ADÉLIA PRADO 90 ANOS

Adélia Prado: a poeta do futuro feminino

Em artigo, Leônidas Oliveira compara a produção poética de Adélia Prado à prosa de Guimarães Rosa: 'Ambos ergueram Minas ao grau máximo da linguagem'

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LEÔNIDAS OLIVEIRA

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Ao completar 90 anos, Adélia Prado nos entrega, com o novo livro “O jardim das oliveiras”, o sopro vital de sua poesia. O lançamento vem carregado de esperança. São quase quinze anos desde “Miserere”— obra que li e ouvi dezenas de vezes, como quem busca consolo e desassombro. Na infância, ainda na escola municipal Alfredo Balena, em São Gotardo, participei de recitais em que seus versos eram declamados. No seminário, os ecos de sua fé encarnada na linguagem me acompanharam como um catecismo poético. E até hoje, nas tardes em casa, a ouço em voz alta, como se suas palavras fossem uma oração mineira, uma brisa do sertão.

Há autores que nos descrevem; há outros que nos decifram. Adélia é dos que nos revelam. Como uma bruxa visionária, vê o que ainda está por nascer. Vê o feminino como centro do futuro. Não o feminino como oposto do masculino, mas como sensibilidade que cura, gesto que reza, corpo que dança e ama. “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”, ela escreveu em “Bagagem” (1976), seu livro de estreia, num dos poemas mais citados e fundamentais de nossa literatura. Mas logo depois, essa mesma voz diz: “O que a memória ama, fica eterno.”

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Adélia está para a poesia como Guimarães Rosa para a prosa: ambos ergueram Minas ao grau máximo da linguagem. Guimarães inventou o sertão pela reinvenção da fala; Adélia revelou o sertão por dentro da alma. São Minas tropeiras, filosóficas, barrocas, rezadeiras. E se Rosa for o profeta do sertão mítico, Adélia é a santa do quintal. Em “O coração disparado” (1978), ela declara: “Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento.” Essa é a sua ética estética: uma fusão entre pensamento e sensibilidade. 

Adélia Prado sempre foi uma poeta da inteireza. Religiosa e sensual, doméstica e metafísica. Seus versos desafiam o reducionismo e abrem a linguagem para contradições que não se anulam, mas se iluminam mutuamente. “Erótica, a senhora? — Sou.”– responde ela em um poema que se tornou epifania para gerações de leitoras. A mulher que reza e que deseja; a esposa que filosofa ao varrer o chão. Em “Terra de Santa Cruz”(1981), lemos: “Se a alma não for lavada todo dia, enguiça.” Há nesse verso uma síntese de sua teologia poética: o cotidiano é sagrado, o espírito se hospeda no corpo, e Deus mora no fogão a lenha.

A crítica literária demorou a compreender a força revolucionária de Adélia. Como bem notou Flora Sussekind, sua poesia é “um campo de embate entre o sagrado e o prosaico, o corpo e o verbo, a transcendência e o balde de água”. Já Heloísa Buarque de Hollanda escreveu que a autora de “O pelicano”(1987) deu às mulheres “uma linguagem do desejo sem culpas e uma gramática do amor cristão que não exclui o prazer”. Adélia desfez dicotomias. Ela não habita margens: ela as dissolve. Por isso sua obra é sempre nova. Por isso é contemporânea — e por isso ainda não foi plenamente compreendida.

“Oráculos de maio”(1999), “Louvação da matéria”(1991), “A faca no peito”(1988), “Solte os cachorros”(1979), “Diligência”(2019): em todos seus livros, a poesia vem com o corpo da fala, com os ossos da terra. Não há nela ornamento sem carne. Até mesmo “Cacos para um vitral”(1980), título aparentemente etéreo, é cheio de uma concreção espessa — de lágrimas, sangue e arroz com feijão. Em um de seus versos mais cortantes, ela diz: “Tenho pena das palavras com que me traí.”E em outro: “A mulher que chora não é fraca. Ela rega.” Essa é Adélia: flor, faca e fonte. 

Seus prêmios são muitos — o Jabuti, o da Academia Brasileira de Letras, o Griffin Poetry Prize (Canadá), o reconhecimento internacional. Mas talvez o maior prêmio de Adélia seja outro: ela está viva e lúcida aos 90 anos, criando. E mais que isso: sendo lida por jovens, por mães e pais, por professores e lavadeiras. Sua poesia não é feita para eruditos, mas para corações de carne. Ela é lida por quem precisa de sentido, e não de teoria. Sua obra não se fecha: ela germina. 

“Eu sou do sertão e suas palavras ecoam em mim como uma revelação de quem fui e sou.”Por isso leio Adélia. Porque suas palavras são lavra e profecia, pão e penitência. Porque, como disse em “Miserere”(2011): “Tudo que a boca come é sagrado.”E porque ela nos ensina que o mundo será salvo pelo feminino — e pela poesia. 

LEÔNIDAS OLIVEIRA é arquiteto e urbanista, filósofo, professor, MsC e PhD

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