Perfil biográfico da arqueóloga Niéde Guidon também conta a história do parque do Piauí que acolhe mais de mil sítios com pinturas rupestres -  (crédito: GUSTAVO WERNECK/EM/D.A PRESS)

Perfil biográfico da arqueóloga Niéde Guidon também conta a história do parque do Piauí que acolhe mais de mil sítios com pinturas rupestres

crédito: GUSTAVO WERNECK/EM/D.A PRESS

Boa parte de autoras e autores de biografias ou perfis sabe ser ilusão achar que dará conta de recuperar toda a vida do objeto a ser enfocado. Adriana Abujamra parece ter partido desse pressuposto ao delimitar o escopo de “Niéde Guidon: uma arqueóloga no sertão” e privilegiar, no livro, a figura pública, quase heroica, da arqueóloga mais famosa do país.


A autora produziu abrangente perfil centrado na atividade laboral de Niéde, com pouca ênfase na vida íntima da mulher criadora das bases e dos argumentos para a demarcação do deslumbrante Parque Nacional da Serra da Capivara, no município de São Raimundo Nonato, no sertão do Piauí, ocorrida em 1979. O texto fluído aparece pontuado por interações bem-humoradas com quem lê, o que funciona como agente de indução à empatia pela personagem.


Prestes a completar 91 anos, a arqueóloga está aposentada e apresenta saúde instável depois de contrair dengue, chikungunya e zika e de o corpo cobrar fatura pelos anos de expedições realizadas nos 130 mil hectares do parque. Não conseguiu largar a sua causa/casa. Permanece fincada na aridez piauiense, ainda que pudesse ter optado por viver na França, sua outra nacionalidade. Mora ali, cercada de cachorros, mantém o hábito de tomar três taças de vinho por dia e ainda preserva na entrada a placa com a frase emprestada de Dante Alighieri: “deixai toda a esperança, vós que entrais”.

 


Inscrito na lista de Patrimônio Mundial da Unesco em 1991, devido à grande concentração de inscrições rupestres, testemunho de comunidades humanas mais antigas das américas, o Parque da Serra da Capivara também termina sendo perfilado ao longo do livro. Sua personalidade e sua vocação vão sendo narradas imiscuídas à história de Niéde.


Aqueles abrigos rochosos acolhem mais de mil sítios com pinturas rupestres, grande número deles de fácil visualização, além da flora e da fauna da caatinga preservadas e de dois museus, um deles interativo, que organizam o conhecimento e permitem o acesso a resultados de pesquisas. Com todos esses atrativos e equipamentos, o imenso tesouro permanece grande desconhecido. Para efeito de comparação, o Parque Arqueológico do Vale do Côa, em Portugal, também protegido pela Unesco, possui 60 sítios arqueológicos, a maioria de difícil acesso. No entanto, a discrepância entre os dois locais se inverte no quesito visitação: ao longo de todo o ano de 2023, pouco mais de 36 mil visitantes estiveram no Parque da Capivara; entre janeiro e setembro do mesmo ano, 70 mil pessoas visitaram o Côa.


Lançado ano passado, o livro faz parte da coleção “Brasileiras”, organizada por Josélia Aguiar e lançada pela editora Rosa dos Tempos. Os volumes objetivam “enaltecer o legado”- conforme o material de divulgação - de grandes figuras femininas da vida cultural, social e política do Brasil. Iniciativa importante diante da carência de biografias dedicadas às muitas mulheres constitutivas da diversidade cultural brasileira. E, no caso do livro sobre Niéde, daquelas atuantes na pesquisa científica.


Com o marco da abordagem delimitado pela encomenda, Abujamra saiu-se bem na tarefa. Foi minuciosa na investigação do ár duo esforço realizado por Niéde, durante 50 anos, em diferentes contextos (político, científico e social), para conseguir preservar o parque, dotá-lo de boas condições de acesso e transformá-lo em eixo para a mudança econômico-social de seus vizinhos, em especial, das mulheres da região.


A partir de depoimentos de moradores da região, de funcionários e amigas, do relato das muitas brigas enfrentadas pela pesquisadora, inclusive com moradores de comunidades que habitavam a área demarcada, sua personalidade incisiva, pouco dada ao frufru do social, foi sendo exposta nas páginas. O perfil ganhou também pequeno álbum de fotografias coloridas, igualmente concentradas no tema do trabalho, pois não há uma imagem de Niéde fora do habitat que a acolheu e a habita desde o início dos anos 1960, quando teve contato pela primeira vez com as pinturas da região.


O que mais atrai no perfil elaborado por Abujamra é aquilo que, no século 19, o historiador alemão Johann Gustav Droysen denominou de “o pequeno x”, a recuperação da ideia de que a dimensão individual é importante para a formação da História. No caso da narrativa sobre a arqueóloga do sertão, ainda que se conheça muito da trajetória de Niéde, por causa das inúmeras entrevistas por ela concedidas e reportagens sobre o parque, torna-se emocionante acompanhar e entender como a sua personalidade pouco conciliadora contribuiu para provocar o poder e desestabilizar paradigmas arqueológicos.


Na década de 1980, em artigo na revista “Nature”, ela defendeu que o humano aportou nas Américas não somente a pé pelo Estreito de Behring, a teoria mais aceita, mas também pelo oceano, vindo da África. Contradisse ainda a data da chegada. No lugar dos 15 mil anos defendidos, em especial, pelos norte-americanos, apontou a datação de 32 mil anos, que estudos mais recentes atualizam para algo entre 50 mil-60 mil anos. Mesmo que encontrem resistências, suas teses colocaram a Capivara no debate arqueológico mundial e são constantemente objeto de discussões e pesquisas.


Longe ser um relato biográfico de exaltação, “Niéde Guidon: uma arqueóloga no sertão”, tem outros méritos: levanta, indiretamente, questões sobre investimento e apoio à pesquisa, preservação de bens coletivos, integração entre comunidades locais e pesquisadores externos, o papel do Brasil na arqueologia. Demonstra ainda que, a partir do corte ético feito por quem a escreve, o poder de uma biografia ou de um perfil reside na capacidade da personalidade enfocada provocar os mais variados sentimentos. No caso de Niéde, prevalece o de admiração por sua postura guerreira, seu desprezo às negativas convencionais, seu compromisso com a comunidade local.

 

Jornalista e doutora em História da Arte, GRAÇA RAMOS é autora de “O apagamento de Volpi: presença em Brasília” (Tema editorial).

 

TRECHOS


“Em uma de nossas conversas, falando sobre a beleza da caatinga, ela disse que, se fosse um vegetal, seria um cacto. A analogia soa perfeita. Essas plantas utilizam seus espinhos afiados para espetar quem tente comê-las.”

 

“A fruição completa da arte rupestre é inseparável do cenário em que ela está inserida. Deparar-se com os desenhos de guerreiros atingidos por lanças, casais fazendo sexo e grupos dançando, e, ao mesmo, tempo desfrutar a orquestra de pássaros e a força da concretude da formação rochosa a se perder de vista, é como entrar num túnel do tempo. Uma viagem difícil de ocorrer se feita fora dali.”

 

Capa do livro

Capa do livro

Reprodução

 

“NIÉDE GUIDON: UMA
ARQUEÓLOGA NO SERTÃO”


- De Adriana Abujamra


- Rosa dos Tempos


- 248 páginas


- R$ 43,92