Adélia Prado: 'Aquilo que é humano, que é real, é matéria de poesia'
Em uma das primeiras entrevistas ao Estado de Minas, em 1979, Adélia Prado explica por que religião, sexo e política têm o mesmo peso em sua obra, cita o deslum
compartilhe
SIGA
Três anos após a estreia estrondosa com “Bagagem” e a “bênção” pública de Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado já não era mais promessa. Autora consagrada, colhendo os frutos de seu segundo livro (“O coração disparado”) e prestes a lançar seu primeiro livro de prosa, “Solte os Cachorros”, ela conversou com o Estado de Minas, em entrevista publicada no dia 24 de março de 1979.
No texto, republicado abaixo, encontramos a poeta de Divinópolis em um momento entre dois mundos. Poeta celebrada nos centros urbanos, ela ainda dividia os versos e os livros com a vida de dona de casa e as aulas para alunos do ensino fundamental. Assuntos do momento, como o início da abertura política, não escapam do olhar de Adélia – ainda que ela, com sua fina ironia, garantisse que “a censura a ignorava”.
Leia: Adélia Prado, 90 anos: 'Estou em estado de gratidão pela vida'
Leia: Adélia Prado medita sobre a existência em 'O jardim das oliveiras'
Leia: Adélia Prado: a poeta do futuro feminino
Leia: A poesia em feitio de oração de Adélia Prado
O que surpreende na entrevista a Domingos Sávio, quase meio século depois, não é o que envelheceu, mas o que permaneceu intacto. Entre reflexões sobre a necessidade de emancipação das mulheres ou as angústias entre o sagrado e o profano como material para poesia, flagramos Adélia Prado num momento em que ela já sabia exatamente quem era, muito antes do resto do mundo entender.
Adélia, como foi sua escalada poética para se colocar num lugar de destaque dentro da nossa literatura, já que, conforme Affonso Romano, de vinte anos pra cá, nossa poesia foi um pouco fraca em relação a novos poetas?
Escalada fica parecendo que a gente fez sucesso igual a quem tirou prêmio de loteria, né? Mas enfim, de certa forma, em literatura, a gente ganhar o respeito da crítica e o amor das pessoas que lêem o livro realmente é uma coisa muito boa. E aconteceu exatamente a partir de 1976, com a publicação de “Bagagem”. O livro teve uma acolhida boa e uma coisa que considero importantíssima e que acho que todo poeta quer: é essa ressonância no povo, nas pessoas. Quer dizer, eu falo povo, o livro teve uma tiragem de 3.000 exemplares, você sabe como que é edição de poesia. Mas assim, manifestações de pessoas, cartas que falam: li o livro, gostei e (aí chega o sr. José, que é convidado por todos a sentar-se) de maneira que isso que a gente pode chamar de escalada ou então conseguir alguma coisa nesse sentido, pra mim tem essa importância.
Depois da publicação de “Bagagem”, com a crítica bastante favorável, você sentiu o peso de ser poeta?
Se eu tivesse me iniciado nisso que a gente chama de vida literária, isso realmente poderia provocar compromissos ou pesos, mas de ordem social, essa coisa assim. Como isso não ocorreu, eu acredito que está preservada esta alegria de fazer poesia, de escrever um livro de poesia.
Como é que tudo começou?
Começou quando em 1975 eu mandei um livro de poemas pro Drummond, quer dizer, eu tava com o livro pronto, acreditava no livro, achei que aquilo era um livro de poesia, falei assim: ‘ah!, preciso mostrar para alguém’, né? Então mandei pro Drummond e ele encaminhou para editora. Na ocasião era o diretor, da Imago, o Pedro Paulo de Sena Madureira e foi onde ele viu o livro e tal, daí… daí todo mundo sabe a estória.
O primeiro livro teve lançamento no Rio, São Paulo, um almoço na casa do Drummond...
Não teve almoço, não. Aquilo foi uma confusão medonha, sabe? (ri) Nós fomos à casa do Drummond, ele nos recebeu lá e não estava só a gente. Estava o Alphonsus de Guimaraens Filho, o editor, os amigos. Aquilo foi confusão do Affonso que levou sabendo do negócio por informações e foi lá e uma trocazinha, uma recepção. Não foi almoço. Fui convidada a visitá-lo e o fiz, mas isso você nem menciona não. E só aqui pra gente.
