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Estado de Minas ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

Poderão os jogos olímpicos ser palco de um novo ciclo da humanidade?

As manifestações prévias à abertura deste ano podem ser sinais de que as donas de seus corpos não querem mais seguir caladas


27/07/2021 07:29 - atualizado 27/07/2021 08:18

Tenista japonesa Naomi Osaka acendeu pira olímpica na abertura dos Jogos de Tóquio(foto: FRANCK FIFE/AFP)
Tenista japonesa Naomi Osaka acendeu pira olímpica na abertura dos Jogos de Tóquio (foto: FRANCK FIFE/AFP)


Os jogos olímpicos de Tóquio foram oficialmente abertos na última sexta-feira (23/7), em um evento nunca antes imaginado. A olimpíada consegue mobilizar todas as faixas etárias e é fonte de inspiração e motivação para crianças e jovens que veem, em exibições raras e únicas de garra e determinação, a força de superação e determinação de jovens atletas homens e mulheres de todas as partes do mundo.

Emocionei-me com os simbolismos que aquele estádio vazio de público, com belos fogos de artifício e delegações restritas e mascaradas traziam como alusão à vida. Para além desses fortes e inéditos impactos, os treinos e bastidores das olimpíadas de Tóquio parecem trazer outras rupturas nunca antes vistas e até hoje não permitidas: os atletas começam a se manifestar!

Duas manifestações marcaram as vésperas da abertura dos jogos em Tóquio: o primeiro veio da recordista de medalhas mundiais, Ona Carbonell, nadadora artística espanhola, que foi impedida de levar seu filho Kai de 11 meses, ainda em amamentação, para os jogos. A nadadora fez um vídeo com seu filho amamentando e deixou registrada sua indignação com o comitê olímpico.

Quatro ginastas artísticas alemãs decidiram usar uma peça única com calça comprida em seus treinos alegando que, além da sexualização de seus corpos, os collants são roupas desconfortáveis. 

Lindsay Crouse, redatora e produtora da área de opinião do jornal New York Times, escreveu, às vésperas da abertura dos jogos olímpicos, que “podemos e devemos ser críticos às Olimpíadas como instituição e, ao mesmo tempo, valorizar as conquistas dos próprios atletas olímpicos. Como todos nós, eles estão presos a sistemas que não criaram. Sim, existem mentiras, abusos e fracassos - mas o talento e o trabalho árduo são reais (...). A Olimpíada não é perfeita, nem os atletas. Mas eles estão mostrando que podem resistir. Talvez possamos também”.

As manifestações das atletas femininas fazem coro à narrativa de Crouse e escancaram “a nossa desgastada civilização masculina institucionalizada primando pela racionalidade, provedora em ciência e tecnologia avançadas e que vive paradoxalmente a sua falência humanístico-cultural” como escreveu Martha Pires Ferreira, em seu blog Caderno Aquariano, em setembro de 2019. 

No mesmo dia em que Crouse se pronunciou no New York Times, a Organização das Nações Unidas publicou artigo de sua coordenadora residente em Angola, Zahira Virani, nomeada para esse cargo em outubro de 2020 para assumir a missão de garantir direito de oportunidades nas áreas de educação, emprego, representação e participação política e social para homens e mulheres, assim como garanti-los desde cedo para crianças de ambos gêneros. Virani descreveu em seu artigo o papel vital das mulheres zungueiras – palavra angolana que descreve as vendedoras ambulantes nas ruas das cidades daquele país – na busca informal de recursos para sua sobrevivência e de seus filhos.

Na América Latina assistimos, na última semana, ao avanço que a Argentina deu no sentido de reconhecer o trabalho invisível das mulheres com o cuidado de filhos e idosos, ao incluir, em seu tempo de aposentadoria, um a três anos adicionais de tempo de serviço por filho que tenha nascido (ou adotado) com vida. No Uruguai, desde 2008, as mulheres já podem computar um ano de tempo de serviço adicional, podendo chegar a cinco, a depender do número de filhos.

No Brasil, as mulheres conseguiram, a duras penas, idade mínima para aposentar inferior aos homens, mas sem compensações por número de filhos, como Argentina e Uruguai. Permito-me aqui simplificar essas situações para deixar exclusivamente a intenção da ação em si.

Não ignoro o fato de no Brasil as mulheres aposentarem com 3 anos de idade a menos que os homens, mas destaco a falta de política que contemple suas duplas ou triplas jornadas. Dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), no último dia 19/7, estimam que apenas 43,2% das mulheres estarão empregadas no ano corrente de 2021 em comparação com 68,6% dos homens. A OIT reforça a urgência de se discutir e buscar pela igualdade de gênero no centro da recuperação da atividade laboral na pandemia e propõe que se invista em jornadas de trabalho flexíveis para que haja divisão mais justa do trabalho em casa, entre homens e mulheres.

Há quem considere errado, no caso brasileiro, que a pensão do marido, em caso de morte, seja transferida para a esposa. Certamente nesse tipo de lógica não se incluem as jornadas duplas ou triplas, as disparidades salariais e a falta de oportunidades e direitos, dentro e fora de casa, que culminam, ao fim da vida útil, em pensões menores para as mulheres. Seguramente, nesse tipo de lógica negacionista, o trabalho invisível, ou melhor, não visto e não reconhecido socialmente, pese na defesa e nas decisões parlamentares cuja maioria é representada por homens. 

Os jogos olímpicos têm regras rígidas que impedem manifestações políticas. E tais regras são definidas por estruturas corporativas que tratam, dentro de uma lógica de poder econômico, interesses para além dos espetáculos corpóreos de seus atletas integrantes. As manifestações prévias à abertura deste ano podem ser sinais de que as donas de seus corpos não querem mais seguir caladas. 

Desejo que se manifestem, atletas do sexo masculino e feminino, e que caminhem juntos em busca de uma civilização humanitária que prime pela igualdade. Até o momento, cabe exclusivamente às mulheres o ônus da maternidade conjugada à vida profissional, como se o papel provedor, tão edificado pelos homens, também não lhes fosse atribuição diária. 

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