PENSAR

Poemas estabelecem vínculo entre games e vida real

‘Se o mundo e o amor fossem jovens’, livro do irlandês Stephen Sexton, evidencia impacto dos videogames na educação estética de uma geração de escritores

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Tomaz Amorim

Especial para o EM

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“Se o mundo e o amor fossem jovens”, livro de poemas do irlandês Stephen Sexton, publicado originalmente em 2019 e agora publicado em português pelo Círculo de Poemas, com boa tradução de Ana Guadalupe, evidencia o impacto dos videogames na educação estética de toda uma geração de escritores. Essas imagens, trilhas sonoras, a dimensionalidade e, sobretudo, essa imersão estão gravadas como se estivessem na placa-mãe do nosso sistema sensorial.

Em vez de ignorá-las como lixo eletrônico da indústria cultural, um dos feitos do livro é mobilizar essa herança não como objeto de reflexão em si, mas como meio de reflexão, como um instrumento apropriado para expressar a interioridade de um eu-lírico que se debruça delicadamente sobre a própria memória, em um exercício delicado de elaboração. Esse eu-lírico nos apresenta entre o drama poético e o bom humor gamer as suas memórias infantis, a relação com o irmão e, principalmente, a dolorosa descoberta da mortalidade da mãe. Ler esse livro é um pouco como pegar o controle número 2 de alguém que nos convida a ler (ou jogar) alguns episódios cintilantes de sua vida - em versos e 16 bits.

O primeiro grande diferencial do videogame em relação às outras obras é a agência. Ela parece dar um passo além da “obra de arte total”, como mistura de todas as outras, ao inserir a possibilidade de que o público interaja com o que ela propõe.

Ou seja, diferentemente do ouvinte de um concerto ou do espectador de cinema, a obra de videogame exige que o programa previamente preparado seja conduzido pelo jogador. Ele não parece tanto como o ouvinte, mas mais com o maestro que, a partir do texto pré-definido da partitura, faz a orquestra executar a música segundo suas próprias opções de condução.

Isso não é novidade para artes mais espaciais como a arquitetura, a escultura, a instalação ou a performance. Nelas, é esperado do fruidor um deslocamento ao redor ou através do objeto que ajude a revelá-lo em sua totalidade ou o recorte em ângulos específicos, alcançados apenas a partir do posicionamento único daquele espectador naquele momento. Nessas obras, há também um trabalho pré-estabelecido, mas com um potencial a ser ativamente revelado pelo observador. A diferença disso para os videogames é, portanto, apenas de grau.

O jogador pode se movimentar, aliás, ele é forçado a se movimentar se quiser avançar, mas ele avança em um mundo, um cenário pré-estabelecido, com regras próprias e com resultados limitados, dentro de regras precisas e muitas vezes quantificáveis por meio de pontos. (Há casos interessantes e excepcionais: os glitches, bugs, exploits, em outras palavras, o milagre na physis do videogame, mas não temos tempo para tratar disso aqui).

A leitura do texto literário, por surpreendente que soe, também é semelhante a este processo. Ele tem uma estrutura própria, prévia ao usuário, que se realiza durante a leitura. Embora a maior parte tenha uma certa ordem de leitura – da esquerda para direita, de cima para baixo, em uma ordenação de palavras escolhida pelo escritor e implicitamente aceita pelo leitor – o leitor relacionará os diferentes elementos do texto de maneira única, com uma direcionalidade e uma dimensionalidade própria e infinitamente variável, segundo sua própria experiência de leitura. Ler a literatura é jogar um RPG de mundo aberto, porém infinito e infinitamente reprogramável.

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O livro de Sexton estabelece constantemente relações entre termos do mundo dos videogames e de outras esferas da vida cultural, do mundo real e da vida íntima. Não são exatamente metáforas, mas ressonâncias, equivalências entre formas, palavras, composições, paralelismos que lançam luz uns nos outros.

Coincidências, arbitrariedades ou afinidades secretas, como o fato jocoso de que um dos primeiros videogames tenha o mesmo nome de um dos primeiros épicos: Odyssey. Sem dúvida, é engraçado – um pouco despudorado, cara de pau, para um livro de poemas - que o videogame possa conter um conceito que explica um trauma, um procedimento de rememoração, mais um grito contra a mortalidade humana, é de uma engenhosidade e, quase, de uma ingenuidade.

Mas não é ingênuo porque os conceitos e as imagens são compartilhados entre as formas artísticas, sem alta e baixa cultura ou dialeto. Na “Nota” que abre o livro, o autor explica os 16 bits como a capacidade de memória que o videogame pode processar de uma só vez. Esse livro então é como o cartucho, que contém as memórias a serem processadas pelo leitor-jogador.