Você diz também em sua poesia que dos seus, só você conhece o mar, o Rio, aquelas coisas todas. Como você se sentiu em meio de Drummond, Rubem Braga, de tanto literato, de Juscelino Kubitschek… (ela ajuda) de Clarice…
Eu me senti deslumbrada, como um bom mineiro deve ficar, né? Primeiro na terra do mar e depois, depois eu fiquei encantada, gratificada de ser bem recebida e acolhida por essas pessoas que pra gente que está aqui, que gosto de literatura e que os têm como os mais representativos de nossas letras, imagina como qualquer pessoa se sente, agradecida. Oh! meu Deus, eu estou vendo fulano, conversando com ele. Eu fiquei deslumbrada, pedindo autógrafo.
Você já teve problemas com a censura?
Não. Nem essa glória eu tenho. A censura me ignora (risos gerais).
Ainda tratando da censura, como você enxerga a censura brasileira em nossa cultura?
Eu enxergo como todo mundo que está um pouquinho atento enxerga (entra a empregada e a chama, ela pede que a espere um minutinho). Deplorável. Agora me parece que ainda não é completa, quer dizer, houve uma abertura, acabou a censura, mas a gente tá vendo coisas por debaixo do pano. O novo ministro da Educação, Eduardo Portella, parece que prometeu alguma coisa, então há na gente uma esperança que a coisa se normalize e tudo. Eu nunca sofri na carne esse tipo de coisa, mas tem gente aí que, Nossa Senhora, viu sua obra engavetada.
O Lalau, irmão do Túlio Mourão, me contou que talvez ele musicasse alguns de seus poemas. Existe algum trabalho seu para a música?
Não. Eu não dou conta de fazer um tipo de coisa assim, sabe? Até com o Túlio, ele musicou dois, eu gostei demais. Ele deixou uma musiquinha pra mim e me pediu pra colocar a letra. Eu fiquei muito inibida mesmo. Não dei conta (ri) porque fica assim marcado: eu tenho que fazer a letra. Um belo dia eu tava fazendo um outro poema até de teor dramático, fazendo não, rabiscando lá qualquer coisa e de repente eu desentranhei daquilo, a letra da musiquinha, linda sabe, uma coisa muito bonita do Túlio. Foi a única coisa que eu fiz e talvez seja a última. Se aparecer, tem que ser uma coisa assim que eu nem pense naquilo. Foi muito bom o que ele fez, gostei demais.
Nós notamos também em sua poesia o conteúdo “Deus”. Parece que Deus é uma constante em seus poemas, a sua religiosidade. Inclusive o Affonso disse que você tem uma fé de fazer inveja ao padre (entre sorrisos ela diz que ele é exagerado). Bom, pelo que pude notar, sua fé é de fazer inveja ao Papa (ela ri novamente).
É o seguinte: eu tenho uma formação católica. Uma coisa de raiz mesmo, avós, família, contexto. Numa cidade pequena igual à nossa, as festas que a gente tem, expressões de belo e estético, antes que ter visto no cinema, em livro e em qualquer outra forma, a expressão de beleza, primeira expressão de beleza que eu vi e que me emocionou, foi uma expressão informada de um modo religioso, procissões, o culto e o próprio culto católico, ordenações de padres, que é uma coisa muito bonita. Então toda a liturgia católica me deu, antes de qualquer outra coisa, a própria leitura da Bíblia, o sentimento de beleza. Eu não estou discutindo aqui a fé, isso é fundamental, mas além da fé e do ponto de vista religioso, eu tive ainda o acréscimo de beleza que a liturgia tem. É claro que se isso era a minha própria atmosfera onde eu vivia e se isso me sensibilizava tanto, é natural e evidente que uma poesia, que é aquilo que você tem de mais íntimo, tinha que sair com essa marca e sem isso, sem essa fé, eu não teria escrito nada disso. Porque pra mim, além desse aspecto estético, é vital porque dá sentido à vida, que torna a vida viável. Então eu acho que não tinha outro jeito e nem vai ter.
Você trata de sexo naturalmente, de uma forma meiga e perturbadora... Essa poesia nasce em você cotidianamente ou... conta pra gente como é que é.
Igual ao que estou te falando. A poesia, antes de mais nada, é uma atmosfera, é um caldo vital, é o oxigênio no qual se está mergulhado e pra mim qualquer coisa é a casa da poesia, de fato. Eu não sinto assim nenhuma diferença de categoria, de material estético, ou é isso, ou é o político ou o religioso ou o sexo, aí no caso conforme você está dizendo. Aquilo que é humano, que é real, é matéria de poesia e aquilo que tá te cutucando é igual areia dentro da ostra fazendo a pérola, então, se você é fiel à sua própria emoção, ao seu próprio sentimento, você bota pra fora. Deus queira que a gente coloque aquilo de modo poético, porque se sair de modo poético, vira poesia, né?
