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Estado de Minas LITERATURA

Loyola Brandão lança o romance distópico 'Deus, o que quer de nós?'

Escrito durante a pandemia, livro narra a história de um casal alcançado pela crise sanitária Funesta, num país sob o comando do Destemperado


10/10/2022 04:00 - atualizado 10/10/2022 09:15

Mariana Peixoto
 
Ignácio de Loyola Brandão posa para foto de camisa branca, apoiado num módulo de madeira
O escritor paulista diz que durante o período de isolamento da pandemia lançou mão de sua "única arma" e criou o romance distópico (foto: Ramon Lisboa/Em/D.A. Press - 9.10.2018)
 

Ignácio de Loyola Brandão era um repórter iniciante do jornal “Última hora”, de 22 anos apenas, quando se deparou com o ídolo Nelson Rodrigues (1912-1980), que, de vez em quando, deixava o Rio e ia para a redação em São Paulo. 

“O que é que você está olhando, moleque?”, perguntou o dramaturgo para o jovem que o observava teclando na máquina de escrever. “Admiro demais o senhor. Como pode escrever uma história por dia com um final que encanta a gente?”, questionou. “Olhando pela janela”, respondeu Rodrigues.

Loyola Brandão, hoje com 86 anos, tem seguido tal princípio em seus escritos, sejam crônicas ou textos de maior fôlego. Seu novo romance, “Deus, o que quer de nós?” (Global Editora), traz este mesmo olhar para a janela – mas a de dentro e a de fora.
 
Escrito durante a pandemia e finalizado em abril passado, em Aiuruoca, no Sul de Minas – ele se divide entre sua casa no interior e o apartamento em São Paulo –, o romance acompanha um casal encerrado numa pandemia. No caso, Evaristo e Neluce, marido e mulher, que vivem em meio à crise sanitária de nome Funesta, que dura anos a perder de conta – e que já matou a maior parte da população brasileira. 
 

"Sou muito catastrófico, acho que tudo vai ser um fracasso. É uma coisa que vem da juventude. Eu era pobre, mal vestido e me achava muito feio. Nenhuma menina olhava para mim. Me apaixonei aos 16 anos e um dia consegui chegar para a menina e dizer que gostava dela e queria namorá-la. Ela ficou me olhando e disse que achava que não. 'Você é muito feio'. Meu mundo acabou, nunca mais me aproximei de ninguém em Araraquara"

Ignácio de Loyola Brandão, escritor


 
Os que sobreviveram à doença têm que sobreviver também a um governo negacionista, comandado por uma figura chamada Desatinado ou Destemperado. A morte de Neluce, logo no início do romance, enterrada pelo próprio Evaristo, provoca nele uma dor imensa – e também uma confusão mental.

Isolado em seu apartamento, o personagem altera crises de ansiedade e tristeza. Também recorda do passado ao lado de Neluce. Muitas dessas passagens Loyola Brandão tirou da vida que leva ao lado de Márcia, sua mulher há quatro décadas. Há menções a figuras reais, muitos deles intelectuais próximos ao escritor, como também ao que o Brasil tem vivido nos últimos anos.
 
“Deus, o que quer de nós?” é o quarto romance distópico do imortal que ocupa, desde 2019, a cadeira de número 11 na Academia Brasileira de Letras. Foi escrito também como uma forma de terapia durante a pandemia, “minha única arma”. 
 
Na entrevista a seguir, Loyola Brandão fala de realidade e ficção, do aprendizado em meio ao isolamento, dos ensinamentos da juventude e do momento atual, que lhe requer cuidados com a diabetes recém-diagnosticada, e da paixão pelo cinema. Cineasta frustrado, ele diz que em breve terá seus livros adaptados para o meio audiovisual.

Logo no início da pandemia “Não verás país nenhum” (1981) voltou à ordem do dia. Além deste, o senhor tem outros romances distópicos, “Zero” (1975) e “Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela” (2018). Como esta nova distopia surgiu em sua obra? 
 
Nunca me esqueço de uma lição de uma professora do primário, que falava que, para encontrar um tema para uma redação, a gente deveria circular por Araraquara (interior de São Paulo, onde nasceu em 31 de julho de 1936) e ver o que era divertido, triste, dramático. Dizia que uma coisa de repente, como um sorriso de uma mulher, poderia ser o assunto.

Falei sobre isto com meu pai e ele dizia que inspiração não existe, não é uma luz que desce do céu. É o que você cria olhando para tudo que acontece à sua volta. Claro que sigo o noticiário, que me influenciou também em livros como ‘Não verás...’. Mas vi também que a gente estava vivendo fechado. Tinha não só o clima de tensão constante com um ditador – o Bolsonaro já é um ditador – como também uma doença que podia nos matar.

Minha mulher e eu vivemos sozinhos e, um dia, a Márcia achou uma sandália Havaiana e uma cueca no meio da sala. Me perguntou o que era e eu disse que tinha trocado de roupa correndo, que uma hora eu pegava. Ela disse para pegar logo, e eu comentei que não entrava ninguém... ‘Mas eu estou em casa e se a gente começar a se largar, deixar tudo como está, isto vai virar um chiqueiro.
 
Se vamos começar a desrespeitar um ao outro, uma hora poderemos nos odiar’, ela disse. Passado um mês sozinhos, de vez em quando lembrávamos de viagens que fizemos, como a Burano, perto de Veneza. Aí me veio a ideia de um casal que sustenta sua dignidade (em meio à pandemia).

