Nova Lima, Itabirito, Congonhas, Montes Claros, Francisco Sá e Grão Mogol – Em uma ultrapassagem, a carreta carregada de minério de ferro deixa para trás a castigada faixa da direita, repleta de buracos, remendos e ondulações. Na manobra em curva forte, o motorista do veículo pesado não enxerga o Honda CRV do engenheiro Hérzio Mansur e toca a traseira do carro, fazendo-o rodar na chamada Curva da Celinha, um dos pontos mais críticos da BR-040, em Itabirito, na Região Central de Minas Gerais.
“Ele (o condutor da carreta) nem me viu, porque a curva é muito fechada. O carro rodou até a pista da esquerda, onde outra carreta de mineradora bateu na minha traseira e me jogou de volta para o sentido Rio de Janeiro. Fiquei sendo jogado e rodando de um lado para o outro e, pela mão de Deus, não tive nada. Já o carro teve perda total”, lembra o engenheiro, que desde então começou a lutar por melhorias que trouxessem mais segurança à rodovia.
O acidente que destroçou metade do veículo de Hérzio e quase lhe custou a vida foi potencializado por uma junção de fatores estruturais e de condições de tráfego da BR-040, uma das mais críticas do país para esse tipo de sinistro com veículos de cargas. Além da imprudência, do desgaste de longas jornadas e do medo do crime, o transporte pesado rodoviário e seus operadores também sofrem com vias degradadas, malconservadas, com manutenção insuficiente e traçados traiçoeiros e ultrapassados.
Segundo levantamento da equipe de reportagem do Estado de Minas, entre 2022 e julho de 2025 a Polícia Rodoviária Federal (PRF) registrou nas rodovias federais 4.177 sinistros envolvendo pelo menos um caminhão ou carreta e associados a infraestrutura deficiente, falta de manutenção ou conservação das estradas. Desastres que resultaram em 855 mortos e em 5.603 feridos no período.
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Ao mesmo tempo, caminhoneiros passam de vítimas a parte do problema quando transportam carregamentos excedendo o peso e comprometendo o pavimento, derramando cargas pelo caminho e com outros comportamentos nocivos aos próprios usuários. Entre 2022 e 2024, a PRF registrou 187.420 infrações cometidas por veículos de carga que também tinham potencial para comprometer as condições das vias.
Os mais numerosos sinistros devido a condições da rodovia se deram devido a pistas escorregadias, com 440 registros, sendo essa também a segunda maior causa de mortes, com 86 óbitos. Apesar de ser a segunda maior causa de acidentes, com 311 registros, a iluminação deficiente foi a que mais matou, com 124 óbitos.
Cuidado, buraco
pelo caminho
Estradas esburacadas e com ondulações causam danos diretos aos veículos, como desalinhamento, desbalanceamento e avarias em pneus e sistemas de suspensão, indica o professor Raphael Lúcio Reis dos Santos, do Departamento de Engenharia de Transportes do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). “Um buraco pode forçar uma manobra evasiva brusca, causar o estouro de um pneu ou simplesmente fazer o motorista perder o controle do caminhão. A má conservação não é apenas um incômodo ou um gerador de custos de manutenção, mas uma condição ativa que eleva os riscos”, afirma.
Já o problema estrutural mais crítico identificado pelos policiais rodoviários federais foi a curva acentuada – como a que havia no local do acidente do engenheiro Hérzio Mansur –, destacada como causa de 482 sinistros que provocaram 81 mortes. “Se a carga não estiver perfeitamente acondicionada, ou se a frenagem ocorrer dentro da curva, a transferência de energia pode gerar um momento de força que supera a estabilidade do veículo, resultando em seu tombamento. Por isso a importância da prevenção, mantendo uma velocidade compatível que permita uma frenagem suave e progressiva, o uso do freio motor e deixando os freios hidráulicos para a parada final”, recomenda o professor do Cefet-MG.