O leitor que aceitar o convite para percorrer as múltiplas referências do livro se beneficiará do fato de que elas não estão colocadas na vertical, do mundo das altas artes para o mundo do baixo entretenimento eletrônico, mas na horizontal, como nos jogos de plataforma, em que se passa de um mundo de referência ao outro, de uma fase a outra, interligadas por portais.

Assim, no poema “Chocolate Island 3”, vemos um exemplo deste procedimento de erudição onívora. “Sallie Gardner at Gallop” é um marco na história da fotografia, um dos grandes exemplos do “inconsciente óptico”, como chama Walter Benjamin, revelado pela nova tecnologia. A humanidade se espantou ao descobrir o que talvez tenha intuído já há séculos: que, de fato, como no sonho do Pegasus, o cavalo alado de Teseu, os cavalos voam.

Nos instantâneos da série, que registram as passadas de um cavalo corredor, nos quadros 2 e 3 vemos o cavalo em movimento sem que nenhuma de suas quatro patas toque o chão. Ao correr, os cavalos voam - ainda que brevemente. Sexton retoma esta revelação moderna, ou melhor, essa retomada moderna dos cavalos alados de tantas tradições, para tratar de uma das figuras mais sublimes do Super Mario Bros.

Quem jogou o jogo ainda criança, se lembrará do deslumbramento que produz a primeira aparição do Yoshi Azul. Apresentado pela primeira vez em “Super Mario World 2: Yoshi's Island”, a fiel montaria de Mario, espécie de Rocinante psicodélico, de Bucéfalo pós-Kafka, o dinossauro verde Yoshi, come com apetite voraz as frutas e os inimigos que encontrar. E nos casos mais indigestos, dos inimigos que têm cascos, ele os transforma em armas contra os inimigos futuros: os cascos das tartarugas verdes viram munição, que é cuspida pelo dinossaurinho e desliza até o fim da tela, atropelando os inimigos e rebatendo nos encanamentos até cair em um buraco qualquer ou, no caso de desatenção do jogador, derrubar o próprio Mario montado no Yoshi.

Já os cascos das tartarugas vermelhas são mais efêmeros, instantâneos, na verdade ainda mais letais porque se transformam em labaredas de fogo, pequenas bolas rubis que aniquilam qualquer inimigo tocado por elas. Finalmente, surgem as tartarugas de cascos azuis, as tartarugas aladas (imagem de invejável sofisticação) que quando devoradas por Yoshi garantem a ele asas e a habilidade de voar pelo curto tempo enquanto durar a digestão do casco.

Um Yoshi voador, Mario cruzando os céus em uma montaria alada, como as Valquírias. E daí a relação insuspeita, a constelação lisérgica que Sexton revela entre a imaginação clássica, a modernidade da fotografia e o mundo dos videogames - repositórios de imagens, inconsciente a céu aberto, da humanidade. Nesta horizontalidade das referências – ao modo pós-moderno, é verdade – passado e presente se misturam despudoradamente. O pégaso, o Yoshi, o cavalo da fotografia, todos têm a mesma idade em um mundo que ainda não envelheceu. No mundo da poesia e do videogame é como se o mundo de fato fosse ainda jovem, tal como no título do livro.

De fato, a estética dos videogames 16 bits antecipa, inaugura ou simplesmente revela o mundo da música eletrônica, o mundo das drogas que misturam a repetição mecânica do ritmo, com a diversidade viajante dos timbres, as cores vivíssimas dos jogos que querem chamar a atenção das crianças, e o relaxamento conceitual dos personagens e cenários, fruto da associação livre e da livre deglutição das imagens ocidentais misturadas com resquícios das tradições japonesas, tal como ressonhadas pelos criadores da Nintendo. (O belo poema “Yellow switch palace” mistura sem hierarquizar uma descrição imagista do cenário da fase, descrevendo os Kappas, as tartarugas do jogo, e relacionando-as com os Kappa do folclore japonês, e o costume de escrever o nome em um pepino e lançá-lo no rio como proteção.

A criatura mítica ganha nova encarnação bem-humorada no vídeo-game, continuidade que o poema reconhece e de certa forma dignifica). O inconsciente da humanidade globalizada vai assim se misturando como magma e vai se revelando despudoradamente. O encanador italiano Mario, montado em seu dinossauro verde, precisa salvar a princesa loirinha de um lagarto punk no reino tropical dos cogumelos. Sem problemas, tudo é possível, estamos todos mais ou menos representados, todos convidados a participar dessa fantasmagoria.

