Adélia Prado, 90 anos: 'Estou em estado de gratidão pela vida'
Edição especial do Pensar celebra as nove décadas da poeta de Divinópolis com análise do primeiro livro de inéditas em 12 anos, reportagem, artigo e entrevista
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“Palavras, quero-as antes como coisas.”
O desejo expresso nos versos de “Em português” resume a voracidade desconcertante e luminosa da mineira Adélia Prado, que nos assombra desde a abertura de “Bagagem” (1976): “Mulher é desdobrável/ Eu sou”. Nossa senhora dos versos e prosas, a inventora de modos de dizer o indizível chega neste sábado às nove décadas de existência. “Nunca me imaginei fazendo 90 anos. Mas, quando chega, você percebe que não é nenhum bicho-papão! Estou em estado de gratidão pela vida!”, afirmou, ontem, ao Estado de Minas.
“A borboleta pousada/ ou é Deus/ ou é nada.”
O presente de aniversário veio de Divinópolis e foi ofertado aos leitores com o lançamento de “O jardim das oliveiras”, primeiro livro de inéditos em doze anos, analisado por Gláucio Zani nesta edição especial do Pensar. Reportagem especial de Gustavo Werneck e artigo de Leônidas Oliveira completam a edição, que resgata uma entrevista da autora no início da carreira e publica poemas selecionados de diversas fases de uma obra sem par na literatura brasileira. Entre eles, “A bela adormecida”, do livro “O pelicano”, selecionado pela autora para esta edição “por dizer mais sobre aniversários do que qualquer coisa que eu possa falar”.
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“Sob juramento lhes digo:
tenho 18 anos. Incompletos.”
Adélia faz poesia que toca o “coração da gente – o escuro, escuros” (De “Grande sertão: veredas”, reproduzido na epígrafe de “A faca no peito”) e outras partes do corpo também. Palavras sem fel, versos aos céus. Ela cumpre a sina: o que sente, escreve. Deus esteja, louvada seja.
***
"A Bela Adormecida"
Estou alegre e o motivo
beira secretamente à humilhação,
porque aos 50 anos
não posso mais fazer curso de dança,
escolher profissão,
aprender a nadar como se deve.
No entanto, não sei se é por causa das águas,
deste ar que desentoca do chão as formigas aladas,
ou se é por causa dele que volta
e põe tudo arcaico como a matéria da alma,
se você vai ao pasto,
se você olha o céu,
aquelas frutinhas travosas,
aquela estrelinha nova,
sabe que nada mudou.
O pai está vivo e tosse,
a mãe pragueja sem raiva na cozinha.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
Quando ele fala roreja,
quando ele vem eu sei,
porque as hastes se inclinam.
Eu fico tão atenta que adormeço
a cada ano mais.
Sob juramento lhes digo:
tenho 18 anos. Incompletos.
(O poema acima, do livro “O pelicano”, de 1987, foi escolhido por Adélia Prado para esta edição do Pensar: “Ela disse que o poema diz melhor sobre aniversários do que qualquer coisa que ela possa falar”, afirmou Ana, filha de Adélia)
***
“Do amor”
Assim que se é posto à prova,
na cinza do óbvio, quando
atrás de um caminhão vazando
o homem que pediu sua mão
informa:
‘está transportando líquido’.
Podes virar santa se, em silêncio,
pões de modo gentil a mão no joelho dele
ou a rainha do inferno se invectivas:
claro, se está pingando,
querias que transportasse o quê?
Amar é sofrimento de decantação,
produz ouro em pepitas,
elixires de longa vida,
nasce de seu acre
a árvore da juventude perpétua.
É como cuidar de um jardim,
quase imoral deleitar-se
com o cheiro forte do esterco,
um cheiro ruim meio bom,
como disse o menino
quanto a porquinhos no chiqueiro.
É mais que violento o amor.