Em 2021, o arquiteto e escritor paulistano Toni Grado lançou “Não Homem Não Branco – Eleições, trapaças e carros possantes”. Era o primeiro volume de um projeto ousado: uma tetralogia literária que ficcionaliza a teoria da esquizoanálise desenvolvida pelos pensadores Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992).

Vieram na sequência “Não Homem Não Branco – O revolucionário, a surra e os fatos mal passados” (2023) e, mais recentemente, “Campanha, alianças e impostores”, publicado em novembro passado pela Nine Editorial.


Para compreender as camadas mais profundas da saga, é indispensável revisitar o pensamento de Deleuze e Guattari. Elaborada na década de 1970, sobretudo nas obras “O anti-Édipo” e “Mil platôs”, a esquizoanálise surge como alternativa radical às tradições freudianas e lacanianas, que colocam no centro da constituição do sujeito o triângulo familiar (pai, mãe e filho) e o desejo enquanto falta.

A dupla propõe uma virada completa, na qual o desejo deixa de ser entendido como ausência e passa a ser visto como potência produtiva, força criadora, motor de invenção.

Nesse contexto, o “esquizo” simboliza aquele que escapa aos modelos normativos que tentam aprisionar o desejo em formas pré-estabelecidas. Não é um sujeito desorganizado, mas alguém que experimenta o mundo em fluxos, conexões e desvios.

É nesse ponto que emergem três conceitos essenciais: territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Territorializar é fixar; desterritorializar é romper, abrir passagem; e reterritorializar é reorganizar o vivido após a fuga.

Captura e escape

A esquizoanálise se torna, então, uma ferramenta para compreender esse movimento contínuo de captura e escape – tanto no plano psíquico, quanto no social, político e artístico. Família, Estado e moral aparecem, assim, como aparelhos de captura, mecanismos que buscam domesticar a potência criativa do desejo.

Com esse pano de fundo, volta-se à saga “Não Homem Não Branco”, definida por Toni Grado como um projeto de “filosofia delirante”. A narrativa se passa na metrópole imaginária de Cravos e gira em torno de uma eleição para prefeito. De um lado, Robert Kotac, banqueiro direitista alucinado e fã de rachas; de outro, Alexandre Dragum, esquerdista obstinado e chefe de campanha do principal partido de esquerda.

O confronto entre ambos ganha contornos ainda mais intensos após o assassinato brutal de um engenheiro. Tudo indica que o crime foi cometido por um dos homens de Não Branco, importante liderança do tráfico local, em um bairro pobre estratégico para a disputa por estar encravado em uma área rica da cidade.


A tragédia catalisa a guerra suja entre Kotac e Dragum, abrindo espaço para a figura de Não Homem, uma professora universitária andrógina que surge como candidata independente.

Disputa eleitoral

No segundo volume, a disputa eleitoral se acirra, e o autor aprofunda a história dos protagonistas. É nesse momento que o leitor descobre a origem do ódio de Dragum por Kotac – um episódio marcante da juventude que molda a obsessão do banqueiro pela vitória.

Também é apresentada a trajetória de Não Homem, marcada pela violência sexual e por reflexões sobre as imposições sociais que moldam o gênero.

Sua história é talvez a mais complexa, e ganha novos contornos com o avanço da corrida eleitoral.
Paralelamente, a investigação do assassinato iniciado no primeiro livro segue seu curso, aproximando-se de uma solução à medida que o passado dos personagens é desvendado.

“Eu não queria meramente fazer os personagens discursarem as ideias do Deleuze, e sim criar situações em que os conflitos vivenciados por eles espalhassem um pouco a problemática posta por ele”, explica o autor.

Briga com o mundo

No terceiro volume, a relação entre Não Branco e Não Homem ganha destaque. Vindo de mundos distintos, o líder do tráfico decide apoiar a candidatura da professora, gesto que causa estranhamento geral, por razões que o autor se dedica a explorar.

“Gosto da ideia do ‘não ser’ como uma coisa que briga com o mundo”, diz Toni, referindo-se aos nomes de seus personagens. “Acho que o mundo está um pouco saturado de representações, categorias e rotulações, que, no final das contas, não facilitam nada. Nem nas negociações, nem para a gente ser feliz consigo mesmo.”

Toni Grado já prepara o quarto e último volume da tetralogia, previsto para o primeiro semestre de 2026. A obra encerra a trajetória dos personagens e amarrará as linhas de fuga de sua “filosofia delirante”.

Nine/reprodução

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“NÃO BRANCO NÃO HOMEM – CAMPANHAS, ALIANÇAS E IMPOSTORES”


• Livro de Toni Grado
• Nine Editorial
• 376 páginas
• R$ 78
• Primeiro e segundo volumes à venda por R$ 66,90 e R$ 78, respectivamente.

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