Quando se consideram apenas sinistros registrados pela PRF nas rodovias federais brasileiras que envolveram vítimas dentro dos veículos pesados de carga, 18 foram associados a questões de manutenção e conservação e nove a defeitos ou obsolescência de projeto. Foram 1.480 sinistros relacionados às condições das pistas e 1.564 ligados à geometria, sendo que 50 pessoas morreram devido a falhas de manutenção e conservação e 156 óbitos foram associados à estrutura da rodovia.
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Minas no topo do ranking de risco
Os estados com mais sinistros e mortes envolvendo ocupantes de caminhões e carretas por questões relacionadas às condições das pistas são Minas Gerais, com 301 registros e 12 óbitos, seguido do Paraná (145, 1 morte) e Santa Catarina (119, 6). No que se refere à estrutura das estradas, novamente aparece Minas na frente, com 427 sinistros e 24 mortes, seguido de Mato Grosso (306, 17) e Bahia (277, 15).
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Perigo oculto nas
curvas da BR-116
Perto da divisa com o Paraná, na região do Vale do Ribeira, em São Paulo, a BR-116 tem seu segmento mais perigoso para carretas e caminhões em Cajati, onde ocorreram 35 sinistros, com seis mortos e 27 feridos no período analisado. Como um todo, a BR-116 (SP) é o trecho de estrada brasileira onde mais sinistros e mortes ocorreram tendo registros de ocupantes de veículos de cargas pesados, com 117 sinistros, sendo 12 óbitos.
Dos acidentes listados na BR-116 em Cajati, as condições que resultaram em mortes foram predominantemente ligadas à geometria da via, combinada com a gestão da carga. Metade dos acidentes fatais ocorreu à noite ou madrugada, agravando o risco diante da visibilidade reduzida sobre as condições geométricas críticas (curvas e declives) que não estavam devidamente sinalizadas.
Um total de 83% dos acidentes fatais ocorreram em trechos com curvas (seja curva simples ou combinada com declive, mesmo que essa geometria não conste como causa principal) e 66% das mortes, em pistas não duplicadas. Os declives acentuados foram a causa apontada na metade dos casos fatais, seguidos por falta de elemento de contenção, curva acentuada e ausência de sinalização.
Observando mais detalhadamente as ocorrências, os tipos mais frequentes de acidente fatais foram os derramamentos de cargas, colisões laterais e capotamentos. Nos derramamentos em declives, há indicações de que a carga se moveu por inércia, vencendo a amarração, ou que o veículo entrou na curva com velocidade incompatível para o raio, alterando o centro de gravidade.
De novo, a BR-381
no mapa de ameaças
Após o trecho paulista da BR-116, a BR-381, em Minas, foi a que registrou mais acidentes e mortes envolvendo veículos de transporte em ocorrências ligadas à estrutura da pista, com 116 ocorrências e seis mortos. Cambuí, no Sul de Minas, registrou três óbitos em 10 ocorrências, e Nova Era, na Região Central, dois óbitos em três sinistros. São muitos buracos, rachaduras e pista desgastada em trechos que aguardam duplicação e reforma, como em Sabará, Caeté e João Monlevade. Boa parte do desgaste nesta e em outras vias pode ser atribuída ao excesso de peso de cargas.
Entre os meios de prevenir o excesso de peso de caminhões e carretas, o diretor de Operações da PRF, Marcus Vinícius de Almeida, destaca trabalhos em conjunto com as balanças móveis do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e operações temáticas. “Temos esse aprendizado que procura encontrar os sinais de excesso de peso com a situação dos eixos, dos pneus, da velocidade. A principal estratégia é a cubagem (relação de volume da carga e do peso presumido para cada tipo de carregamento) e conferência com as notas. Em caso de suspeitas, levamos o veículo para locais com balanças”, afirma o policial.
Estado se destaca em
falta de conservação
A conservação das estradas é um ponto crítico em Minas Gerais para sinistros graves que tiveram como vítimas ocupantes de carretas e caminhões nas rodovias federais entre 2022 e julho deste ano, segundo dados da PRF. O estado tem três dos cinco trechos com mais sinistros relacionados à conservação e manutenção: BR-040, com 65, BR-381 (58) e BR-365 (52).
