A monogamia ainda é, para muitos, sinônimo de amor verdadeiro, mas não a única forma de amar

A monogamia ainda é, para muitos, sinônimo de amor verdadeiro, mas não a única forma de amar

Samir Shah/Pixabay

 

A história do príncipe encantado. O universo das princesas. E os finais de filmes e novelas com a indefectível frase “e foram felizes para sempre”. A mocinha “salva” pelo mocinho, o passo em direção à igreja, ao casamento e à formação da família. Roteiro perfeito, intacto. O amor romântico é o grande pilar dessa cena, ainda que seja uma invenção do Estado, Religião e Família e, até então, o instrumento para a construção de uma sociedade duradoura sustentada pelo amor dos contos e “estórias” mágicas e de fadas. Até então era apontado como único caminho para criar raízes afetivas, seguras e, enfim, encontrar a felicidade e se sentir completa. 

 

Mas tudo muda, se adapta, se transforma junto com o ser humano inserido na sociedade. Assim, no século 21, o amor romântico é cada vez mais questionado, posto em xeque.  O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1927-2017), pensador com uma das vozes mais críticas da sociedade contemporânea, definiu que vivemos na era do “amor líquido”, um tipo de apego instável, um sentimento superficial e condenado à rápida dissolução. 

 

No entanto, nem somente de amor líquido, detectado por Bauman, o mundo vive. Mudanças de comportamento levaram ao surgimento de várias outras formas de amar, de amor e de se relacionar. São pactos de relações abertas, sem a garantia da monogamia, o poliamor, as pessoas que se reconhecem como sapiossexual, que sentem atração sexual pela inteligência, como a apresentadora Bela Gil e a cantora Karol Conká, a discussão do ser assexual, que é quem tem pouco ou nenhum interesse por atividades sexuais humanas, tema retratado em “Travessia”, atual novela de Glória Perez, no personagem do ator Thiago Fragoso, Caíque namorava a personagem Leonor (Vanessa Giácomo), mas apesar de estar no relacionamento e gostar, as investidas sexuais da namorada sempre eram evitadas por ele. 

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E tem ainda o demissexual, em que a atração sexual só existe com envolvimento ou conexão emocional ou afetiva com essas pessoas, como se definiu a cantora Iza e a atriz, apresentadora e influencer, Giovanna Ewbank. E tantos outros termos que, na verdade, só confirmam a diversidade da sociedade de se relacionar e amar. Portanto, o atual momento convida e se impõe a desfazer as grandes idealizações românticas. Chegou a hora de reinventar o amor, a partir de elementos concretos, a vida real e os amores possíveis. A vivência do desejo de cada um.

 

A professora Patrícia Regina dos Santos, de 46 anos, graduada em pedagogia e artes, com habilitação em música e especialização em práticas educativas inclusivas, define o amor “como um sentimento profundo de afeto que desenvolvemos por algumas pessoas, que demanda ações para que consigamos demonstrá-lo às pessoas que amamos e para que nos sintamos amados de volta, não apenas em relações afetivo-sexuais, mas familiares ou de amizade”.

 

Ela diz que não acredita em amor incondicional e automático. “Ele é construído e nutrido ao longo do tempo. Para mim, amar é uma decisão. Quando decidimos amar em um relacionamento, nos movimentamos para que essa relação seja mantida e amamos de maneiras diversas. Somos capazes de inúmeras formas de amor.” Para Patrícia, amar é deixar que a outra pessoa tenha sua individualidade e autonomia preservadas, por mais que possa ser difícil às vezes.

Patrícia Regina dos Santos, de 46 anos, professora, graduada em pedagogia, artes com habilitação em música e especialização em práticas educativas inclusivas, vive relações sem exclusividades

%u201CNão vejo necessidade de criar contratos, regras, estabelecer limites para o outro, ter poder de veto sobre as ações da pessoa%u201D, Patrícia Regina dos Santos, professora, graduada em pedagogia e artes

Marcos Vieira/EM/D.A Press

EXPECTATIVAS Embora não acredite mais no amor romântico, isso não significa que não crê no romance, carinho, companheirismo, lealdade, relações a dois, namoro, noivado e casamento. “Quando digo que não acredito mais no amor romântico, me refiro às relações compulsórias associadas ao sentimento de amor e a expectativas criadas sobre o sentimento. Termos como monogamia, exclusividade, fidelidade incondicional são idealizações de um modelo de relação que foi colado ao amor como se só dessa forma fosse possível amar verdadeiramente. Será que as pessoas estão realmente vivendo felizes para sempre nessas relações?”, questiona. 

