Dainerys Machado Vento -  (crédito: divulgação)

Dainerys Machado Vento

crédito: divulgação

“Essa mulher não me dá sossego e tem mais saúde do que Fidel Castro.” O trecho do conto “Pique só um pouquinho” sintetiza o que há de mais forte nas histórias de “As noventa Havanas”, da cubana Dainerys Machado Vento. O despudor, a provocação, o humor, a coloquialidade, o tesão de viver. E de escrever.

 

Nascida em Havana em 1986, Dainerys saiu de seu país e morou no México antes de se estabelecer em Miami para pesquisar, na universidade da cidade norte-americana, a relação dos escritores cubanos com a mídia. Mas não abandona o seu passado. “Havana é minha cidade. Minha família mora lá”, destaca.

 

Com edição brasileira da Arte e Letra e tradução da professora Nylcéa Pedra (UFPR), os 19 contos curtos de “As noventa Havanas” refletem, com sagacidade, sensualidade, deboche e aspereza, a vivência dos anos 1990 na ilha caribenha mergulhada em crise econômica.

 

 

“Acho que a coisa mais chocante para nós foi descobrir que nem o passado nem o futuro em Cuba eram realmente melhores do que os anos 1990. Só que a crise econômica da época foi tão dura, que parecia o fim do mundo. E, de certa forma, foi para nós”, conta a autora, por email.

 

Leia, a seguir, a entrevista de Dainerys Machado Vento ao Pensar do Estado de Minas.

 

Carros antigos no Parque da Fraternidade no centro de Havana

Carros antigos no Parque da Fraternidade no centro de Havana

Renato Alves/CB/d.a.press

 

Como surgiram as histórias reunidas em “As noventa Havanas”?


Os primeiros nasceram, há muitos anos, de alguma anedota próxima que eu queria recriar; de alguma passagem que me inspirou a colocar no papel. Mais tarde, percebi que eles tinham uma visão comum de Cuba e queria reuni-los em um livro.

 

Depois escrevi outros contos que completaram minha visão. Então, eu diria que elas surgem da necessidade de entender Cuba através do humor, através de seus lugares-comuns, através de histórias mínimas.

 

E o que eles têm em comum é o calor de agosto e o fato de pertencerem a uma época do passado, em que vivíamos em ritmo mais lento.

 

O que foi mais marcante para a geração cubana que cresceu nos anos 1990?


Vivemos os anos 1990 sempre nostálgicos de um passado que nos diziam ter sido muito melhor. Acho que a coisa mais chocante para nós foi descobrir que nem o passado nem o futuro em Cuba eram realmente melhores do que os anos 1990.

 

Só que a crise econômica da época foi tão dura, que parecia o fim do mundo. E, de certa forma, foi para nós. Após a queda do comunismo em 1989, a economia cubana entrou em colapso, porque havia sido mal administrada por mais de 20 anos, colocando slogans políticos acima da realidade. A crise dos anos 1990 nos tirou a esperança, e o pior foi que o futuro não nos devolveu.

 

No entanto, no final do século 20 ainda vivíamos aquele momento de ingenuidade, de transição, de acreditar que a vida era só isso e pronto, de acreditar que o futuro poderia ser melhor.

 

Em uma das histórias, “Vazio, 1994”, há uma referência à “música da novela brasileira”. Como as nossas novelas influenciaram o imaginário cubano? Quais são suas outras referências do Brasil?


Quando comecei a trabalhar com Nylcéa Pedra, a maravilhosa tradutora de “As noventa Havanas”, disse-lhe que, em Cuba, eles exibiam novelas brasileiras desde que me lembro. Quase todas as noites, famílias inteiras se reuniam em frente à televisão para acompanhar as tramas de cada capítulo.

 

Muitas famílias ainda fazem esse ritual, apesar do acesso à internet e às séries sob demanda. Mas, nos anos 1990, fazia parte do DNA de Cuba compartilhar novelas brasileiras. Na rua, conversamos sobre novelas, nos apaixonamos pelos protagonistas.

