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Estado de Minas COMPORTAMENTO

De válvula de escape a vício

Em meio à pandemia de COVID-19, o isolamento social e o medo de contaminação fizeram com que emoções fossem ''descontadas'' em hábitos, criando dependência


06/06/2021 04:00 - atualizado 06/06/2021 08:44

 Lívia Salomé, especialista em clínica médica e vice-presidente da Regional Minas Gerais do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida (CBMEV)(foto: Jane Magalhães/Divulgação)
Lívia Salomé, especialista em clínica médica e vice-presidente da Regional Minas Gerais do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida (CBMEV) (foto: Jane Magalhães/Divulgação)

Em meio à pandemia, quase todo mundo desenvolveu alguma mania ou hábito, a fim de amenizar o cenário catastrófico da saúde púbica, a distância de amigos e familiares e o medo constante de contaminação pelo novo coronavírus ou de perder alguém para a COVID-19. No entanto, para além de pequenos hábitos, há quem desenvolveu válvulas de escape profundas durante o isolamento social. Aos poucos, esses “desestressores” se tornaram companhias diárias e, posteriormente, vício e dependência.

Não à toa, segundo pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em agosto do ano passado, cerca de 35% dos mais de 44 mil brasileiros entrevistados que já eram fumantes passaram a consumir mais cigarros por dia desde o início da quarentena. Entre eles, 6,4% aumentaram em até cinco cigarros, 22,8% somaram mais de 10 por dia, e 5,1%, elevaram o consumo de cigarros em 20 ou mais. E o abuso de cigarro não é o único vício adquirido ou intensificado durante o período de isolamento social.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre março e junho de 2020, o atendimento por uso de alucinógenos cresceu 54% em relação ao mesmo período do ano anterior. Já o uso excessivo de sedativos cresceu 50%. E o cenário é igualmente vicioso no mundo todo. Estudos mostram que o consumo de Cannabis aumentou em 36% no mundo nos primeiros seis meses de pandemia.

Mas, por que, em algumas situações, as pessoas tendem a agir assim ou a procurar por essas substâncias como escapes? Há vários fatores correlacionados à potencialização dos vícios em situações de estresse, como o atual cenário pandêmico. “Para começar, a própria pandemia já é um cenário fértil para desequilibrar a rotina e aumentar o estresse”, afirma Lívia Salomé, especialista em clínica médica e vice-presidente da Regional Minas Gerais do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida (CBMEV).

Segundo ela, o isolamento físico e social, a falta de qualidade de sono, a alimentação desregulada, o sedentarismo e o próprio luto, pela perda de pessoas queridas ou pelo encerramento de ciclos, como perder emprego, e até preocupações financeiras podem ser gatilhos importantes nesse processo. Além disso, o corpo humano tende a liberar hormônios em situações altamente estressantes. É o caso do cortisol, que tende a deixar o organismo em estado de constante alerta.

Nesse cenário, substâncias capazes de promover o relaxamento – álcool e cigarro, por exemplo – tornam-se, então, pontos de “paz” momentânea e vício a longo prazo. E os gatilhos não param por aí, o tédio pela falta de compromissos sociais também pode propiciar o agravamento ou a entrega ao vício.

“A ausência de controle regulatório pelos pares, uma vez que não estamos em convívio diário com outras pessoas que porventura possam vir a inibir certos comportamentos considerados abusivos ou excessivos pela sociedade, e também a incerteza do amanhã e a iminência de um adoecimento, que podem levar a um sentimento de carpe diem (aproveitar a vida), também são fortes gatilhos nesse contexto”, explica.

''Se a causa de um indivíduo consumir álcool em excesso tiver fundo depressivo potencializado por insônia, o passo seguinte, após tratar a depressão, é devolver ao paciente a qualidade de sono adequada para que o cérebro desenvolva as funções necessárias durante o sono, além de criar uma rotina de atividades físicas para aliviar o estresse e fazer o corpo otimizar a produção de serotonina''

Lívia Salomé, especialista em clínica médica e vice-presidente da Regional Minas Gerais do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida (CBMEV)


DANOS

Os malefícios para a saúde humana são muitos, independentemente do vício, seja ele de álcool, tabaco e/ou drogas ilícitas. O abuso do álcool leva a lesões no fígado e no sistema nervoso central, podendo culminar em cirrose hepática e demência. A intoxicação aguda, o famoso ‘porre’, predispõe a acidentes das mais variadas naturezas e está relacionado ao alto índice de óbitos, especialmente no trânsito.

“Já o abuso do tabaco é um dos mais indiscutíveis carcinogênicos da atualidade, associado a doenças crônicas cardiovasculares e pulmonares. Entre as drogas ilícitas, muitas delas ainda nem tão bem estudadas e conhecidas pela medicina dado o caráter ‘inovador’ do mercado do tráfico, sabemos do potencial arrasador do crack, da cocaína e dos derivados de opioides, como heroína e alucinógenos sintéticos. E a Cannabis, infelizmente tida como de menor potencial ofensivo por usuários, é sabidamente provocadora de quadros demenciais a longo prazo.”

Carolina Mendes, doutora em fisiologia humana com ênfase em neurobiologia e mestra em fisiologia humana com ênfase em metabolismo e treinamento físico, elucida, ainda, que todas as drogas causam danos em diferentes extensões. Os efeitos cerebrais podem ser agudos e crônicos. De maneira geral, os efeitos agudos estão associados à mudança imediata no humor e no comportamento, e os efeitos crônicos a uma fase negativa subsequente à utilização da substância, como dependência psicológica.