 

“As relações que pressupõem exclusividade podem existir fora da monogamia. Há relações poliafetivas em que pessoas são exclusivistas dentro daquele grupo. Pessoas não-monogâmicas que decidem manter-se exclusivas em algumas relações pelo tempo que essa exclusividade faça sentido.  A diferença é que fora da monogamia com essa ideia de ‘fidelidade incondicional compulsória’, as pessoas podem assumir que estão se envolvendo com outras pessoas sem precisarem deixar de amar a quem já amam. Podemos amar alguém profundamente e não ter necessidade da presença constante ou de coabitar com ela. Podemos amar alguém e não ter ciúmes das outras relações (familiares, amigos e romances) que possam fazer parte da vida dela, e podemos amar alguém e ser amados de volta e ainda assim ser honestos e dizer que estamos envolvidos com outras pessoas.”

 

Patrícia confessa que já perseguiu o ideal romântico, incluindo príncipe encantado como a única forma legítima de amor verdadeiro. “Namorei, noivei, casei e tive filhos maravilhosos, casa, cachorros, viagens e fotos de casal em perfil de redes sociais, mas um dia descobri que a vida não era um conto de fadas.  E que à medida que o tempo passava, nos tornamos pessoas diferentes com necessidades distintas. Sentia que havia um descompasso de vontades”, conta. 

 

“Talvez não houvesse ausência de amor, mas havia maneiras diferentes de encarar a vida, um abismo no jeito de perceber o mundo e de lidar com as inseguranças e limites um do outro. Relações longas e antigas, como a que eu vivi, são construídas sobre pilares que classificam e categorizam o amor e que não nos permite sequer pensar que alguém a quem amamos pode ser capaz de ouvir que nós nos apaixonamos por outra pessoa também. É difícil ter coragem de falar, é difícil ouvir e é difícil mudar a dinâmica da relação para que isso dê certo e essa não era uma opção para a maioria das pessoas.”

 

Com a relação se modificando, Patrícia revela que mesmo com diversas tentativas de não abandonarem um relacionamento de mais de 20 anos, lidando com conversas, acordos, combinados, ela e seu parceiro terminaram sempre mais machucados. “Então, depois dos 40, resolvi recomeçar. Comecei a me interessar por outras dinâmicas relacionais. Desconstruída a expectativa de que havia um príncipe encantado à minha espera, me deparei com a ideia de que me relacionaria com pessoas normais, com inseguranças, desejos, incoerências, e que o fato de existir amor na relação não anularia desejos por outras pessoas”, explica. 

 

MAIS NATURAL Hoje em dia, Patrícia conta que se considera uma “pessoa solo” e que se sente envolvida em relações fluidas. Sem exigência de exclusividade, sem expectativa de que a pessoa se encaixe em um perfil para uma relação já estabelecida antes mesmo de a pessoa ser conhecida. “Não quero encaixar as pessoas em relações formatadas e idealizadas. Quero construir com as pessoas que são importantes para mim os caminhos que nossas vontades conduzam, de um jeito mais orgânico e natural. Ao me dizer solo e não solteira faço uma demarcação de que não me encontro em um estado de espera de uma relação. Sou solo, estou como quero estar, sozinha em alguns momentos e ao mesmo tempo cercada por pessoas pelas quais tenho um profundo afeto e que não têm comigo essas relações marcadas pelas expectativas do romantismo idealizado. Não vejo necessidade de criar contratos, regras, estabelecer limites para o outro, ter poder de veto sobre as ações da pessoa. Hoje, há mulheres que são independentes, fortes, conhecedoras do corpo, donas de seus desejos. As relações não são mais um imperativo, são uma escolha.” 

 

A professora diz que em suas relações atuais se sente ela mesma. “Também acho fantástico me redescobrir no olhar de cada pessoa que convive comigo. O ponto negativo é que a maioria das referências afetivas que temos vem dessa idealização de amor romântico, então, vez por outra, aparece aquela sensação de que eu deveria estar procurando pela minha outra metade por aí, mesmo me sentindo tão inteira quanto me sinto. Por isso, participo de grupos, de fóruns de discussão, de encontros nos quais podemos debater sobre esses modelos relacionais diferentes do que aprendemos desde crianças, e, aos poucos, vamos construindo outras referências de felicidade possível”. 

 

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