceticismo, o cético em ciência é alguém que está aberto às respostas, ao conhecimento. Se tivéssemos claro como fundamento científico a ideia inicial de que tudo precisa de evidência, que qualquer crença precisa de prova para se compartilhar, teríamos uma posição mais confortável hoje. Negar a ciência não é cético, mas sim achar que já se sabe a resposta. Cientistas precisam ser céticos para encontrar novas respostas, mas sempre com base em evidências científicas. Sem elas, nada feito”.

Num momento em que a humanidade se encontra combalida pela pandemia que matou quase 300 mil pessoas no mundo e tem número diário de vítimas ainda crescente no Brasil, a negação dos princípios de compreensão da ciência pode levar a consequências mais graves.

Recessão
 Para o especialista em Hume, é difícil prever mudanças comportamentais derivadas dessa experiência, mas alguns aspectos já ficaram claros com a crise sanitária. “Fica evidente que estamos num sistema econômico profundamente perigoso, que no primeiro sinal de paralisia entra em uma recessão global absurda. Além disso, não sou exatamente otimista quanto à melhora das relações da população com o conhecimento científico. A ciência mostrou qual é a gravidade do dano provocado por essa situação, mas não acho que isso fará com que se confie mais nela.”

O professor observa que o vocabulário científico ainda é pouco compreensível para muita gente e cita o biólogo Atila Iamarino como um bom exemplo. “Ele faz um bom trabalho, de mostrar pesquisas e explicações em uma linguagem acessível, para que mais pessoas entendam, mas, em vez de gerar engajamento, gera repulsa. Há questionamentos sobre a capacidade dos cientistas para resolver os problemas atuais. É um momento em que, em vez de se apoiar as hipóteses científicas para salvar mais vidas, prefere-se matar o mensageiro a matar a mensagem”, lamenta Pettersen.

Ele acredita que a construção de um futuro mais equilibrado, pós pandemia e quarentena, passa pela educação. “Teremos mudanças, algumas virão pelos governos e autoridades, sejam elas o uso obrigatório de máscaras, limite de pessoas nos lugares, mas as relações humanas só se alteram de fato por duas ferramentas. Uma é a educação. Será mais necessário que antes pensar em que tipo de cidadão queremos formar. Se queremos uma mudança que não seja motivada pelo instinto de reação, será preciso formar pessoas capazes de resolver problemas pragmáticos dentro da tecnologia e capazes de instruir outras pessoas. Através da ciência, das artes, da filosofia, de uma formação ampla, acreditar no espírito iluminista e nos tornar melhores através da educação. Outro ponto é uma decisão racional, de não supor que um governo, ou o estado, irá resolver os problemas, se não for guiado pela racionalidade e pela lei”, afirma.

Além disso, Pettersen retorna às ideias de Hume para lembrar de outro aspecto que considera decisivo no atual contexto. “Há um debate hoje sobre empatia. Hume chama de ‘capacidade de simpatia’, mas seria a mesma coisa. Vale para todos, é a compreensão do outro. Apesar de ser um momento em que estamos em casa, é um momento da radicalidade do outro. Estamos em casa para preservar nossa vida e a vida do outro. Nossa vida não pode ser egoísta, baseada só nas nossas vontades, mas fundamentada na compreensão do outro, para respeitar e cuidar do outro. Hume diz que nossa empatia tem um elemento natural. Se vemos alguém rindo, rimos. Se vemos alguém chorando, entristecemos. Se estamos em contato com alguém em dificuldades, sofremos junto. Então, quando tudo está distante, quando só vemos os números, é difícil, mas quando vemos histórias, com nomes, rostos, esse reconhecimento acontece. Basta olhar pela janela. É um momento de fortalecer essa empatia natural, de uma sociedade que se reconhece no outro.”




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