Ignácio de Loyola Brandão: 'Se parar eu morro, e ainda estou cheio de vida'
Aos 89 anos, escritor prepara novo livro, faz shows com a filha cantora, estrela filme e vai a festivais como o Flitabira, que o homenageará hoje (30/10)
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Itabira* – Ignácio de Loyola Brandão costuma dizer que sempre foi perfeccionista. “Tanto é que em vez de fazer o segundo grau em três anos, fiz em cinco”, brinca o escritor, rindo das duas reprovações na escola. Seriam três. No último ano, pegou recuperação em matemática e corria sério risco de não passar.
Como era o único naquela situação, o professor decidiu que bastaria resolver corretamente uma equação no quadro-negro. Ignácio foi tentar a sorte. Sem saber o que fazer, apelou para a cara de pau: foi colocando na conta todos os termos matemáticos que se lembrava de ter ouvido algum dia.
“Eu pensava: ‘Lembro de o professor falar de logaritmo; deve ser importante’, então eu colocava. Raiz quadrada, número elevado ao quadrado, ao cubo... tudo entrou. No final, escrevi: ‘Igual a dez’.”
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O professor deu nota máxima, aprovou o aluno e justificou: “Pela loucura, pelo delírio, pela fantasia e pela imaginação”. “E ainda falou: ‘Vai embora, Ignácio, que o teu mundo é o mundo da imaginação’”, revela o escritor.
Esta frase ecoou. Setenta anos depois, Ignácio ainda conta esta história – agora, também nos palcos. Nos últimos anos, além de manter coluna semanal no Estadão e lançar livros, ele viaja pelo Brasil com a filha, a cantora Rita Gullo, com o espetáculo que mistura música e memórias. “Ela canta e eu conto histórias”, esclarece.
“Chegamos a fazer show num cruzeiro. Achava que seria um fracasso, porque o povo ia querer Roberto Carlos ou os falsos sertanejos que tem por aí. Mesmo assim, fomos. O navio foi até o Uruguai, Buenos Aires e voltou a Santos. O teatro era lindo, cabiam mil pessoas, e foram 600 no nosso show. No dia seguinte, o capitão mandou dizer que todo mundo queria mais uma apresentação.”
Aos 89 anos, Ignácio completa 60 de literatura em 2025. São mais de 40 livros, entre romances, contos, crônicas, obras infantis, reportagens, memórias e peças. Essa trajetória é uma das razões pelas quais foi escolhido como um dos homenageados do 5º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), ao lado de Milton Hatoum, Conceição Evaristo e Ana Maria Machado. Nesta quinta-feira (30/10), ele participa de mesa-redonda ao lado de Conceição e Itamar Vieira Junior.
Paulista de Araraquara, sua estreia literária ocorreu em 1965, com ‘Depois do sol”, livro de contos sobre a noite paulistana, povoada por garotas de programa, marginais, modelos e artistas. Em 1968, veio o romance “Bebel que a cidade comeu”, que criticava a repressão militar e abordava dificuldades enfrentadas pelos jovens.
Medo e mediocridade
Em 1974, foi a vez do romance “Zero”, publicado primeiro na Itália, pois havia sido proibido pela censura brasileira. A obra, que retrata o colapso moral e social de um país dominado por medo e mediocridade sob o regime autoritário, chegou a circular no Brasil em 1975, mas foi logo proibida. Só seria liberada em 1979, tornando-se marco da resistência literária durante a ditadura militar.
“A vida inteira eu fui jornalista. E lembro a lição que aprendi com Nelson Rodrigues no Última Hora, um puta jornal que acabou sendo morto pela ditadura por defender Jango. Ele publicava a coluna diária ‘A vida como ela é’, com contos fodas. Perguntei como conseguia escrever um conto por dia. Ele respondeu: ‘Olhando pela janela’”, relembra Ignácio.
“Então aprendi a olhar pelas janelas, a olhar o povo”, continua o autor de “Não verás país nenhum”, publicado em 1981. “E é algo que a gente nunca acaba de aprender.”
Fiel à própria lição, ele continua olhando, inclusive de maneira literal. Não troca o ônibus e o metrô pelo carro particular, porque é no transporte público que observa as pessoas. Também gosta de andar a pé, embora tenha reduzido as caminhadas nos últimos anos.
Fase mineira
Recentemente, comprou casa em Carvalhos, distrito de Aiuruoca, no Sul de Minas. É a terra natal de Dantas Mota, que, segundo Carlos Drummond de Andrade, foi “o mais expressivo poeta mineiro”.
Pelo tempo que passa por lá, Ignácio já se considera meio mineiro, o que provoca ciúmes nos conterrâneos de Araraquara.
A fase mineira não é sinônimo de aposentadoria. Na terça-feira (28/10), quando conversou com a reportagem, Ignácio havia acabado de participar da primeira feira literária de Ibaté (SP) e se preparava para viajar a Itabira. Paralelamente, trabalha na reta final de seu próximo livro, “Risco de queda”.
“Vou a todos os eventos a que me convidam. Não recuso nada”, diz. “Aliás, só não faço oficina, porque não acredito nisso. Nunca vi nenhum grande escritor sair de uma oficina”, provoca.
Ignácio vem acumulando novas experiências diante das câmeras. Nos últimos anos, concedeu uma série de entrevistas para o documentário “Não sei viver sem palavras”, dirigido por seu filho André Brandão e exibido recentemente na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
“Não posso parar. Se eu parar, eu morro. E ainda estou cheio de vida”, avisa.
FLITABIRA
Até domingo (2/11), no Teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade. Avenida Carlos Drummond de Andrade, 666, Itabira. Entrada franca. Programação completa: flitabira.com.br
* O jornalista viajou a convite do Flitabira