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Estado de Minas ENVELHECER

Envelhecimento: lições de sabedoria e experiência de vida

Carregar o peso dos anos. Os idosos encontram na sociedade estigma e preconceito, apesar de um movimento forte para respeitar o caminho trilhado por eles


01/05/2022 08:40 - atualizado 01/05/2022 08:50

Ilustração
Viver é preciso, envelhecer também é preciso. Os mais velhos têm muito a ensinar. É uma existência inteira de experiências acumuladas. Muito mais do que a busca por uma eterna juventude, chegar às idades mais avançadas é sinal de um caminho bem trilhado.

Afinal, uma das únicas certezas que se têm é que, envelhecendo, e com qualidade, a vida é bem vivida. Por outro lado, a pandemia evidenciou uma face cruel dessa moeda.
 
Os idosos ficaram mais vulneráveis nesse período, psicológica e socialmente. Por ser do grupo de risco, essa parte da população sofreu impacto na saúde mental ao se ver mais solitária e sem interação social ou contato com parentes e amigos.
 

Nós queremos protegê-los e acabamos cerceando sua liberdade, sua autonomia. Isso é velhofobia. O preconceito que existe dentro de nós mesmos

Mirian Goldenberg, antropóloga

 
 
Na outra ponta, pessoas que encontraram formas criativas de se adaptar a essa realidade. É por onde ruma o trabalho da antropóloga Mirian Goldenberg, que acompanhou diariamente cerca de 20 nonagenários que tiveram dificuldades no início da crise com o coronavírus.

O estudo faz parte de seus mais novo livro, “A invenção de uma bela velhice”, pela editora Record, e também está na obra “Liberdade, felicidade e foda-se!”, da editora Planeta. "A velhofobia se tornou uma realidade cruel ainda maior nessa pandemia", diz a pesquisadora.
 
O que se observa, em muitas situações, cita a antropóloga, são discursos sórdidos, recheados de estigmas, preconceitos e violências contra os mais velhos. "Vamos todos nos contaminar para criar imunidade e essa epidemia acabar logo. Só irão morrer alguns velhinhos doentes." "Deixem os jovens trabalharem. Não vamos parar a economia para salvar a vida de velhinhos". "Só velhinhos irão morrer, eles iriam morrer mesmo, mais cedo ou mais tarde." Foi o que muito se escutou do princípio da pandemia para cá.
 
E esse tipo de discurso revela uma situação dramática que já existia antes da crise sanitária, pontua Mirian. "Os velhos são considerados inúteis, desnecessários e invisíveis. Homens e mulheres mais velhos, que já experimentam uma espécie de morte simbólica, ficam desesperados ao constatar que são considerados um peso para a sociedade", ressalta.
 
No entanto, continua, a forte reação contra esses sociopatas prova que os mais velhos são muito valiosos e importantes para os brasileiros. "Fazemos tudo o que for necessário para demonstrar que os nossos velhos não são um peso, muito pelo contrário. São eles que estão nos ajudando a encontrar força e coragem para sobreviver física e mentalmente. São eles que estão nos ensinando a ser pessoas mais amorosas e generosas. São eles que estão cuidando de nós, como fizeram durante toda a vida", acrescenta Mirian.
 
Ela lembra que muitos dos que disseminam o discurso de ódio e de extermínio dos mais velhos já passaram dos 60 anos. E é urgente que aprendam uma lição importante: a única categoria social que une todo mundo é o ser velho. A criança e o jovem de hoje serão os velhos de amanhã.

"Os velhofóbicos estão construindo o seu próprio destino como velhos, e também o destino dos seus filhos e netos: os velhos de amanhã. Será que esses genocidas serão tão amados e protegidos como são os nossos velhos ou serão tratados como 'velhinhos descartáveis'?", questiona.

VIOLÊNCIA


Existem vários nomes para falar da violência, do preconceito, dos estigmas, das rotulações e abusos que existem contra os idosos, continua a antropóloga. "Eu falo velhofobia, mas não importa o nome. Digo assim porque todo mundo entende esse pânico de envelhecer, esse preconceito, essa violência contra os mais velhos. Não só na sociedade em geral. Acontece dentro das nossas casas", salienta.

Mirian Goldenberg, antropóloga
Em novo livro "A invenção de uma bela velhice", antropóloga Mirian Goldenberga diz que a velhofobia se tornou uma realidade cruel ainda maior nessa pandemia (foto: Wallace Cardia/Divulgação)
 
Muitas vezes, no intuito mesmo de proteger e de cuidar dos idosos, as pessoas ali envolvidas acabam não permitindo que sejam autônomos, independentes, mesmo quando estão lúcidos e saudáveis. "Nós queremos protegê-los e acabamos cerceando sua liberdade, sua autonomia. Isso é velhofobia. O preconceito que existe dentro de nós mesmos."
 
E quando se fica velho? Essa é a pergunta. Citando os participantes de sua pesquisa, Mirian diz que muitos, ainda com quase 100 anos, não se consideram velhos e nem gostam dessa categoria. "Ao mesmo tempo, eu sempre digo também que sou velha, porque ser velha é lindo."
 
É um conceito que muda muito conforme o contexto social e cultural. No Brasil, exemplifica a pesquisadora, desde cedo as mulheres já começam a se sentir velhas, descartáveis, invisíveis. "De um lado, uma questão mais objetiva sobre a cultura em que estamos inseridos, uma cultura que valoriza a juventude, e por outro lado questões subjetivas: nunca deixamos de ser a criança que um dia fomos, então nunca nos tornamos velhos", analisa a antropóloga.
 