Como mulher experiente, que já surgiu com uma poesia bastante madura, como você vê essa nova geração de poetas?
Eu encaro de maneira comovente. Eu acho que tem surgido poesia no Brasil de grande qualidade. Eu vejo muita gente jovem, que conheço a poesia dela, que está ainda verde sabe, mas de talento mesmo. É gente que você fala assim: Ó, pode dormir, fecha seu livro de poesia, não preocupa em publicar não. Na hora certa você mesmo vai ver que a coisa tá madura. Percebe-se o talento das pessoas e já tem os poetas maduros e bons aí que tão dando o recado direitinho. É alentadora a situação de nossa poesia. Acho que uma coisa de que nós temos muito orgulho, de que eu tenho muito orgulho, é da nossa literatura. Você vê, sem falar nesses grandões, que são gênios mesmo isolados na categoria deles, existe muita gente boa. Acho que é um aspecto de nossa cultura onde nós não somos subdesenvolvidos.
E quando a gente vê os poetas jovens lutando, ou no lirismo, ou na denúncia, naquela força que a juventude dá, ou às vezes até naquela imprudência. É comovente.
Você acha que teve influência de algum literato brasileiro, ou mesmo estrangeiro?
Estrangeiro é com vergonha que eu confesso: não conheço praticamente ninguém. Eu conheço tradução aqui e acolá, mas eu não falo uma língua. Obras do original não são pra mim. Agora dos nossos eu acho que conheço todo mundo bom. Influência no sentido de que eu tenha baseado numa forma literária, ou numa escola, ou num estilo se quiser dizer assim, acho que não. Influência nesse sentido: quando você gosta de um autor e tem afinidades com ele, você incorpora aquilo em você, como uma vitamina que a gente toma. Mas eu acredito que tenha feito minhas coisas divorciadas desse tipo de estilo, acredito, pode ser que eu esteja enganada.
Por que Eliud Jonatham?
Isso aí não tem nenhuma explicação. Acho sonoro, bonito e nem sei se existe tal nome. Jonatham existe, Eliud... deixa-me ver porque foi Eliud... será que virado pra trás dá outra coisa? (conferimos e não deu em nada). Tá vendo, não é nada, é sonoro, ritmado, acho bonito. Tá vendo como é bobo certas coisas?
O que representa Lázaro Barreto para você?
Lázaro Barreto foi uma pessoa que me ajudou, me incentivou muito quando era a mais ilustre desconhecida. Ele tinha um suplemento literário, fundou um movimento literário no jornal "Agora", muito bom por sinal, o Drummond chegou até citar esse suplemento, foi um orgulho pra nós, chamado "Diadorim". Era só literatura, uma gracinha, e então o Lázaro fazia as publicações e colhia aqui na região poetas, escritores, desenhistas, esse pessoal. Foi um movimento cultural muito importante pra nós e entre eles eu estava. Foi a partir destas publicações que algumas pessoas ficaram conhecendo quem é fulano de tal que escreveu tal poema. Uma certa percepção daquilo que a gente já começava a fazer e o próprio Lázaro foi que me aproximou do Drummond de certa forma, quando ele falou que correspondia com ele. Eu fiquei encantada com aquilo e falei: eu também vou mandar. Foi uma pessoa que significou demais aqui. Uma pena que ele não esteja fazendo mais Diadorim.
Mudou alguma coisa na Adélia Prado antes de ser conhecida e depois de ser conhecida?
Nada. Agora eu tenho uma quantidade grande de cartas pra responder e que às vezes fico em falta, mas é só isso, que é uma coisa muito boa. A pessoa escreve falando do livro, da poesia, quer dizer, eu fiquei um pouco importante pelo volume de correspondência (ri timidamente).
Parece que um motivo simples transforma seus ímpetos, estou certo?
Tá. Porque qualquer coisa é a casa da poesia.
Você fala que mulher é uma espécie ainda envergonhada.
É, mas não deixa de ser um pensamento que revela grande parte da verdade. A mulher, esta espécie ainda envergonhada, é exatamente este ser que não adquiriu ainda essa maioridade junto ao seu semelhante masculino. O que pesa sobre nós culturalmente, uma herança de preconceitos, que nos consideram menores, isto não adianta falar que é verdade, a tal ponto que quando eu publiquei meu primeiro livro (agora realmente eu já me livrei disso), mas eu sentia uma espécie de vergonha de estar fazendo poesia, um trem esquisito. O Freud deve explicar isso, né? Mas realmente acho que é fruto disso. O poeta, você vê que falar "o poeta" Cecília, parece que é uma homenagem que tira seu quinhão pros homens. Parece. Em muitas pessoas não, que a palavra poeta é muito mais forte que poetisa, não resta a menor dúvida, é mais bonito também. Acho de fato que a mulher sofre esse tipo de coisa.
