Adélia Prado medita sobre a existência em 'O jardim das oliveiras'
No mais recente livro, poeta não apenas revisita temas de sua obra como também elabora profunda reflexão metalinguística sobre o poder da arte
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GLÁUCIO ZANI
ESPECIAL PARA O EM
A mais recente publicação de Adélia Prado, “O jardim das oliveiras”(Record), emerge no cenário literário como um acontecimento de alta relevância, não apenas por representar o retorno da poeta mineira após um hiato de mais de uma década – sendo seu último lançamento “Miserere”, de 2013 – mas, sobretudo, pela qualidade intrínseca de sua realização poética. Lançado em um momento simbólico para a autora, que em 2024 recebeu os prêmios Camões e Machado de Assis, o livro funciona como um temps retrouvé, uma revisitação densa e depurada das questões que fundaram a dicção de Adélia desde sua estreia estrondosa com “Bagagem”(1976). A obra, que reúne poemas inéditos escritos entre as décadas de 1960 e 1980, é um locus de intensa meditação sobre a existência, onde a aridez da vida coexiste com a inegável possibilidade de transcendência.
O título confere à coletânea uma profundidade hermenêutica imediata. “O jardim das oliveiras”remete diretamente ao Getsêmani, o local bíblico de angústia e agonia onde Jesus orou antes da crucificação, submetendo-se à vontade de Deus: “Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, seja como tu queres”. Este simbolismo evoca uma experiência de súplica e devoção, representando tanto a presença divina quanto a confiança inabalável na Sua vontade. Contudo, a genialidade de Adélia Prado reside em transfigurar essa matriz canônica. Ela reconfigura o jardim, ambientando-o em meio à sua poesia como um espaço metafísico e existencial, transformando a alta teologia em vivência cotidiana de uma mulher exposta à voragem do tempo.
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A poeta, licenciada em filosofia e dona de uma carreira sólida reconhecida desde os anos 70, demarca em “O jardim das oliveiras”a persistência de sua voz inconfundível. Sua escrita sempre se caracterizou por elaborar e alimentar contrastes que a expandem para além de qualquer obviedade ou dogmatismo. A célebre expressão de Victor Hugo, “do verme à estrela”, que simboliza, em linhas gerais, a travessia humana entre a miséria e a luz, parece ecoar em sua obra, cuja potência nasce justamente da convivência entre extremos que não se anulam, mas se fecundam mutuamente. Essa nova obra reafirma essa dualidade estruturante: o conservadorismo inerente à tradição mineira é subvertido pela expressão de uma identidade feminina que legitima o desejo sexual em sua divina potência. A forte religiosidade, traço conhecido de sua poesia, depara-se com uma fé palpável, intrinsecamente humana, que questiona seus próprios limites e debilidades.
A leitura de “O jardim das oliveiras”proporciona ao leitor uma aprazível sensação de retorno às origens da poeta. Nos poemas iniciais, somos conduzidos ao tempo da inocência. A memória da infância é restaurada sob as lentes cruas da mulher adulta, onde se manifestam o quintal, a presença da mãe e um domingo sem fim, marcado por um sentido de deslumbramento que o fluxo do tempo fatalmente dispersa. Poemas como “A iniciada” capturam essa vida plausível e a percepção do mundo através de um coração sensível e uma desmedida fome.
Entretanto, o Jardim, à medida que se afunila na coletânea, encontra uma poética mais áspera. O envelhecimento e a passagem do tempo convidam o eu-lírico à percepção da carne e suas cruezas. A presença da morte comparece como um motivo condutor da relação entre o sagrado e o profano. O lirismo da perda é explicitado quando a poeta lamenta o falecimento de entes queridos: “Meu coração encolhe-se de dor, verme entre brasas”. É nesse ponto de angústia que a busca pelo divino se intensifica, manifestando uma ânsia pela concretude de um Deus que se faça palavra, aconchego de toda criação.
A confrontação dessas dualidades resulta no que a crítica eloquentemente denomina de santas vulgaridades. O sagrado e o profano não se distinguem; eles se irmanam. O sublime e o mais prosaico unem-se para configurar a dimensão humana em sua relação com o divino. A poesia de Adélia insiste na materialidade e na imanência. O corpo é terra de dores, mas também é o meio e o fim, o sujeito e objeto da expressão poética. A poeta desafia as convenções ascéticas, afirmando que “Deus não se agrada de santidades mofinas”. Essa teologia do cotidiano e da carne permite que a autora abarque todas as vicissitudes humanas, das mais sutis às mais cruéis, incluindo o serial killer brasileiro Pedrinho Matador no poema “Pro Reo”.
“O jardim das oliveiras” não apenas revisita temas caros à autora, mas também elabora uma profunda reflexão metalinguística sobre o poder salvífico da arte. A poesia, para Adélia, é a mística possibilidade de salvação, o próprio milagre capaz de livrar o homem da derrocada humana. Em um dos versos mais instigantes da obra, a poeta sugere que a matéria poética transcende a necessidade de registro formal: “Não se faz poesia apenas com palavras; poemas, sim, mas quem precisa deles?
A borboleta, ao abrir e fechar as asas, já está falando. O enigma que sustenta o mistério da vida confunde-se com a própria criação artística: enigma que chamo Deus,/ outros chamam poesia”.
A solidez de sua dicção é reforçada pela intertextualidade. O poema de abertura, “Pange lingua”[Canta, ó língua], remete ao hino sacro de São Tomás de Aquino, evocando a persistência da poesia e culminando no "Maranata!" ("Vem, Senhor!"), expressão aramaica de invocação e expectativa. Além do diálogo bíblico, Adélia inserese na tradição da literatura brasileira ao evocar Guimarães Rosa. O poema “Névoa”remete ao amor de Riobaldo e Diadorim, reiterando um pacto de leitura que Adélia já havia estabelecido em “Bagagem”: “Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão”.
O ato de Adélia Prado publicar “O jardim das oliveiras” neste momento histórico, onde o sentimento religioso corre o risco de ser amesquinhado e revestido de demagogia e imposição ideológica, é um ato imprescindível de resistência e libertação. A poeta oferece ao leitor um caminho sinuoso, um labirinto onde a brutalidade dos dias se conecta com os segredos capazes de nos salvar da nossa própria condição. A lucidez cruel buscada pela poeta permite que as palavras deem ao horrível da vida uma porção de alegria.
Em última análise, o livro é um deleitoso retorno aos inícios da poeta, mas com a voz depurada e a memória forjada pela experiência. Para Adélia Prado, o jardim das oliveiras é o espaço onde a poeta se curva à potência da vida em todas as suas facetas, da infância à velhice, do desejo à renúncia, reiterando uma dicção que se mantém arrebatadora e essencial em qualquer tempo possível.
GLÁUCIO ZANI é doutorando em Estudos de Linguagens pelo Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagens (POSLING) do CEFET-MG e desenvolve pesquisa na área de Letras, subárea de Estudos Literários: Literatura, Cultura e Tecnologia.
“O JARDIM DAS OLIVEIRAS”
Adélia Prado
Record
144 páginas
R$ 59,90