"Culturalmente, ficamos velhos muito cedo no Brasil, principalmente as mulheres. Com 30 anos, minhas pesquisadas já estão em pânico com as rugas, cabelos brancos, dificuldade para emagrecer. Começam a ter medo de não casar e não ter filhos. Ficamos velhos no Brasil porque o pânico de envelhecer é enorme. Em outras culturas não é assim", acrescenta.

Nas gerações anteriores, enfim, envelhecer não era uma realidade assim tão possível. Era muito comum a vida cessar aos 60 anos ou até menos. "O que era envelhecer na época dos meus pais e avós se pouquíssimas pessoas chegavam aos 60? Hoje, chegamos até os 100. Não posso dizer se atualmente é mais fácil ou mais difícil envelhecer. O que posso dizer, e o que minhas pesquisas mostram, é que as pessoas querem viver muito mais e viver bem, com qualidade, saúde e dinheiro suficiente. O que mudou é que hoje temos essa possibilidade de envelhecer, o que nas antigas gerações era menos provável", avalia.
 
A antropóloga não fica à vontade em considerar o conceito de uma eterna juventude – justamente porque, em sua opinião, a juventude não é um valor. Muito do que constata em suas pesquisas é um envelhecer com propósito, com apoio, amizade, amor, aprendizado, a adaptação a cada fase da vida, absorvendo sempre as coisas novas.

"Acredito que o mais importante é ter uma vida com significado, e isso sim é possível. E não associo isso com a juventude, nem acho que a questão é preservar a juventude. A questão é preservar, manter e talvez até desabrochar com mais verdade, mais liberdade e com mais felicidade ao longo da vida", diz.
 
Para Mirian, ser jovem não é melhor do que ser velho. Todos são velhos, hoje ou amanhã. "Falar de ser eternamente jovem é alimentar a ideia de que a juventude é melhor do que a velhice, mais bela, mais produtiva, mais rica. Acho exatamente o contrário: só acreditando que todos são velhos, inclusive os jovens, iremos mudar a nossa representação sobre a velhice. Então, em vez de eterna juventude, não seria melhor falar de eterna velhice?", sugere.

FORMAS DE SE ADAPTAR


A pesquisadora afirma que a grande maioria dos idosos sofreu e ainda está sofrendo violência física, verbal, psicológica, abuso financeiro e xingamentos com a quarentena. Em seu estudo mais recente, Mirian acompanhou o cotidiano de várias famílias com integrantes com mais de 60 anos, principalmente com mais de 90, e pôde ver que vivenciar o isolamento imposto pela pandemia, em si, foi complicado. Principalmente porque os mais velhos valorizam a autonomia, a liberdade, o estar em movimento, o sentimento de ser úteis, produtivos, ativos.
 
"Acompanhei diariamente nonagenários que tiveram muita dificuldade no início da pandemia. Agora, estão buscando formas criativas de se adaptar à nova realidade. Eles se sentem úteis, importantes e fazendo algo de significativo, mesmo dentro de suas casas", comenta.
 
Para eles, o isolamento foi difícil, diz a estudiosa. Mas muitos tiveram coragem, força, energia e saúde para se adaptar a essa nova rotina. Mesmo a distância, conectaram-se a amigos, familiares, e uma grande rede de apoio se formou. "Isso fez bem para os idosos e também para os mais jovens. Mas continua sendo difícil, porque a pandemia não acabou", conta a pesquisadora.
 
É tempo de compreender as angústias e os sofrimentos que ainda estão passando, prisioneiros da situação trágica que a COVID-19 ocasionou. E, nesse ponto, Mirian percebe que os desequilíbrios quanto à saúde mental foram tão significativos quanto os desconfortos físicos. "Eles continuam sem poder voltar para a vida como tinham antes. O que fiz foi me conectar com eles", relata.
 
Na experiência da pesquisa, juntos a antropóloga e os participantes encontraram maneiras de superar tantos obstáculos fazendo atividades como leitura, música, como cantar e tocar piano, exercícios de memória, de palavras, anagramas, rodas de conversa.

"É essencial que eles saibam que não estão sozinhos, que podem confiar no nosso amor, que não estamos aqui para dar ordens ou xingá-los de 'velho difícil' ou 'velho teimoso', como muita gente faz. Ter a sensação de que são importantes, foi e é fundamental para que tenham uma vida melhor. Não uma velhice melhor, mas uma vida melhor", diz Mirian, que é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de mais de 30 livros sobre o tema.
 
Ela também observa que homens e mulheres vivenciam o envelhecimento de maneiras distintas. "As mulheres sofrem com a invisibilidade social, com a falta de liberdade, a decadência do corpo, e os homens sofrem, e muito, com a aposentadoria, com a sensação de dependência e inutilidade, com a impotência física, sexual e social", pontua.

Nessa análise, outra constatação é que as mulheres expressam mais o seu sofrimento, lidam com os próprios medos, inseguranças e vergonhas mais abertamente, enquanto os homens sofrem mais calados, muitas vezes porque a sociedade impôs assim. "Tanto sofrem que morrem mais cedo. Manifestam alcoolismo, depressão, e sobre isso quase não se fala na sociedade brasileira."
 
 


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