Mão segurando uma 'bola cósmica'

Mão segurando uma 'bola cósmica'

Gerd Altmann/Pixabay
 
 
Parafraseando William Shakespeare, certamente, há muito mais inteligência e sabedoria à nossa volta do que julga a nossa vã filosofia. As habilidades que constituem a inteligência são inúmeras e, por isso, ela é multidimensional e maleável. Há capacidades intelectuais determinadas geneticamente, como também por fatores ambientais. Hoje, o Bem Viver leva seus leitores a desvendarem um pouco do universo das pessoas que fazem parte de um grupo exclusivo, incrível e que carrega as dores e as delícias de serem inteligentes acima da média. 
 
 

A empresária sob o pseudônimo Lara, de 43 anos, é mãe da superdotada, também sob pseudônimo, Sara, de 3 anos. Lara prefere não expor a família, e aceitou dar seu depoimento na esperança de que os mitos ao redor da superdotação ganhem luz e se dissolvam. Para ela, ser mãe de uma criança com alta habilidade “é um presente e um grande desafio. Ela é uma criança ativa, comunicativa, intensa, questionadora, que não aceita qualquer resposta, argumenta, não aceita um não sem explicação. Nem sempre é fácil. É uma princesa fofa e uma indiazinha selvagem. É bonito de ver”.

Lara conta que nunca imaginou que Sara fosse superdotada. “Para mim, ela era muito estimulada e tinha a sorte de ter contato com coisas novas o tempo todo. Uma amiga superdotada me alertou. Fiquei surpresa inicialmente e, no mês seguinte, iniciamos a avaliação multidimensional dela. A superdotação foi confirmada e com o relatório ela foi acelerada um ano na escola. Minha filha tem muita energia e faz muitas coisas. É realmente surpreendente. Ela pinta quadros (já fizemos duas exposições), anda a cavalo (ama os animais), surfa, nada, ama os livros (tem cerca de 200 títulos). Ama estar com as crianças no parquinho e na pracinha. Prefere sempre estar entre as mais velhas que ela. Já falou que quer ser médica e fazer cirurgia. Eu não sei dizer se ela se sente diferente, mas as pessoas que a observam ou interagem com ela geralmente dizem para mim: “Nossa, mas ela só tem 3 anos mesmo?”.
 
Tatiane Oliveira

Tatiane Oliveira

Arquivo pessoal

"Quando estamos sozinhos é bem legal, ficamos orgulhosos com nossas conquistas. Mas quando outras pessoas, que não têm conhecimento da condição, veem, pode surgir o sentimento de inveja, falta de compreensão ou até mesmo aproveitar de nossas habilidades" 

Tatiane Oliveira, pedagoga, psicopedagoga, 
especialista em educação especial 
 
FUTURO Lara deseja que Sara seja “feliz e equilibrada”. “Quando a vejo surfando, penso que será surfista. Quando a vejo pintando, artista. Quando a vejo preocupada com a saúde dos animais, veterinária. Quando deseja fazer cirurgias em mim e no meu marido, médica. Vamos ver o que virá. Acho importante plantar nela confiança para que não tema ser quem nasceu para ser, independentemente da opinião dos outros. Ela é forte, carismática, sensível e destemida. São muitas habilidades, muitas possibilidades. É uma vida pela frente.”

Facilidade de aprender e solucionar problemas

Tatiane Oliveira, pedagoga, psicopedagoga, especialista em educação especial e coordenação pedagógica e proprietária do espaço psicopedagógico Amar é Acolher, em Poço Fundo (MG), acompanhou o processo de Sara. A profissional, em setembro de 2020, também foi identificada com altas habilidades e superdotação multipotencial, ou seja, nas quatro grandes áreas: acadêmico-intelectual, linguística e lógico-matemática; liderança; artes e esportes.


