Ouro Preto – Nas cidades do interior mineiro, a Sexta-feira da Paixão é, religiosamente, um dia de silêncio em respeito à morte de Jesus. Não há toque de sinos, missas, rádio com volume alto, barulho nos estabelecimentos comerciais. O único som, nas ruas, vem das matracas, a peça de madeira com chapa e argola de metal, dos dois lados, que se agita nas mãos de voluntários das paróquias, da noite de quinta-feira à manhã de sábado.

 

“Aqui em Ouro Preto, a Semana Santa tem cor, cheiro e som. A primeira se encontra na opa (veste) das irmandades e ordens terceiras (associações de leigos) e no roxo que cobre os altares. O cheiro vem do incenso, do manjericão, enquanto o som está nas bandas de música e nas matracas”, conta o reitor do Santuário Nossa Senhora da Conceição, no Bairro Antônio Dias, monsenhor Edmar José da Silva, que será empossado bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte em 11 de maio.

 

Segundo monsenhor Edmar, as matracas começam a soar na noite de quinta-feira, logo após a cerimônia da Santa Ceia, quando ocorre a transladação, em cortejo dentro das igrejas, do ostensório com o Santíssimo Sacramento. “O barulho das matracas lembra a dor, o sofrimento, a tristeza pela morte de Jesus.”

 



 

Calos e bolhas

 

Na equipe da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, de Ouro Preto, estão os primos Rafael Barreto, de 20 anos, técnico em administração, e Mateus França, de 22, estudante de conservação e restauração. Residentes nas proximidades do santuário barroco, os jovens dizem que aprenderam a manejar as matracas ainda bem cedo, observando os mais velhos. Em algumas ocasiões, os dois fizeram sua própria matraca, mas costumam usar as do acervo da igreja, que são antigas.

 

Integrantes da Irmandade do Santíssimo Sacramento – na foto desta matéria, Rafael usa a opa vermelha –, Rafael e Mateus já se acostumaram com o movimento, a partir da rotação do antebraço, que pode durar horas, dependendo da cerimônia. “Sou sineiro, e garanto que trabalhar com o sino é bem mais difícil. Quem é sineiro, geralmente toca matraca”, conta Rafael.

 

Na Paróquia Nossa Senhora da Conceição, há oito rapazes encarregados de manejar as matracas. Mateus, que também é instrumentista (toca teclado), diz que as mãos “penam” ao final da tarefa. “Costuma dar bolha e calo nos dedos. Mas a gente não reclama”, sorri ao mostrar as marcas na pele.

 

 

Poesia modernista

 

As matracas de Ouro Preto, que comemora o centenário da Caravana Modernista, grupo de paulistas que passou pelas cidades histórias de Minas na Semana Santa de 1924, dois anos após a Semana de Arte Moderna de 22, em São Paulo (SP), mereceram o olhar atento do escritor e dramaturgo Oswald de Andrade (1890-1954). No poema “Semana Santa”, ele escreveu:

 

“A matraca alegre

Debaixo do céu de comemoração

Diz que a Tragédia passou longe

O Brasil é onde o sangue corre

E o ouro se encaixa

No coração da muralha negra

Recortada

Laminada

Verde”

 

No grupo que visitou Minas em 1924, estavam também o escritor e poeta Mário de Andrade (1893-19456) e a artista plástica Tarsila do Amaral 1886-1973). O poema “Semana Santa” está na obra “Pau-Brasil”, de 1923, impresso em Paris e com uma seção chamada “Roteiro das Minas”, trazendo capa e ilustrações de Tarsila do Amaral.

 

No município vizinho de Itabirito, Leandro Dias de Oliveira, de 48, atua desde a infância na Matriz Nossa Senhora da Boa Viagem, construção de 1709. “A Sexta-feira da Paixão é um dia de silêncio, o único som que se ouve é da matraca”, diz Leandro, lembrando que o registro da primeira Semana Santa em Itabirito é de 1710.

 

 

Sineiro na matriz e ex-coordenador da equipe de coroinhas da paróquia, Leandro observa que na Sexta-feira da Paixão não nem toque de sino nos templos católicos. “Aprendi a manejar a matraca com o frade franciscano Edson Damasceno, hoje pároco em Juiz de Fora, na Zona da Mata. O segredo está na continuidade, na força para agitar a matraca. São três toques saudando o Pai. A partir daí, é só seguir batendo o metal na madeira”, revela Leandro.

 

Meninos e meninas

 

Se alguém pensa que as matracas são exclusivas dos meninos, está enganado. Em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, elas estão nas mãos também das meninas. “Aqui, isso ocorre há vários anos. Os acólitos (adolescentes acima de 15 anos que ajudam o sacerdote nas funções litúrgicas) são os responsáveis por tocar a matraca”, informa o coordenador do grupo de coroinhas e acólitos da Paróquia Santa Luzia, Jorge Junio da Conceição Romeu, de 21.

 

Na tricentenária cidade, o som das matracas é ouvido logo no início da Semana Santa, na noite de segunda-feira, durante a Procissão de Encomendação das Almas, que parte do Cemitério do Carmo em direção ao Santuário Arquidiocesano Santa Luzia, na Praça da Matriz. À frente, segue o reitor do santuário, padre Felipe Lemos de Queirós, que, antes conduziu a Procissão do Depósito de Nosso Senhor dos Passos.

 

 

Padre Felipe Lemos de Queirós, do Santuário de Santa Luzia, com as jovens que fazem parte do grupo de acólitos da Paróquia Santa Luzia

GUSTAVO WERNECK/EM/D.A PRESS

 

“Temos matracas na Segunda-feira Santa e na Sexta-Feira da Paixão. Na paróquia, são 28 acólitos, que vão se revezando durante o cortejo. O segredo está em bater bem forte, mas com ritmo. Há matracas maiores que exigem mais força”, explica Jorge Junio.

 

A jovem Rayssa Andrade da Silva, de 18, estudante de Recursos Humanos, está há dois anos no grupo de acólitos e manejou a matraca, na segunda-feira, pela primeira vez. “A gente quebra a unha, bate a mão, mas não tem problema. Vale a pena, pois é para Deus. Fico pensando o quanto Jesus sofreu, é também um momento de meditação”, ressalta a luziense.

 

O som das matracas irá até o início do tríduo pascal, na manhã do Sábado Santo (antigamente chamado de Sábado de Aleluia). Nesse dia, os cristãos vivem a véspera da ressurreição, quando as igrejas promovem, à noite, a Bênção do Fogo Novo e a vigília pascal.


 

Som estridente

 

Segundo pesquisas, a matraca é um idiofone ou idiófono, uma peça de madeira com dois batedores, no formato da letra U, fixados um em cada lado. Quando agitados, batem contra a madeira produzindo o som estridente.

 

Herança portuguesa, está presente originalmente nas procissões da Igreja Católica durante a semana santa. No Dicionário Aurélio, idiofone é o instrumento que soa por si mesmo mediante a percussão.

 

A tradição de não tocar os sinos nas igrejas durante a Semana Santa surgiu no século 7, em sinal de luto (entre a Quinta-feira Santa e o Domingo de Páscoa).

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