Percorrendo um dos trechos mais perigosos da BR-040, entre Belo Horizonte e Congonhas, os problemas de geometria (como pistas sem acostamentos e curvas fechadas) se somam a falhas de conservação (ondulações, minério entupindo sarjetas e drenagens etc.). Isso em meio a um tráfego intenso de carretas carregadas de minério de ferro que acessam a via trazendo detritos e submetendo o pavimento ao peso de suas cargas.
“Temos uma rodovia velha, degradada, totalmente saturada por carretas de minério e que está sendo usada como corredor logístico de acesso a pátios, transportadoras, minas e outras estruturas. Não há duplicação real, barreiras centrais para separação dos trechos críticos e rampas de escape. Os estreitamentos mais brutais são no Km 615, na ponte sobre o Rio Maranhão, de 40 metros, e outro elevado de 80 metros sobre a ferrovia. A primeira é em curva e a segunda engarrafa o dia inteiro entre Congonhas e Conselheiro Lafaiete”, enumera o diretor da União das Associações Comunitárias de Congonhas (Unacom), Sandoval Souza Pinto Filho, integrante do grupo SOS 040.
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Mesmo repleta de carretas pesadas de mineração, a rodovia tem trechos de alta velocidade e, apesar de duas pistas, não conta com acostamentos para emergências ou áreas de escape no trecho de 60 quilômetros entre BH e Congonhas. Entre os Kms 578 e 580, ao passar pela Mina Várzea do Lopes, a pista apresenta diversas ondulações e remendos de asfalto, feitos em várias épocas, que chegam a fazer as grandes carretas balançarem e os carros mais velozes darem saltos, aumentando o risco de perda de controle.
“Nesse ponto há uma falha geológica muito profunda, só remediada por meio de um pontilhão ou estrutura de concreto. Passar cobertura asfáltica não adianta, porque logo o tráfego pesado afunda tudo de novo. Chega a dar diferença de quase meio metro de profundidade e quem não conhece pode perder o controle e se acidentar, sem falar no desgaste dos veículos”, afirma o engenheiro Hérzio Mansur.
Caminhões de minério
transportam problemas
Adiante, os acessos a outras minas em diversos pontos, estacionamentos de carretas de mineração em largos de terra e até o transporte sem lona ou a falta de limpeza dos veículos antes de ingressar na rodovia geram excesso de minério em pó e sob forma de detritos, acumulando-se nas sarjetas e drenagens, ampliando o perigo com as chuvas.
“São vários problemas graves. Basta chover que começam os sprays de minério lançados pelos pneus das carretas. Emporcalham a via, tampam os faróis e os para-brisas dos outros veículos, a sinalização fica encoberta, as faixas desaparecem... Os montes de minério que se acumulam nas canaletas reduzem a capacidade de drenagem e até as entopem. Com isso, a água empoça e a lama invade a pista, que fica escorregadia. Os carros podem perder a aderência com o asfalto e aquaplanar. Ao mesmo tempo, essa água em excesso se infiltra nas trincas e chega ao leito da rodovia, abrindo buracos”, descreve Hérzio Mansur.
Roteiro de viagem
Na última parada da série “Cargas de risco”, o Estado de Minas mostra situações em que as condições das estradas federais, a infraestrutura deficiente, o traçado obsoleto, projetado décadas atrás, e outras armadilhas se transformam em obstáculos a mais para os carregamentos que escoam 65% das riquezas brasileiras, segundo estimativa da Confederação Nacional do Transporte (CNT). Na edição de ontem, levantamento sobre dados de mais de três anos da Polícia Rodoviária Federal mapeou situações em que os riscos nas rodovias são agravados pelo comportamento dos próprios caminhoneiros. Na segunda-feira, o EM revelou como operam quadrilhas que causam prejuízo bilionário com o roubo de carregamentos. A primeira reportagem analisou os desastres envolvendo o transporte pesado, mapeando pontos mais letais das BRs e as causas principais de milhares de mortes.
