Atrás das grades: como comércio e consumidores pagam o preço da insegurança
Em busca de proteção, uso de grades se dissemina até em pequenos negócios e pelo interior de Minas. Mas custos podem ser produtos mais caros e fuga de clientes
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Belo Horizonte aumenta ano a ano sua participação nos roubos praticados contra estabelecimentos comerciais em Minas Gerais, representando um de cada cinco crimes do tipo, ou cerca de 20%. Mas o temor no comércio, de certa forma uma preocupação comum na capital, vem se espalhando também pelo interior, onde a necessidade de comerciantes de se trancar atrás de grades, entre outras medidas para buscar mais segurança, pode representar, por outro lado, aumento nos preços de produtos e redução nas margens de lucro, além de prejudicar a atração de clientes. É o que demonstram dados de uma pesquisa sobre os impactos dessas medidas no consumo, associados a estatísticas de roubos e de furtos a estabelecimentos no pós-pandemia, de 2022 a 2024, do Observatório de Segurança Pública da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), compiladas pela equipe do Estado de Minas.
Em números gerais, o total de roubos a estabelecimentos comerciais mineiros passou de 3.330 em 2022 para 2.280 em 2024. Nesse mesmo cenário, a representatividade de Belo Horizonte nesse tipo de crime se ampliou de forma consistente, saltando de 16,2% em 2022 para 19,5% em 2023, e fechando 2024 com 21% (mais de um quinto). Já no interior se concentra a parte mais significativa do volume dos roubos. Ainda que essa proporção tenha sido reduzida de 67,8% em 2022 para 63,9% em 2024, é cada vez mais comum comerciantes de fora da capital que adotam barreiras metálicas e outros sistemas para tentar se proteger dos assaltos, mas que dificultam também o acesso de consumidores e o próprio ato de comprar.
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É o que percebem no dia a dia clientes que chegam à porta da venda de Cristóvão Ferreira Amorim, que precisam fazer suas compras sem entrar no imóvel. Da calçada, o freguês faz o pedido da mercadoria ao comerciante, que entrega o produto e recebe o pagamento por uma pequena abertura em uma grade que o separa do freguês desde que sofreu o segundo assalto à mão armada. Uma tentativa extrema de proteção contra roubos, que respondem por 64,1% da criminalidade violenta nas cidades mineiras com mais de 50 mil habitantes, conforme mostrou a série de reportagens “Radiografia do crime”, publicada pelo Estado de Minas.
A cena diante do comércio de Cristóvão, uma mercearia ou venda à moda antiga que “tem de tudo um pouco”, se passa em uma avenida do Bairro Maria Cândida, na periferia de Montes Claros, cidade polo do Norte de Minas (414,3 mil habitantes). Mas poderia ser observada em inúmeras outras cidades pelo interior de Minas afora, depois de se tornar de certa forma comum em vários pontos de comércio da capital, especialmente na periferia e dependendo do ramo de negócio.
Não é um fenômeno isolado, assim como não o é o incômodo que provoca entre consumidores. Diante da escassez de dados de abrangência semelhante em relação ao comércio no país, é interessante observar os resultados de uma pesquisa realizada em 2024 pela consultoria norte-americana A Closer Look – empresa com mais de 25 anos de mercado – nos Estados Unidos, onde 77,3% dos consumidores afirmaram encontrar mercadorias trancadas “às vezes”, com 16,7% enfrentando essa barreira “quase sempre” ou “sempre”. Desse total, 46,4% dos compradores relatam que a mercadoria trancada torna sua experiência de compra inconveniente.
Esse incômodo se traduz em mudanças de hábitos que prejudicam as vendas nas lojas e até nos centros comerciais, com 44,8% dos clientes dizendo que, ao encontrar itens trancados, dependendo da situação, recorrem a varejistas terceirizados ou ao comércio on-line, como a Amazon. E 36,2% chegam a desistir completamente da intenção de comprar.
