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Faustino Rodrigues *

Especial para o EM

 

O que há em comum entre o Holocausto, as cracolândias e os zumbis e mortos-vivos de filmes e seriados? Num primeiro momento, nada. Em seu novo livro, Henri Kaufmanner diz o contrário. O lançamento de “Os mortos-vivos e a psicanálise: dos zumbis aos arrebatados pela imagem”, editora Scriptum, será neste sábado, 23 de março de 2024, na livraria Scriptum, na Savassi, em Belo Horizonte. Em sua obra, Kaufmanner demonstra que a psicanálise é um dos únicos campos do conhecimento capaz de proporcionar uma longa reflexão sobre o processo de formação de nossa sociedade, alguns de seus traços culturais, interpretando muitos de seus símbolos e, claro, sintomas.


A partir disso, traz à luz a forma como eles surgem e se encadeiam com outros fenômenos culturais, alimentando-os, e por eles sendo alimentados, em uma relação permanente e inevitável. Com escrita fluida, Kaufmanner facilita a vida do leitor na lida com conceitos de Freud e Lacan. Constrói uma argumentação ao aproximar fenômenos sociais, desigualdade e elementos da cultura de massas, valendo-se do potencial de tradução que a psicanálise tem de nosso mundo para posicionar o sujeito contemporâneo ante elementos tidos como comuns, aparentemente inocentes. Logo, gera incômodo. Que bom.

 


No centro, encontramos o status de objeto que os corpos atingiram ao longo do século 20. Trata-se de um status exacerbado nos últimos tempos. Tal fato caminharia lado a lado com o esvaziamento da linguagem, derivando em uma crescente reformulação no empenho da descrição das coisas feitas pelo próprio sujeito.


Outrossim, devemos atentar que não é objetivo do autor fazer julgamentos desse processo, como um saudosismo barato. Pelo contrário, Kaufmanner nos entrega uma robusta abordagem do inevitável, dizendo-nos: “Está aí e temos de lidar com isso”. No fundo, a sua preocupação está na forma como a psicanálise (e todos nós) deve encarar essa nova realidade.


Para tanto, o primeiro ponto é o da nossa admissão de que a maneira como os sujeitos se posicionam no mundo foi transformada. Em sua nova relação com a linguagem, uma relação holofraseada, nós, os sujeitos, temos a imagem despontando como o grande expoente de nossos dias. E, por sua vez, emerge o olhar como elemento digno de atenção.


A imagem evidencia a abreviação, substituindo até mil palavras, como diria o aforismo. Qualquer coisa, inclusive pessoas e sentimentos, são vistos como objetos. Não poderia ser diferente com os corpos humanos. E, sendo tomados cada vez mais como objetos, são, igualmente, tratados como objetos.
O processo até isso é longo, com o consumo tornando-se peça-chave. A aquisição desenfreada, crescente no último século, fez com que tivéssemos uma relação outra com as coisas, facilitando a inserção da lógica do objeto. Consumimos para usar – eis o valor de uso de Karl Marx.


Em um mundo no qual o valor de uso prepondera, não poderia ser diferente com os corpos humanos em sua lógica de objetos. Sendo descartáveis, “homens feitos às pressas”, para nos valermos do termo de Kaufmanner, em sua apropriação de Freud e Schreber, passam a não ser evocados pela linguagem, mas, apenas pela imagem, inserindo-se em outro patamar nas relações.


Com o novo paradigma da imagem, alimentado pelo consumo da indústria cultural, a ação se encontra no olhar. Aquilo que vemos ocupa um status diferenciado em nosso imaginário, ansiosos que ficamos em usá-lo. E, consequentemente, nós mesmos, de modo inevitável, passamos a ser determinados por aquilo que vemos: como sujeitos que querem apenas usar as coisas.


Uma nova lógica de nossa personalidade é constituída. A preponderância de nosso imaginário, em detrimento da semântica da linguagem, nos coloca no sentido de busca por um êxtase instantâneo: o gozo, seguindo os termos de Lacan. A sua busca é infindável, com o consumo estimulando-a a todo instante.

 
Os judeus do Holocausto e os craqueiros têm em comum o fato de os seus corpos serem vistos como objetos restritos a um valor de uso. Podendo ser usados por nós, enquanto objetos, a sua utilidade restringe-se ao êxtase que são capazes de nos provocar. E por isso devem ser vistos. Indignar-se com o Holocausto – evento desprezível e condenável, grudado em nossa história – pode representar um êxtase pessoal; ter pena, ser preocupado com a condição dos craqueiros também. O sujeito apto a discursar sobre estes temas o faz como se gozasse.


Uma infinidade de produtos culturais, de massa, vem na esteira desse raciocínio. Os filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, denunciando, com razão, tal atrocidade não economizam na apresentação de corpos estraçalhados, torturados, enfim, tudo o que não somos. Seriados e mais seriados sobre zumbis e mortos-vivos nos trazem trapos e deformidades em nossos dispositivos, fantasiando realidades distópicas e o horror de uma vida que não vivo. O meu medo é emulado, mesmo sabendo que nada parecido vai acontecer. Vamos criando dados, através da indústria cultural, para a produção de discursos indignados, para entrarmos em êxtase.


Usamos, assim, a nossa história e os alijados de nossa sociedade como objetos – tal como se tornaram. Trocamos informações com os mais próximos, a compartilharem a mesma perspectiva, que também entram em êxtase ante aos miseráveis. Surgem as bolhas repletas de pessoas que passam, então, a argumentar em defesa dos mortos-vivos.


E os mortos-vivos? Eles assumem diante de si mesmo essa postura. Tornam-se o objeto no qual foram condenados pelos olhares a caírem sobre eles. E, em uma triste realidade, também entram em êxtase ao assumirem a condição de farrapos humanos.


É importante que fique claro que temos de defender as minorias, dotá-las de poder e coloca-las em um lugar de destaque – Kaufmanner nos direciona para isso. Porém, temos de tomar o cuidado de não fazermos uma apropriação de objeto para um êxtase pessoal. Eis o problema com o qual nos deparamos.

 
Como disse antes, o livro é incômodo – e, por isso, necessário. Lendo Kaufmanner, que se vale de exemplos da literatura e cinema, tomei a liberdade de fazer igual, lembrando-me de Elena Ferrante, em “História de quem foge e de quem fica”. Em determinado momento, Lila vai trabalhar na fábrica de embutidos, em condições precárias, de evidente exploração, contrariando o seu recente passado abastado e de excessos.


No entusiasmado fervor da década de 1960, surgem, no estabelecimento, estudantes comunistas, em manifestação por esses trabalhadores, trazendo uma fala comum: “Estamos aqui para aprender com vocês”. Lila fica claramente incomodada, pois, embora tenham aparecido para aprender, estão repletos de certezas, convicções e até mesmo as soluções para as condições de trabalho, todas elas impressas em panfletos e cartazes para serem distribuídos e colados, contendo os absurdos da vida do trabalhador italiano – nunca vivido pelos estudantes. Torna-se evidente o êxtase dos manifestantes.


Não é difícil encontrar uma situação como a relatada no livro de Ferrante. Difícil é vê-la ao mesmo tempo em que se vale da linguagem para conseguir traduzí-la. Henri Kaufmanner conseguiu.

 

Faustino Rodrigues é psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg)

 

“Os mortos-vivos e a psicanálise: dos zumbis aos arrebatados pela imagem”
• De Henri Kaufmanner
• Editora Scriptum
• 228 páginas

 

Lançamento neste sábado, 23 de março, das 11h30 às 14h30, na Livraria Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi, BH)