LITERATURA

Em artigo, Fabíola Farias resgata memória da literatura infantil em BH

Autora do livro 'As crianças e os livros em Belo Horizonte: exercícios de memória' traça um panorama histórico dos livros para crianças na capital

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Fabíola Farias

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A história da literatura infantil e dos livros para crianças no Brasil conta muitas histórias, incluindo a da infância no país. As expectativas em relação às crianças e à sua formação podem ser facilmente apreendidas na produção editorial a elas destinada ao longo do tempo. No século 19 e nas primeiras décadas do século 20, os livros para este público promoviam sentimentos pátrios e o uso virtuoso da língua portuguesa (que era a de Portugal, não a falada no país...), valores morais e religiosos (os da elite política e econômica, em detrimento de todos os outros...), registros iniciais de brincadeiras e cantigas da tradição popular e traduções de obras juvenis europeias. Monteiro Lobato representa, indiscutivelmente, um marco nessa história: é com a publicação de “A menina do narizinho arrebitado”, em 1920, que as crianças conhecem, na literatura, pares curiosos, inventivos, questionadores e falantes da língua brasileira. 

A obra lobatiana, atualmente na berlinda em razão de contornos racistas de seus personagens e do próprio autor, fez sucesso imediato com as crianças, mas incomodou grupos conservadores, que se posicionaram contra os exemplos de irreverência que os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo ofereciam aos pequenos. Nas décadas seguintes, os livros para a infância seguiram o modelo mais pedagógico de transmissão de valores morais e de conteúdos escolares, com narrativas mornas, que revelavam os leitores ideais desta produção, à exceção de uns poucos títulos que, na esteira de Lobato, celebraram a inteligência e a sensibilidade das crianças, como “A terra dos meninos pelados”, de Graciliano Ramos, em 1939, e “O menino poeta”, de Henriqueta Lisboa, em 1943. 

Curiosamente, é na ditadura civil-empresarial-militar que a literatura infantil brasileira se renova. Distantes da tutela dos generais, provavelmente em razão da pouca importância atribuída às crianças pelo regime, escritores, ilustradores e editores começaram a publicar livros que deslocaram as concepções então vigentes de infância e, consequentemente, de literatura e leitura para este público. 

Temas e experimentos com a linguagem até o momento incomuns nessa produção, como as desigualdades sociais, a violência e o autoritarismo, entre outros, passaram a fazer parte das narrativas dedicadas aos pequenos, cujas vozes se colocaram ficcionalmente em primeira pessoa, narrando medos, angústias, sonhos e desejos. As crianças obedientes e domesticadas das narrativas infantis tiveram que dividir a atenção dos leitores concretos com personagens e histórias que interrogavam tempo, espaço e relações, explorando sentimentos, ideias, experiências e demandas raros nestes livros. 

Belo Horizonte foi palco de importantes iniciativas e debates nos anos 1970 e 80, período conhecido como o do boom da literatura infantil brasileira. A cidade criou, em 1974, o Concurso Nacional de Literatura Prêmio João-de-Barro, o primeiro exclusivamente dedicado à criação literária para a infância, que segue em realização.

Em julho de 1975, o jornalista e escritor Wander Piroli lançou “O menino e o pinto do menino”, seu primeiro livro para crianças, que, por motivos enviesados, logo se colocou no centro de um inflamado debate de repercussão nacional sobre temas sensíveis na literatura infantil. O livro de Piroli deu origem à emblemática Coleção do Pinto, editada em Belo Horizonte por André Carvalho, pioneira na publicação de narrativas sobre temas considerados polêmicos nos livros para crianças. Além de Wander Piroli, importantes autores da literatura brasileira escreveram para a Coleção do Pinto e se engajaram na discussão por ela provocada. 

Belo Horizonte também foi pioneira na criação de livrarias dedicadas à literatura infantil e juvenil, a Casa de Leitura e Livraria Miguilim. Em 1979, Maria Antonieta Antunes Cunha, Ana Maria Clark Peres e Marília Campos inauguraram uma livraria onde as pessoas, especialmente crianças, adolescentes e educadoras, podiam folhear, ler e ver os livros, participar de atividades literárias e de encontros com autores, conversar sobre suas leituras e fazer cursos sobre literatura infantil e juvenil. O sucesso da Miguilim logo expandiu sua atuação e a livraria se tornou também editora. Além do catálogo premiado nacionalmente, a Miguilim foi a primeira casa de muitos escritores e ilustradores que hoje compõem o cânone da literatura infantil brasileira. 

Há muitas informações sobre a literatura infantil e a leitura das crianças em Belo Horizonte à espera de pesquisa, organização e difusão. Nas estantes das bibliotecas, na memória de autores, editores, pesquisadores e leitores, em jornais e revistas de décadas passadas, entrevistas, artigos, notas e até mesmo as colunas sociais contam histórias sobre livros, literatura e infância na capital mineira e no país (a coluna “Gente, livros & bichos”, deste Estado de Minas, no período em que foi assinada por Henry Corrêa de Araújo, é um bom exemplo disso). 

Os livros oferecidos às crianças dizem muito sobre nossas concepções de infância. As histórias narradas, assim como as silenciadas, as escolhas artísticas e os enfrentamentos públicos aos quais nos dispomos refletem visões de mundo e projetos de sociedade. Belo Horizonte é uma personagem importante na história literária, editorial e cultural brasileira e tem muito a contar sobre as crianças e os livros no país. A capital mineira vem contribuindo, ao longo de décadas, para a afirmação da literatura infantil como sistema e de sua leitura como experiência de educação estética. 

FABÍOLA FARIAS é pesquisadora na área de leitura, infância e bibliotecas, atuando em projetos educacionais e artístico-culturais neste segmento. Autora de “As crianças e os livros em Belo Horizonte: exercícios de memória”, é leitora votante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) desde 2010.

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