Um dado curioso é o limite da paciência dos consumidores para aguardar até que atendentes desencarcerem a mercadoria: 83,8% dos clientes toleram um tempo de resposta de 4 minutos ou menos ao buscar assistência para itens trancados. O impacto vai além, resvalando na confiança transmitida pelo estabelecimento, com 71,8% dos compradores associando medidas de segurança a um maior risco de roubo, o que pode prejudicar a percepção da marca. E 73,5% dos entrevistados afirmaram se sentir mais seguros em ambientes bem iluminados, preferindo medidas de segurança sutis a barreiras óbvias de compra.
Conforto ou proteção: o dilema para lojistas
Pressionados de um lado pela necessidade de atender bem aos clientes e oferecer preços competitivos e de outro pela tentativa de conseguir mais segurança com medidas como câmeras de vigilância, mercadorias trancadas, cercas e grades, comerciantes de Minas veem na ação de ladrões um desafio contínuo. Ameaça representada também por furtos no interior de estabelecimentos, que da mesma forma levam a medidas que dificultam ou até inibem o consumidor.
No estado, os furtos ao comércio somaram 34.577 ocorrências em 2022, passando para 32.791 em 2023 e para 31.393 em 2024. Apesar da redução geral no estado, o interior mantém a maior parte das ocorrências, com 20.685 registros em 2022, 19.089 em 2023 e 18.424 em 2024, representando de 58% a 59% do total estadual a cada ano.
Porém, a ação de ladrões é agravada quando há uso de violência ou ameaça com emprego de armas, nos crimes categorizados como roubos. Das 8.091 ocorrências desse tipo no estado entre 2022 e 2024, armas de fogo foram usadas em 4.512 casos (55,7%) e armas brancas, em 1.014 (12,5%).
Em termos de alvos, os postos de combustível foram os estabelecimentos mais roubados em Minas entre 2022 e 2024, com 1.456 registros, seguidos por bares, lanchonetes e restaurantes (1.347) e outros estabelecimentos comerciais e de serviços (1.233). Mercearias, sacolões e supermercados também foram frequentemente visados, com 1.117 ocorrências.
Assaltantes do lado de fora. Clientes, também
É nessa última categoria que pode ser enquadrado o estabelecimento de Cristóvão Ferreira Amorim, o comerciante do início desta reportagem que, após dois assaltos à mão armada, decidiu colocar uma barreira metálica na porta, que mantém ladrões do lado de fora. Mas também os fregueses. Assim como ele, donos de outros estabelecimentos em regiões vulneráveis de Montes Claros passaram a trabalhar atrás das grades na esperança de se proteger contra roubos.
O “sistema” é uma variação mais barata – e menos eficaz – do modelo adotado casas lotéricas, onde atendentes ficam atrás de vidros à prova de balas. Mas com uma diferença: nas loterias, os clientes podem entrar no estabelecimento. No caso de pontos de comércio atrás das grades, os consumidores normalmente são atendidos na calçada mesmo.
“Fico muito triste com essa situação. A gente trabalha, trabalha e não tem valor. Vem o bandido, leva tudo e a gente termina ficando desprotegido. É por isso que existe essa grade”, explica Cristóvão Amorim. “É muito cruel. A gente que é comerciante pequeno, colabora com o futuro do Brasil. Gera lucro, emprego e uma receita para o país. Mas, no fim, a gente não tem valor”, completa.
A normalização da criminalidade
Cristóvão mandou instalar as grades na entrada de sua venda logo após o segundo assalto. A cena de pessoas na calçada em frente ao comércio, fazendo pedidos enquanto Cristóvão entrega as mercadorias por um pequeno buraco na grade, pelo qual também recebe o pagamento em dinheiro ou passa o cartão de débito/crédito em uma maquininha, chama a atenção de quem passa pelo local.
Porém, o comerciante acredita que os fregueses, mesmo que incomodados, já consideram o fato como “normal”. “O povo já se acostumou, porque entende que a segurança hoje é precária. Então, vendo as grades em um comércio desse porte aqui, as pessoas sabem que a gente tem que se defender contra a violência, contra os crimes. A maioria já entende, principalmente, na parte da cidade que é periferia. Então, para eles, hoje, isso é normal”, relata.
