
Um apelo: convidem um chef
Na verdade, há bom gosto em toda parte, numa cozinha caipira e numa mesa aristocrática
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“Antes só” é o nome do primeiro capítulo do excelente livro “Um alfabeto para gourmets”, de MFK Fisher. Boa companhia é o segundo.
MFK Fisher escrevia tão bem que um crítico lamentou que ela escreva sobre gastronomia. Dizia que ela seria celebrada como grande escritora se escrevesse sobre assuntos mais sérios. Hoje, isso mudou um pouco, mas ainda não muito. A discussão sobre o que é e o que não é literatura é questionável.
Isso vale para as livrarias e serviços de streaming na classificação de livros e filmes que induzem as pessoas a achar que uma seleção seria melhor do que a outra. Grandes livros estão na gôndola de literatura infanto-juvenil, clássicos incríveis estão em edições de bolso e livros medíocres estão na prateleira de literatura.
O fato é que os livros de MFK Fisher são de fato únicos. Seu livro “Como cozinhar um lobo” falava sobre a capacidade de criar cardápios criativos durante o racionamento de comida na Inglaterra, na época da Segunda Guerra. Foi interessante quando a avó da autora leu a obra e disse ter realizado que passou a vida cozinhando lobos (a fome), por ter sempre vivido em privação.
No "Antes só", a escritora fala da solidão do chef, do jornalista e do crítico de gastronomia. Salvo convites profissionais, na vida pessoal ninguém te convida. O texto dela é bem humorado quando ela conta que via o apartamento da vizinha super aconchegante, com alguns amigos se divertindo, rindo, comendo e bebendo e a vizinha falava: “Mas é tudo muito simples aqui em casa, nada que eu pudesse te convidar”. E a escritora morrendo de vontade de estar lá dentro.
Por fim, ela decidiu jantar sozinha em restaurantes. E passava pelo constrangimento do olhar de pena que as pessoas lhe dirigiam quando a viam jantando numa mesa para uma pessoa. Ela levava um livro e ficava satisfeita, embora muitas vezes mal sentada, perto da porta da cozinha ou do banheiro. Mas não se incomodava. Quem ficava incomodado eram os outros. Vamos deixar as pessoas que querem jantar sozinhas em paz, não precisam da condescendência de ninguém.
De minha parte, passo pelo mesmo problema e tenho certeza de que meus colegas de profissão também. Quase ninguém nos convida. Talvez achem que vamos chegar como um crítico ferino do Guia Michelin, avaliando tudo e dando estrelas. O profissional da área de gastronomia gosta de comer de tudo, adora quando é convidado e quando cozinham para nós. E se a comida for simples, será uma delícia - o dia a dia traz iguarias muito melhores que comida rocambolesca e pretensiosa.
Há uma ótima passagem no grande livro “A cidade e as serras”, de Eça de Queiroz, em que Zé Fernandes, o primo de Jacinto, o protagonista muitíssimo rico e que morava em Paris, recebe de seu primo um simples arroz doce português encomendado a um chef para o tirar da depressão que vinha do enfado de quem tinha tudo.
O resultado foi um vexame, quando o chef apresentou um arroz “maciço, moldado em forma de pirâmide do Egito, que emergia de uma calda de cereja e desaparecia sobre os frutos secos que o revestiam até o alto, onde se equilibrava uma coroa de conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada”.
No segundo capítulo do "Alfabeto para gourmets", a letra B traz a “boa companhia”, servindo de contraponto ao primeiro, ao enfatizar a importância que uma boa companhia tem para uma refeição memorável.
Na letra O, MFK Fisher fala de ostentação. Mas escreve sobre seus dois vértices: há ostentação na mesa e na refeição intimidadora e complicada, que afasta os comensais da alegria de compartilhar o alimento, mas há também a ostentação da simplicidade, na qual a pessoa se orgulha de não gostar de nada conhecido como sofisticado e bate no peito para dizer que é simples.
Quem gosta de vinho pode não ser esnobe, gostar de cerveja não faz a pessoa ser simples. E isso vale para tudo. Gostar de música clássica não faz ninguém pedante e só por gostar de samba não faz alguém ser bom sujeito.
Na verdade, há bom gosto em toda parte, numa cozinha caipira e numa mesa aristocrática. Se houver hospitalidade, clima bom e as pessoas estiverem se divertindo, estará ótimo.
No último capítulo, MFK Fisher dá a sua versão do jantar ideal: seria para seis pessoas, dois casais casados e duas pessoas solteiras para apimentar - no bom sentido - a cena. Adoro.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.