 

Lembro-me que as pessoas que emigraram de Cuba tentaram encontrar, em suas novas vidas, os episódios que haviam deixado no meio do caminho quando deixaram a ilha. Resfriados e infecções estomacais mais persistentes recebiam os nomes de vilões e vilãs de badaladas novelas brasileiras. Poderia, por exemplo, ficar doente com ‘Nazaré’ (Tedesco, personagem de Renata Sorrah), quando transmitiam “Senhora do destino”.

 

Esse ritual familiar de tantas décadas fez com que a cultura do Brasil chegasse a Cuba, mas também se espalhou em outras expressões de “Escrava Isaura”, “Mulheres de areia”, “Felicidade”, “A força de um desejo” e centenas de outras que fazem parte do cotidiano cubano.

 

Por isso, a referência à música da novela brasileira aparece nessa história, porque você não consegue entender a vida familiar, ou a vida noturna cubana, se não mencionar aqueles rituais cotidianos em torno das novelas.

 

Mas acho que outra referência igualmente significativa do Brasil em Cuba tem sido a música: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, amamos todos e dançamos e choramos com total paixão, como se fossem nossos. O cinema brasileiro também nos deu influências muito especiais.

 

“Havana é apenas uma lembrança no passaporte cheia de selos desconhecidos”, diz um dos personagens do conto “Não fume na cama”. E para você, o que Havana representa hoje? Pretende voltar algum dia?


Volto sempre a Havana. Minha família mora lá e é a cidade onde nasci. É a minha cidade. Tenho por Havana a saudade que qualquer emigrante tem por sua cidade, ou de qualquer ser humano por seu passado. Em dias tristes, lembro-me dela e fico ansiosa para voltar.

 

Em dias felizes, do longe, nem me lembro de ter existido. Às vezes até penso que talvez nunca mais volte. Mas, no fundo, sei que isso não é verdade.

 

Em 2024, por exemplo, recebi em Havana, na casa da família onde nasci há quase 38 anos. Havana sempre estará lá para mim, e se um dia não existir como cidade, ainda a tenho em minha memória.

 

O que mudou na sua vida depois de se mudar para os Estados Unidos?


Antes de me mudar para os Estados Unidos, me mudei para o México. Digo isso porque, assim como a viagem a Ítaca, o caminho que me trouxe aos Estados Unidos é muito importante para mim. Valorizo muito os meus anos no México, porque me ajudaram a entender a emigração de uma forma diferente.

 

No México aprendi a aproveitar a vida, aprendi o valor do humor para enfrentar os problemas, aprendi que é possível viver sem extremismo político.

 

Acho que se eu tivesse vindo diretamente para os Estados Unidos, minha perspectiva seria muito diferente. Mas tudo sempre muda quando se deixa o conhecido para trás. Então a resposta seria a seguinte: tudo mudou na minha vida.

 

Você foi a primeira cidadã cubana em décadas a chegar à Universidade de Miami com um visto especial de estudante. Como essa experiência mudou sua visão sobre a literatura e a vida?


Lembro-me que a coisa mais impressionante de visitar a Universidade de Miami pela primeira vez foi descobrir que sua biblioteca principal era um prédio funcional de vários andares. Também fiquei impressionada que os usuários pudessem entrar em qualquer andar, encontrar uma prateleira e ler qualquer livro que precisassem.

 

Esse cuidado com materiais bibliográficos envolvendo dinheiro e tecnologia era desconhecido para mim. Em Cuba havia livros restritos apenas para pesquisadores, e o elevador da Biblioteca Nacional quase sempre estava quebrado quando se precisava.

 

O livre acesso a qualquer informação também era desconhecido. Na Universidade de Miami existe uma maravilhosa coleção chamada Cuban Heritage Collection, onde um grupo de mulheres incríveis reúne há décadas documentos cubanos de grande valor que contam toda a história de Cuba, dentro e fora da ilha.

 

Acessar todos esses materiais me ensinou que a vida poderia ser muito mais fácil e livre do que eu vivia antes em Cuba.

 

Você estuda como os escritores cubanos são retratados na mídia. O que você pode nos dizer sobre os resultados de sua pesquisa?