Então, ela sabe como ninguém os privilégios, benefícios, maravilhas e perspectivas de futuro da superdotação: “A facilidade de aprender e de ter resoluções rápidas de problemas, às vezes pode ser um privilégio. Às vezes, não. Quando estamos sozinhos é bem legal, ficamos orgulhosos com nossas conquistas. Mas quando outras pessoas, que não têm conhecimento da condição, veem, pode surgir o sentimento de inveja, falta de compreensão ou até mesmo aproveitar de nossas habilidades. As pessoas superdotadas conseguem perceber tudo isso, pois somos sensíveis e empáticos. Depois, ficamos ruminando isso por dias, pois nosso senso de justiça é extremamente aguçado.” 

INVISIBILIDADE  Para Tatiane, os benefícios seriam maiores se as leis fossem cumpridas e os tirassem da invisibilidade. “Ou se em todos os lugares pudéssemos ser nós mesmos, mas muitas vezes temos de camuflar as habilidades para não sofrer perseguições, bullying e assédio moral. Uma das maravilhas de ser superdotado é saber que não estamos sós, quando achamos profissionais que nos entendem (pois faltam muitos) e também quando temos contato com outras pessoas que têm a mesma condição. É maravilhoso se relacionar com os pares, mesmo que via on-line. Faz pouco tempo que tive o prazer de conhecer superdotados presencialmente em uma viagem ao Paraná. Parecia um sonho.” 

“Sabem tudo, são gênios”, “tiram 10 em todas as disciplinas”, “são excelentes alunos”, “são quietos e comportados”, “não sofrem, pois aprendem rápido”, “conquistam tudo o que desejam”, “não enfrentam dificuldades”, “tem de ter QI acima de 130”, “não precisam de ajuda” e “não necessitam de atendimento educacional especializado”.

Esses são apenas alguns mitos que Tatiane enumera que os superdotados lidam no dia a dia: “Desmistificar a superdotação tem sido uma das minhas missões, o meu propósito de vida. Há muitas pessoas buscando ajuda a si próprias, aos filhos, alunos, entre outros e no desespero acabam encontrando profissionais despreparados que ao invés de ajudar geram mais sofrimento. Atuo na avaliação psicoeducacional ou multidimensional para identificação de altas habilidades/superdotação com crianças a partir de 3 anos, adolescentes e adultos. No desenvolvimento de talentos, potenciais, criatividade e também no processo de autoconhecimento desses indivíduos que buscam auxílio e direcionamento.”

A passos lentos 


 Segundo Tatiane, a inclusão da superdotação no Brasil acontece a passos lentos: “Eu mesma procurei alguém que me entendesse há anos. Na minha busca incessante por ajuda, não encontrei atendimento para adultos em Minas Gerais. Sempre percebi ser diferente dos demais e que me enquadrava dentro das características das altas habilidades. Só que isso me gerava sofrimento. Meus talentos e minha forma de ser incomodavam e ainda incomodam por onde passo.  Mas aos poucos venho aprendendo a lidar com isso”, explica. 

Há pouquíssimos profissionais da área no país que de fato compreendem esse fenômeno e que saibam atender e avaliar. Existem alguns núcleos de atendimento para AH/SD (altas habilidades/superdotação), mas precisamos aumentar o número de profissionais preparados para lidar com esses casos, pois muitos são diagnosticados com transtornos erroneamente, sendo que algumas características se confundem com transtorno do espectro autista (TEA), transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno opositivo desafiador (TOD), bipolaridade, borderline, entre outros.”

Tatiane Oliveira alerta que, de acordo com o Ministério da Educação (MEC), apenas 5% da população tem altas habilidades/superdotação. “Só que essa porcentagem inclui somente os estudantes que são acadêmicos na área linguística e lógico-matemática, ou seja, os acadêmicos. Os que têm a superdotação nas áreas de artes, liderança e esporte não constam nesses números, nem têm opção no Censo de cadastrá-los.  É necessário um enriquecimento intra e extracurricular, porque a pessoa com habilidades acima da média precisa de constantes desafios.” 

O recado final de Tatiane é que “se você, seu filho, sua filha ou qualquer pessoa da sua convivência tiver algum comportamento que percebe ser diferente, vocabulário rebuscado, interesses peculiares, busca por aprendizado constante e desafios, busque ajuda, estude, pesquise. Os superdotados precisam sair da invisibilidade, pois na maioria das vezes não têm seus direitos respeitados.