“Além disso, as drogas alteram a formação da memória para intensificar a lembrança da experiência, além de diversas alterações fisiológicas que estão associadas à tolerância – queda no efeito – e dependência física. A depender do tipo de substância utilizada, observam-se diversos outros tipos de danos que não se limitam ao cérebro, como necrose do septo nasal, no caso de cocaína; HIV e outras doenças virais no caso de drogas injetáveis; e dano hepático no caso de alcoolismo.”

A empresária Aline Lino, de 22 anos, já percebe os impactos do vício em bebidas alcoólicas em sua vida profissional. Ela se viciou ao longo da pandemia, enquanto curtia shows on-line para “passar o tempo” de ócio da pandemia. Desde então, ela não passa uma semana sequer sem consumir álcool. Quando isso ocorre, se sente frustrada. A bebida passou a fazer falta, e corpo e mente passaram a sofrer com a abstinência.

“Além das frustrações de não ter da bebida alcoólica diariamente, isso acaba afetando em outras áreas da minha vida, inclusive na área profissional. Minha sorte acaba sendo o trabalho em home office, já que não estou sendo vista pelos colegas de trabalho. Porém, me sinto culpada muitas vezes em que cometo algum erro, já que acabo trabalhando sem a atenção total devido ao uso do álcool”, relata.

Aline Lino acredita não ser a única a estar passando por esse processo: “Assim como eu, muitos estavam acostumados a consumir álcool durante o pós-expediente em algum bar. Mas o isolamento social acabou tirando um pouco do controle de todos e isso nos deixou ainda mais vulneráveis aos possíveis vícios. Portanto, é extremamente necessário ter muita atenção e autocontrole, pois o que é apenas para o relaxamento momentâneo, pode acabar se tornando extremamente prejudicial à nossa saúde”.

A estudante de psicologia Daniela Machado, de 27, percebeu que no decorrer do isolamento social  aumentou o consumo de cigarros. “Antes, fumava no fim de semana, quando consumia cerveja ou outras bebidas alcoólicas. Mas, nos últimos meses, passei a fumar diariamente. Percebi que estou fumando o tempo todo, porque estou dentro de casa, estou tendo aula on-line e não estou trabalhando. Estou muito ansiosa e cheguei ao ponto de fumar cerca de um maço de cigarros por dia. E me sinto mal, mais cansada e sem ânimo”, diz.


SOBRIEDADE

Buscar mudanças e evitar o consumo exagerado é uma ótima forma de iniciar a sobriedade. Porém, antes de mais nada, é importante que a pessoa reconheça o vício e, também, a sua condição enquanto viciada. Para isso, é necessário entender o que é um vício, ou seja, quando um simples hábito se tornou dependência. É o que explica Carolina Mendes.

“O indivíduo apresenta dependência quando passa a priorizar um hábito em detrimento de outras atividades, anteriormente, importantes. Isso então passa a prejudicar todas as esferas de sua vida, podendo até induzir à criminalidade. Além disso, a utilização de tal substância é capaz de proporcionar prazer e tornar outras atividades comuns, como esportes, viagens e sexo, antes consideradas prazerosas, ‘sem graça’. Em casos graves, o indivíduo interrompe até mesmo hábitos alimentares, o que pode causar comorbidades.”

A partir desse reconhecimento, podem-se inserir cuidados e tratamentos específicos para que o paciente deixe o vício de lado e alcance a sobriedade, bem como para evitar que os danos sejam graves futuramente. “É preciso buscar ajuda”, afirma Lívia Salomé.

“A dependência é atingida em níveis físicos e psicológicos. A primeira delas está relacionada à alteração nos receptores dos neurotransmissores cerebrais, o que pode causar a síndrome de abstinência. Tais sintomas podem ser tratados com alguns tipos de medicamentos. Porém, a dependência psicológica, que está associada à lembrança da droga como uma experiência prazerosa e gratificante, comumente não é tratada com intervenção farmacológica, sendo necessários outros tipos de intervenções, como a psicoterapia”, indica Carolina Mendes.

Lívia Salomé lembra que para se tratar o vício é extremamente importante se entender a raiz dele. “Ferramentas complementares para trazer equilíbrio para o corpo são importantes. Um exemplo: se a causa de um indivíduo consumir álcool em excesso tiver fundo depressivo potencializado por insônia, o passo seguinte, após tratar a depressão, é devolver ao paciente a qualidade de sono adequada para que o cérebro desenvolva as funções necessárias durante o sono, além de criar uma rotina de atividades físicas para aliviar o estresse e fazer o corpo otimizar a produção de serotonina.”

Cuide-se!

É comum que, em momentos de estresse, ansiedade e depressão, as pessoas abusem do uso de substâncias viciosas – cigarro, droga e bebidas alcoólicas, por exemplo – como uma espécie de válvula de escape. Porém, os danos podem ser grandes ao menor sinal de vício e ingestão exacerbada. Portanto, previna-se!

» Diga não às drogas ilícitas: Em hipótese alguma faça uso de drogas ilícitas. Não há níveis seguros para consumo e o potencial de vício delas é muito alto. A dica de ouro é ‘Drogas: tô fora!’. Simples assim.
» Nada de cigarro: O consumo de cigarros já está fora de moda, portanto, melhor nem experimentar, pois faz mal para saúde, envelhece a pele e tem cheiro ruim. Além disso, custa caro.
»  Modere na bebida alcoólica: Não exceda uma dose por dia para mulheres e duas para homens. Lembrando que acumular as doses não bebidas durante a semana para usufruir nos fins de semana deve acontecer somente em ocasiões especiais e não deve ser rotina.

Fonte: Lívia Salomé, especialista em clínica médica e vice-presidente da Regional Minas Gerais do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida (CBMEV)

*Estagiária sob supervisão da editora Teresa Caram


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