É um tema complexo e demorado, que levei anos para estudar e muda com frequência. Vou dizer-lhes que os preconceitos positivos e negativos sobre Cuba e o governo cubano se refletem com demasiada frequência nas artes cubanas. Infelizmente, é muito difícil separar qualquer manifestação artística cubana da política.

 

Por que não conhecemos mais escritoras cubanas? Elas também são silenciadas em Cuba?


Tem muito a ver com política. Mas acho que é pior do que apenas “silenciar”. Durante muitos anos, os escritores cubanos enfrentaram mecanismos de controle quase perfeitos que os censuravam sem parecer censura. Dentro de Cuba sempre houve uma produção literária ativa. Mas quase nunca essa imensa produção pode falar abertamente sobre os problemas de Cuba.

 

E você tem no país uma economia muito fraca e medidas extraterritoriais dos Estados Unidos que punem instituições que fazem negócios com Cuba. Como consequência, não há grandes editoras publicando em Cuba. Você não tem uma Casa de Letras, uma Random House Cuba, ou uma Planeta Cuba.

 

Se os escritores mexicanos, por exemplo, podem publicar no Sexto Piso ou na Random House em seu próprio país, e essas editoras exportam seus livros para outros países onde essas editoras têm escritórios, os escritores cubanos não têm essa possibilidade. Eles estão sempre fora do circuito. Alguns até são publicados, mas o processo é diferente.

 

Quando um escritor cubano aborda um editor ou agente espanhol, por exemplo, e oferece um projeto literário, esse editor ou agente tem expectativas muito diferentes sobre essa obra do que teriam se fossem editores ou agentes cubanos. Em outras palavras, há uma mistura de fatores econômicos e culturais que dificulta a circulação da literatura cubana fora da ilha há anos.

 

Você poderia mencionar outros jovens autores cubanos que merecem ser conhecidos?


Felizmente, são muitos. Quando falamos de jovens autores cubanos nos dias de hoje, devemos mencionar Elaine Vilar Madruga, já traduzida para o português (autora de “A tirania das moscas”, lançado no Brasil em 2023 pela editora Instante), e cujos romances têm dado muito o que falar nos últimos anos.

 

A poesia de Melissa C. Novo, Kelly Martínez Grandal, Eudris Planche Savón, o teatro de Yerandy Fleites e Rogelio Orizondo, a narrativa de Dazra Novak seriam outras que eu adoraria recomendar.

 

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Trecho

 

(Do conto “Don’t smoke in bed”, em “As noventa Havanas”, de Dayneris Machado Vento, tradução de Nylcéa Pedra)

 

“A chuva lá fora acalma, empapando a escuridão de um quarto cheio de sutiãs com enchimentos e flores azuis (quebradas?). Faz uma eternidade que ela foi até alguma versão de Havana. A imensa balsa como imagina Cuba flutua sozinha, sem destino, em sua imaginação.

 

Ela não sente falta de nada daquilo, mas sente falta de voltar a ter um lar, quer deixar de pular de aluguel em aluguel, de país em país, de idioma em idioma. Às vezes é possível estar mais próxima da balsa quando se divide o caminho com outro balsero.

 

As luzes do alto-falante fazem com que se lembre, mais uma vez, da luz precoce de Chicago, o único lugar, em muito tempo, onde se sentiu retornando a alguma parte. Lembra com exatidão como a luz incômoda caindo da ampla janela da sacada até o tapete ilumina a saborosa magreza do corpo dele.

 

Reconhece até o sotaque dos seus grunhidos, acredita ver o mapa de um arquipélago nas marcas de suas costas. Saboreia mais uma vez seus beijos de cigarro, sente entre suas mãos as contínuas voltas de seus poucos cabelos.

 

Pensa que ensinou para ele em uma só noite. ‘Todos os cubanos sabem dizer grosserias, rapaz’, sussurra. Sabe que seria um bom argumento para romper o silêncio entre dois balseros que seguem à deriva pelo mundo. E começa a falar baixo com o amante que logo vai ter que esquecer.”

 

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Capa do livro "As noventa Havanas"

"As noventa Havanas"

Reprodução

 

“As noventa Havanas”
•De Dainerys Machado Vento
•Tradução de Nylcéa Pedra
•Arte e Letra
• 140 páginas
• R$ 52

 

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