Mesmo assim, Cristóvão se queixa da vulnerabilidade. “E o primeiro ponto em que a gente é vulnerável é a falta de segurança. Um dos piores problemas do comércio”, reclama. Ele cita os assaltos-relâmpago como um dos maiores temores dos pequenos comerciantes. “O bandido chega de uma vez, te rouba e você fica indefeso. A pessoa vai à delegacia, 'dá parte'. A polícia fica imbuída de procurar e nunca acha. Aí, a gente fica no prejuízo”, descreve.
Como uma das medidas para inibir assaltos ao comércio nos bairros, Cristóvão sugere a instalação de mais câmeras de segurança. “O primeiro passo para ajudar no combate a esse tipo de crime seria os governos federal, municipal ou estadual instalarem câmeras em cada esquina. Seria uma medida eficaz” acredita.
“A gente está presa, os bandidos estão soltos”
No Bairro Doutor João Alves, área vizinha ao endereço de Cristóvão, a comerciante Leilene Fabrícia Ferreira Alves também trabalha atrás das grades no estabelecimento da família, que conta com uma variedade de produtos, desde alimentos e material de limpeza até tubos e conexões. “Eu sinto que a gente está presa enquanto os outros, os bandidos, estão soltos. A gente precisa trabalhar dessa forma aqui e não pode deixar o estabelecimento sem a grade, por conta da segurança”, afirma.
Leilene lembra que a venda da família conta com câmeras de vigilância. Ainda assim, se sentiu obrigada a instalar grades de proteção na porta para impedir os roubos e assaltos. “A gente, infelizmente, tem que trabalhar atrás das grades. Tem de se resguardar e cuidar do nosso patrimônio. E a maneira que a gente encontrou para isso foi trabalhar preso aqui dentro”, define.
A comerciante cobra o reforço do policiamento nos bairros para garantir maior segurança ao comércio. “Acredito que o poder público poderia ter um policiamento maior nas ruas e na comunidade. Acho que poderia perceber que nós, comerciantes, empresários e pequenos empresários, precisamos ter segurança”, conclama Leilene. Ela também reivindica “leis mais rígidas” para a punição aos criminosos.
Pai de Leilene, Ezequiel Alves Neto, que trabalha no comércio há cerca de 30 anos, diz que “já se acostumou” com as grades na porta do estabelecimento. Já outro filho, Leilânio Ferreira Alves, reclama de ter que trabalhar atrás da barreira metálica para garantir sua segurança e a do estabelecimento. “Vivo deprimido e cansado por causa dessa falta de segurança. A gente acredita na justiça, mas ela não está funcionando para proteger o cidadão de bem”, lamenta.
Leilânio cobra das autoridades leis que possam garantir a segurança dos comerciantes, dos seus estabelecimentos e de todas as pessoas. “Reivindico do Estado leis que possibilitem que todo comércio fique aberto e todas as pessoas possam viver mentalmente e socialmente bem”, disse o morador de Montes Claros.
Em outra parte da cidade, na Vila Ipiranga, a comerciante Leopoldina Rodrigues Pereira também tem uma barreira que a separa dos fregueses de sua mercearia. Ela revela que recorreu à instalação das grades na porta do estabelecimento há oito anos, após ser vítima de dois assaltos à mão armada.
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Leopoldina recorda que na última vez em que foi assaltada, o criminoso chegou na porta de sua “venda” de bicicleta, armado com um revólver. Após rendê-la, roubou o dinheiro do caixa, fugindo em seguida, sem deixar pistas. “O problema é que, às vezes, a polícia prende o ladrão de manhã e, à tarde, ele está solto. Acho que é preciso ter leis mais rigorosas”, reivindica. A comerciante disse que ficou muito tempo abalada após os dois assaltos que sofreu. Após a instalação das grades, conta que passou a sentir mais segurança e já se recuperou do trauma.
Vizinho à mercearia de Leopoldina, o aposentado João Soares, de 80 anos, completa a renda com um pequeno “boteco”, como ele próprio define, no qual vende miudezas como doces, biscoitos e cigarros. É outro que trabalha atrás das grades. “A gente precisa se proteger dos vândalos e dos malfeitores”, resume o aposentado.