Ele é mais velho do que ela e está enlouquecido, já que ela morre na primeira página do livro. Mas ele continua a viver como se ela estivesse viva. Misturo nostalgia, realidade e loucura. (No romance) Depois de 17 anos de pandemia, todos morreram. Isto é criação. E isto veio daquela imagem do Brasil coberto por túmulos. Eu trabalho com imagens, sempre adorei cinema. No fundo, deveria ter sido cineasta.

De onde vem sua paixão pelo cinema?

Com 15, 16 anos, gostava muito de ir ao cinema, mas não tinha dinheiro para ir todo dia. Meu pai era ferroviário, não dava mesada. Um dia ouvi dizer que crítico de cinema tinha direito a um passe livre. Fui em um dos jornais locais, ‘A Folha Ferroviária’, e conversei com seu Lázaro: ‘Crítico tem permanente, o senhor vai ao cinema?’ Ele me disse: ‘Meu querido, de dia trabalho na ferroviária, de noite, no jornal.’ ‘Mas tem crítico em Araraquara?’, perguntei. ‘Nunca teve’, ele disse.

Sempre que podia, eu ia ao cinema, lia muito o (crítico) Paulo Emílio Sales Gomes, recortava, tinha uma coleção de críticas. Um dia vi um filme sobre a vida do Rodolfo Valentino e comecei a escrever, meio que plagiando o jeito que os outros escreviam. Levei e publicaram uma, duas, três críticas. Então achei que era um crítico e me deram a permanente.

Quando foi para São Paulo, pôde assistir a tudo o que queria então?

Fui repórter e virei crítico de cinema, fiz cobertura de todas as filmagens. Mas nunca fiz um filme. Sou um cineasta fracassado. Acabei de vender para dois jovens brasileiros que moram nos Estados Unidos, Gabriel e Felipe Mucci, os direitos de ‘Não verás país nenhum’ para adaptação para uma série. E o (José Eduardo) Belmonte já comprou os direitos de ‘Dentes ao sol’ (1976), que é meu livro favorito, e ‘O beijo não vem da boca’ (1985). Neste momento,  também estou dando uma virada na vida. 

Profissional e pessoalmente?

No dia 31 de julho, meu aniversário, estava em Aiuruoca, quando acordei com o olho direito fechado. Fui até o hospital da cidade e o médico não soube dizer, não tinha um oftalmologista. Viemos para São Paulo e fiquei cinco dias internado. Fiz todos os exames possíveis e descobri que estou com diabetes.

Meu médico disse que eu ficasse feliz, que poderia ter ficado cego ou tido um AVC. Meu estado interno estava deplorável, e eu me achava muito bom. Meu olho abriu e estou num puta regime. É um novo momento. Quando operei do aneurisma, 20 anos atrás, estava pronto para morrer. Não morri. Então, de vez em quando, vem um sinal e tenho que tomar tento.

Para o senhor, o que significou escrever sobre a morte estando em uma idade avançada?

Acho que foi um exorcismo. Eu não quero morrer, ninguém quer. Mas sentia (na pandemia) que não tinha poder entre querer ou não. Minha filha de 39 anos sentia o mesmo, meus netos também. Comecei a perceber que toda a população estava assim. Esse era o maior problema: como enfrentar a morte que está à nossa volta? Ninguém sabe, não existe como, a não ser se você for religioso, como minha mãe que morreu com uma tranquilidade imensa. Eu tinha um livro para escrever e minha angústia era não morrer antes de acabá-lo. 

Agora que a vida está se normalizando, vi que o senhor já retornou para os lançamentos presenciais. Como está sendo o reencontro com o público?

Sou muito catastrófico, acho que tudo vai ser um fracasso. É uma coisa que vem da juventude. Eu era pobre, mal vestido e me achava muito feio. Nenhuma menina olhava para mim. Me apaixonei aos 16 anos e um dia consegui chegar para a menina e dizer que gostava dela e queria namorá-la. Ela ficou me olhando e disse que achava que não. ‘Você é muito feio’.

Meu mundo acabou, nunca mais me aproximei de ninguém em Araraquara. Mas tive uma professora que me disse, quando eu tinha 17, para ler ‘O patinho feio’. Não sou um cisne, mas também não sou um urubu. Mas então: fiz o lançamento em São Paulo de ‘Deus, o que quer de nós?’ num domingo, quando a Avenida Paulista vira um promenade. Estava lotada, cheia de lulistas, uma festa. Achei que iria meia dúzia de amigos. Vendi 200 livros. Fiquei encantado, animado. 

No final do romance seu personagem fala do desejo “de sair do passado”. Neste momento, como pensa o futuro do Brasil?

É uma resposta que gostaria de ter, mas ninguém tem a mínima ideia. Tenho a vaga esperança – odeio a palavra esperança, pois ela sempre dá falsos sentimentos – de que a gente vai sair de onde está. Acho o Bolsonaro pior do que a ditadura (militar), pois nela as regras eram claras. Era horroroso, mas agora não há regras.

Acabei de voltar de Guaxupé (Sudoeste mineiro), também fui para o interior de São Paulo e vi um movimento de resistência cultural. São professores, escritores, poetas, cineastas, pessoas que ainda tentam resistir. Nem tudo está perdido. Tenho 86 anos. Será que ainda vejo a virada? É outra pergunta que me faço.
 
Livro
(foto: Reprodução)
 
 
“DEUS, O QUE QUER DE NÓS?”

Ignácio de Loyola Brandão
Global Editora 
(200 págs.)
R$ 59 


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