E se antes, como obra de arte, ela representava um certo estágio do mundo globalizado e neoliberal, e também o que desaparecia com ele, o livro de Sexton mobiliza esse repositório gigantesco de imagens para tratar de algo menos inocente: a morte. O Ulisses de Kafka, personagem de uma outra Odisseia, nos lembra que os meios insuficientes, infantis mesmo, podem servir à salvação.

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Embora os versos sejam escritos com um certo imagismo e uma rítmica aberta, inebriante e um pouco melancólica, que faz com que os poemas funcionem por si só, há uma tridimensionalidade nestes poemas que só é acessível ao leitor que tenha a paciência de ligar o videogame, ou trapacear e abrir o YouTube para ver os vídeos de cada uma das fases mencionadas nos títulos dos poemas.

Em praticamente todos os poemas há referências a imagens e mecânicas do jogo da fase específica. Cada poema equivale a uma fase do jogo e o jogo está inteiro lá, mesmo as fases secretas. É uma tradução, uma transcrição? É um exercício de escrita criativa? Na arte, partir de um ponto de partida arbitrário frequentemente revela o oposto, uma ligação necessária que estava escondida e que foi revelada através desse ato de coragem criadora.

Este procedimento, a descrição de elementos da paisagem do jogo seguido de uma descrição de imagens do mundo exterior do eu-lírico (frequentemente o menino que joga vídeo game) e por vezes com a mistura de imagens e lembranças da vida adulta posterior, se repete nos poemas. Os mundos se tocam em uma continuidade tão contrastante quanto natural: é o menino que vira o rosto da TV para olhar a janela, ou para trás, para ver a mãe que o fotografa. Uma montagem tão estranha, quanto cotidiana. Dinossauros e flores no jardim convivem em harmonia.

Neste poema, frequentemente a descrição das paisagens do vídeo-game opera também uma transfiguração. Os pixels e bits, em sua pobreza bidimensional e com cores limitadas, são levadas a sério e descritas com a delicadeza e complexidade de uma pintura expressionista. Os títulos dos poemas com nomes de comidas, cores e geografias, transportados para o reino da poesia retomam algo da potência sensível que tinham ainda na ingenuidade da infância. Na memória infantil frequentemente as coisas pequenas e toscas têm uma grandeza e uma nobreza inalcançáveis.

A sinestesia da descrição dá aos versos às vezes um tom simbolista. Há muitas cores, luzes, animais e árvores exóticos, de mundos distantes. O mundo medieval dos castelos, cavaleiros, monstros e princesas revistado pela pop art. Dualismos do neobarroco, de uma perspectiva sarcástica e profana. Trata-se de um exercício de entender o videogame à luz da história da arte, de incorporá-lo na história da arte com a sagacidade da erudição e com movimentos do mundo interior.

Em um poema como “Green Switch Palace”, por exemplo, não sabemos se a descrição insistente, multiplicadora dos nomes da cor verde, através do musgo que se espalha pela parede, diz respeito a um castelo do jogo ou a uma casa de pedra dos vizinhos (ou à Irlanda dividida). Tudo é misturado e colocado em conjunto pela força desta luz imaginada, “reduzindo o que se sente a uma ideia verde de cor verde”.


Caberia a pergunta: um livro que depende de outra obra para fazer sentido, é um livro menor? Um livro que troque a coesão da autorreferencialidade pelo recurso constante a uma intertextualidade, ou uma intermidialidade, ganha ou perde? A acusação poderia ser feita igualmente a T.S. Eliot e Ezra Pound, guardadas as proporções. Livros como esse colocam referências em movimento, são configurações entre o interno e o externo, sem depender exclusivamente de nenhum. De fato, seria um mau livro se dependesse do jogo. Ele não depende, é uma referência, não se trata, portanto, de uma coleção de poemas apenas para iniciados em videogame.

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Os materiais da indústria cultural cumprem hoje em dia uma função parecida com a do mito: são repositórios de formas, fórmulas e histórias. Não há repositório bom ou ruim na história da arte, porque o mais importante é como cada obra trabalha esse material. Dar uma profundidade lírica e transformar o Super Mario em uma reflexão sobre a morte não é um feito pequeno.

Porque a criança sempre mobilizou os limitados recursos de imagens que tem para entender a complexidade do mundo. Como consolo às poucas e arbitrárias ferramentas – uma cantiga de ninar, um videogame, um conto cautelar – ela tem uma imaginação com potência infinita. Cabem nas casinhas mal-assombradas do videogame todas as ruínas do mundo. E ao relembrar poeticamente este procedimento quando adulto, o poeta, agora sim munido de outros repositórios de imagens, mas talvez com um pouco menos de imaginação, revela as origens infantis da poesia.