É feminista, é?
Naquele sentido reivindicatório, que agora é das mulheres, de jeito nenhum. Eu sou pelo ser humano. A tentativa de emancipação da mulher, é também uma tentativa do homem, do macho, da espécie. É uma proposta que coloca o ser humano como objeto de direitos e deveres também, mas impede igualdade com seu semelhante masculino. O que também é uma bobagem, pra nós também: que grande vantagem vai ter se nós emanciparmos política, economicamente e tal e os nossos companheiros tornarem-se menores. Não tem graça você jogar com um adversário menor. Você tem que se sentir a mesma pessoa pro homem.
Sexualmente você acha que as mulheres deviam ter uma independência do homem?
Sexualmente, não. Em todos os sentidos. Se a liberdade, não vou discutir isso, mas se liberdade for um direito, se alguém descobrir isso, que essa liberdade seja dada a homens e mulheres, claro. Mas aqui a gente não está olhando o problema do ponto de vista moral, ético, nem nada. Mas no caso é uma conquista de liberdade.
Você já está com o terceiro livro na praça, não?
Saiu no Rio agora, semana passada. “Solte os Cachorros”.
Teve aquele tradicional lançamento?
Não. Eu tô ficando tarimbada agora (ri).
Daqui a uns dias não dá mais entrevista.
Não. Não recebo ninguém mais. Mas o livro saiu no Rio, acredito que em São Paulo também e será lançado em Belo Horizonte, com todos os babados de costumes. Acredito, não é certo.
Já tem data marcada?
Possivelmente no fim de março. Tá mais ou menos apalavrado. Eu mesma não tenho o livro, talvez chegue hoje.
E aqui em Divinópolis?
Olha, é uma coisa que eu falo com alegria, porque é o profeta na sua terra, o livro vende bem aqui, você precisa ver.
É a primeira vez que santo de casa faz milagres.
Pois é. É isto que eu estou dizendo, que fico muito alegre. Na terra da gente, né? É uma alegria que tenho a esse respeito.
Por que “Solte os cachorros”?
É um livro de prosas e o que está lá dentro é mesmo uma matinada. Cachorro latindo (imita), aquela matilha latindo. Os textos pra mim tem essa configuração. Não é conto, apesar de que o livro está dividido em três partes, mas a primeira parte “Solte os Cachorros”, é isto: um falatório.
Como você vive?
Sou professora de uma escola PoliValente, ex-Polivalente. Mexo com crianças da 5ª a 8ª série, eu dou educação religiosa lá nessa escola e tenho atividades tipicamente paroquiais. “É esse o tipo de vidinha, mas que eu acho muito satisfatória e as coisas comuns de uma dona-de-casa, mãe de muitos filhos e tal, com todas as exigências, alegrias, preocupações.
As crianças lá do grupo sabem quem você é, fora a Adélia, professora?
De vez em quando eles aparecem lá com um recortezinho de jornal, esses jornais nossos aqui, por um acaso vêm numa revista, ficam muito comovidos (ri),: a minha professora tá no jornal. Ontem mesmo um aluno falou comigo: ‘Ó, vi o retrato da senhora’, umas coisinhas assim, coisas que qualquer menino sente com relação ao professor, que pra gente é uma figura muito importante, pra todo menino. Reações normais, graças a Deus.
Como você vê o papel da prefeitura daqui e do órgão que representa a cultura?
(sem jeito) Você está me botando apertada. Como é que eu vejo o papel da Prefeitura daqui...
Dentro da cultura, em todos os setores.
Não, é o seguinte: a Prefeitura nossa, ultimamente, tem uma Secretaria de Educação e Cultura, muito atuante. Inclusive dia 17 passado, dia da poesia (que era dia de Castro Alves) foi promovido um debate de poesias com presenças de escolares e tudo. E mexe e vira estão passando filmes. O setor de Educação e Cultura é atuante. E nós temos aqui, dentro de nossas modestas possibilidades, cidade pequena com poucos recursos, uma vida cultural.
Quando você estava com Drummond conversaram sobre literatura?
Nada, nós contamos casos, piadas, ficamos olhando vasinhos de flores.
Como ele é?
Ele é ótimo, mineiro, contador de casos. Muito bom.