Bets, bancos, políticos e crime organizado: a imperfeição dos mercados
Sabemos que a existência dos privilégios beneficia a poucos, e que seu custo final atinge a maior parte da sociedade
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Comumente utilizo a literatura e o cinema como ilustrações de como a teoria econômica poderia analisar um evento. Recentemente, o banco Master e as bets tornaram-se exemplos reais que dispensam o uso da ficção ou da narrativa literária por nos remeterem diretamente à discussão sobre a formulação da teoria dos contratos e do preço que a sociedade paga pela assimetria informacional e pelo risco moral e pela seleção adversa.
Os economistas Coase e Arrow traçaram as linhas que deram base à teoria dos contratos formulada inicialmente entre os anos de 1970 e 1990 por Holmström, Ross, Spence, Hart e, em 2014, por Tirole. Desses renomados, três foram laureados ao Nobel de Economia – Hart, Holmström e Tirole – por suas contribuições à teoria dos contratos.
Coase começa a discussão “regulatória” dos mercados em seu artigo clássico intitulado “The Nature of the Firm”, ao trazer a ideia de que a criação de firmas é uma forma mais eficiente de regular o mercado, em vez de deixar que os agentes façam suas transações livremente. Por trás dessa ideia há o princípio de que as incertezas das livres transações geram custos futuros mais elevados.
Arrow apresenta o conceito de assimetria de informação – as partes envolvidas não têm todas as informações sobre o objeto em transação –, capaz de gerar imperfeições no mercado, com destaque para duas situações: (i) risco moral – remete à má conduta de uma das partes após se firmar o contrato; e (ii) seleção adversa – diretamente ligada à informação “privilegiada’’ de uma das partes.
Exemplo ilustrativo de risco moral ocorre no mercado de trabalho: o empregador não detém todas as informações sobre a conduta do empregado e, após sua efetivação, o empregado passa a agir moral e eticamente fora das premissas de sua contratação. Outra situação ilustrativa é a contratação de um plano de saúde: o beneficiário começa a usá-lo indiscriminadamente, especialmente se não houver coparticipação, após a efetivação de sua apólice.
Seleção adversa ocorre sempre que não se tem informação completa de uma das partes – daí a ideia de assimetria de informação. Por exemplo, no segmento de seguro de automóveis, a seguradora, por não ter todas as características do segurado, busca se proteger impondo alto valor de franquia e de seguro a condutores inexperientes ou àqueles que já acionaram o seguro.
Arrow desenvolve a base para se pensar em como minimizar as falhas de mercado. Suas ideias constituem a base dos fundamentos da teoria original dos contratos, segundo a qual a existência de falhas de mercado é condição necessária para a regulamentação. Abusando mais um pouquinho do economês, Arrow traz a base formal da incerteza, das escolhas sob risco, dos mercados incompletos e da eficiência em ambientes com assimetria.
O caso mais recente no mercado privado brasileiro foi o banco Master que, desde o início de 2025, vem sinalizando claramente um nível de alavancagem e de operações “insustentáveis”, com participações vultosas de governos e setor privado, além de 1,6 milhão de indivíduos – pessoas físicas. O banco tinha transações com os governos do Rio de Janeiro e do Amapá, da ordem de R$ 970 milhões e R$ 400 milhões, respectivamente, e com o grupo Oncoclínicas – R$ 478 milhões em CDBs.
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O principal acionista do banco Master mantinha relação próxima com vários políticos e conseguiu levar para sua instituição cifras de quase R$ 2 bilhões somente de recursos de fundos de previdência de servidores estaduais ou municipais. Sua forma de “fazer negócios’’ chamava atenção do mercado e do próprio Banco Central, mas sua contenção pelo órgão regulador parece ter ocorrido tardiamente.
O caso envolve suspeitas de gestão fraudulenta, temerária e organização criminosa. Parte de seus ativos era “fabricada’’ – carteiras de crédito simuladas e que simplesmente não existiam. O caso Master é um exemplo contemporâneo das falhas de mercado e dos riscos da assimetria de informações que podem atingir milhares ou milhões de pessoas – segundo o sindicato dos bancários, a estimativa é de que o caso Master atinja cerca de 12 milhões de clientes.
Mas se o caso do banco Master assombrava o mercado desde 2023 e só agora veio à tona em definitivo, inclusive com a prisão de seu ex-controlador, o que dizer da (promíscua) relação dos jogadores de futebol com as casas de apostas – as bets? As bets são promovidas, essencialmente, por influenciadores digitais e jogadores de futebol. Como confiar na eficiência desse mercado em que um de seus agentes atua nas “duas pontas’’ da operação?
Trocando em miúdos: o mercado das bets é um exemplo escandaloso de assimetria de informação e, por conseguinte, conflito de agência – conflito em que uma das partes tem informação que a favorece no processo de tomada de decisão. Como confiar em um jogador que patrocina uma casa de apostas e que pode, em seu contrato, ter cláusulas que favorecem um ou outro time ou uma arbitragem? Ainda na economia contemporânea, os contratos apresentam grandes ineficiências.
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A ideia do mercado perfeito buscou ser viabilizada por meio de contratos extremamente detalhados e onerosos que, não necessariamente, serão capazes de anular todas as possibilidades de risco moral e seleção adversa, além de poderem gerar externalidades negativas sobre outros mercados – riscos e custos não previstos e indesejados para indivíduos, governos e/ou firmas.
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A questão que se apresenta é: o quanto a sociedade é manipulada por indivíduos e/ou instituições que detêm informações privilegiadas e adotam condutas de elevado risco moral, cujo custo final atinge a maioria da sociedade e impõe elevado ônus para o crescimento econômico e o bem-estar social? Bets, bancos, políticos e crime organizado são exemplos cada vez mais claros dos efeitos deletérios da imperfeição dos contratos e dos mercados.
Não há precisão nas teorias econômicas, mas há uma fascinante beleza na sua construção, que me faz estudá-las até hoje, mantendo-me ciente de que, em sua vastidão, limito-me a poucas áreas. A simplicidade da comunicação é um exercício que deveria fazer parte de toda ciência, como propósito da quebra da assimetria e do uso privilegiado de informação. Sabemos que a existência dos privilégios beneficia a poucos, e que seu custo final atinge a maior parte da sociedade.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