Seria um exercício bonito imaginar que todo poema simbolista ou surrealista se origina da descrição realista, bastante detalhada, de uma imagem do mundo infantil, de uma folha rabiscada, de uma peça improvisada com bonecas, das constelações em movimento no céu noturno.

“as perguntas que pairam no ar
são para a voz de um eu futuro a décadas daqui e que há
de voltar sempre a este quarto e a estes momentos cruciais”

As grandes questões são colocadas na infância. Às vezes são respondidas na vida adulta, mas são colocadas na infância. Daí a profundidade metafísica possível de poemas que tem os jogos como ponto de partida.

No videogame, sempre temos muitas “vidas”. Um salto desajeitado no abismo não é o fim, há sempre uma segunda ou terceira chance de continuar de onde se parou. A vida no videogame é então mais experimental, menos medrosa. A literatura também é um espaço mais ou menos seguro de experimentação, mais radical do que a vida, menos fatal, na maior parte dos casos. Ambos se ressentem da morte, são uma estratégia de sobrevivência, ambas caçoam da morte, mesmo que na vida ela sempre vença. Quem é que não gostaria de ensinar à própria mãe o código secreto que destrava no jogo a possibilidade das vidas infinitas? Esses poemas são sobre essa possibilidade e essa impossibilidade.

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Como interpretar a ausência de vírgulas nos poemas? Talvez ela repita a sucessão das imagens que avança como a película de um filme, o pano de fundo do cenário pelo qual o personagem tem que saltar e se abaixar no momento apropriado, desvendando o que é interrupção e o que é continuidade.

Haveria muito a dizer sobre a dimensionalidade na história do videogame, os jogos em duas, três dimensões ou a realidade virtual. Como pensar a dimensionalidade na poesia? Embora as palavras se coloquem em duas dimensões na folha, e embora essa espacialidade do texto estabeleça relação com o seu sentido, a linguagem literária tem uma relação muito mais livre com o espaço. Ela não estabelece relações por assim dizer cartesianas entre uma imagem ou outra, mas produz saltos, encontra conexões entre dimensões inesperadas, desconhecidas.

O efeito que um bom poema causa no leitor é semelhante ao de uma imagem bidimensional que subitamente se torna 3D, ou que se torna um vídeo, ou seja, que altera os parâmetros de fruição do começo da leitura. Os poemas de Sexton operam constantemente essa abertura dimensional passando de uma descrição imagética, com uma hiperdescrição cheia de adjetivos, em fluxo constante, quase sem pontuação, de imagens vivas que se seguem umas às outras, em uma progressão vertical e horizontal, para serem surpreendidas com uma abertura enunciativa, para o surgimento de um eu-lírico distanciado das descrições anteriores (o jogador 1, sentado ao lado do leitor) e que revela que também aquele mundo imagético do videogame está inserido em um mundo maior ou menor, mise en abyme, a revelação de um eixo Z, A, B, etc. no mundo do poema.

Novamente, os poemas funcionam por conta própria na primeira leitura, mas ganham dimensões ao serem lidos em conjunto com as referências da história da arte e do jogo em si. É sem dúvida um tipo de livro que exige do leitor um tipo de erudição mais aberta ou, ao menos, vontade de investigar. Os “Créditos” no fim do livro marcam o apetite voraz do autor e marcam algumas referências. Em um mundo com tantas matrizes culturais e esferas de circulação da cultura, o objetivo é menos saber de tudo do que conseguir estabelecer relações entre os mundos. A última fase do jogo tem um elogio ao jogador: “You are a superplayer”, escrito com moedas de ouro. Sexton também escreve em um dos últimos poemas: “obrigado amigos grandes leitores”. Ele nos agradece por aceitar o desafio de jogar com ele, de ler e acompanhar esse trabalho monumental de recriação, de transcrição, no fim das contas, de tentar dar conta do mistério da vida humana mortal na terra, por meio do uso de todos os recursos possíveis e necessários.


TOMAZ AMORIM é poeta, crítico e pesquisador de literatura. Publicou em 2020 o livro de poemas “meia lua soco” (Editora Primata) e, em 2023, o livro de crítica “Arquipélago: literatura brasileira contemporânea” (Ofícios Terrestres). Atualmente, é coordenador acadêmico do centro de estudos avançados Mecila.

"Se o mundo e o amor fossem jovens"
"Se o mundo e o amor fossem jovens" Reprodução

“Se o mundo e o amor fossem jovens”
• De Stephen Sexton
• Tradução de Ana Guadalupe
• Círculo de Poemas
• 128 páginas
• R$ 69,90

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