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Estado de Minas ENTREVISTA

Dunker: 'Precisamos olhar para o bolsonarismo como uma face do Brasil'

Na análise do psicanalista Christian Dunker, apesar da vitória de Lula, o bolsonarismo vai persistir


22/11/2022 06:00 - atualizado 22/11/2022 11:08


Bolsonaro foi derrotado, mas o bolsonarismo não. Esta é a avaliação do psicanalista Christian Dunker, professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e escritor. “A gente precisa olhar para o bolsonarismo como uma face do Brasil”, afirma. Na análise de Dunker,  apesar da vitória de Lula, o bolsonarismo vai persistir.

 “Inclusive, a esquerda precisa reconhecer que isso é um movimento popular. É o movimento contrarrevolucionário que se apropriou de retóricas da esquerda, que conseguiu grande capitalidade em vários lugares no Brasil”, diz o professor.
Nessa perspectiva, segundo Dunker, é importante entender que o discurso prescinde do personagem. “Na ausência de Bolsonaro, a gente vai por outro, daqui a pouco vem outro. E, por isso, a dificuldade de transformação. Não é assim: ‘aceita que o Bolsonaro perdeu’. É como a gente desfaz um discurso, que é um processo cultural. É um processo libidinal. É um processo histórico. Quanto tempo demorou para esse discurso se formar? Foram anos e anos”, comenta em entrevista exclusiva ao Estado de Minas
 
O discurso ao qual o professor se refere se apoia no neoliberalismo e em um fundamentalismo religioso, que explica, por exemplo, o apoio massivo dos evangélicos ao bolsonarismo. “O Brasil criou um fundamentalismo. Não é o Iraque com o homem- bomba, mas são esses discursos que estão explodindo instituições, estão fazendo pastores ordenarem voto para um ou para outro como se fosse uma madraça, no pior sentido do preconceito”, afirma. 

Na outra ponta dessa corda, estão pessoas que recebem da Igreja o apoio que não vem do Estado. “Cerca de 60% dos evangélicos, neopentecostais da terceira geração são pobres, 61% são mulheres e 62% são negros. Mas, então, é essa gente que você quer incriminar? Não, pera aí. Temos que fazer um filtro e dizer: ‘olha, aqui tem um processo que está espreitando o sofrimento. Um processo que pega o sofrimento real das pessoas, oferece algo em troca e instrumentaliza em um delírio político’”, explica. Confira a íntegra da entrevista com o psicanalista. 
 
Na foto, o psicanalista Christian Dunker
Christian Dunker é professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e escritor (foto: Wikipédia/Divulgação)
 
Como a psicanálise explica o comportamento dessas pessoas que ainda estão acampadas nas portas dos quartéis, esperando intervenção militar? Isso é demonstração de algum tipo de ilusão?

É sempre difícil analisar os comportamentos individuais, porque cada um teve essa escolha, mas a gente pode recorrer a um artifício que é o seguinte, existe uma síndrome que se chama transtorno da loucura compartilhada (Folie à deux). Onde você pode falar de formas de transtornos que não são individuais, são coletivos.

O (Sigmund) Freud em alguns momentos também eludia a essa possibilidade, ou seja, nós não estamos falando daqueles todos, um a um, que estão ali envolvidos, mas o que acontece quando a gente entra num funcionamento coletivo, de massa. Ou seja, o que acontece quando a gente se orienta para uma figura que exerce poder e autoridade sobre nós, que cria uma identificação horizontal de nós com os irmãos, que são como nós, e que pede de nós obediência em troca de segurança ou proteção.

Então eu acho que é mais ou menos isso que está em jogo na formação desse desse efeito que pode ser descrito assim, como o que acontece quando o Delírio é confrontado com a realidade. A gente tem um processo semelhante acontecendo com o bolsonarismo. Isso é uma forma de delírio.

Os casos clássicos de Folie à deux,  de loucura compartilhada, são clinicamente sanados com afastamento da pessoa do núcleo irradiante.

Eles têm falado menos de Bolsonaro e focado mais no discurso de enfrentar o comunismo, de ter as Forças Armadas como um elemento abstrato de apoio. Como o senhor avalia isso?

Apesar da vitória de Lula, o bolsonarismo vai persistir. A gente precisa olhar para o bolsonarismo como uma face do Brasil.  Inclusive, a esquerda precisa reconhecer que isso é um movimento popular, é o movimento contra revolucionário que se apropriou de retóricas da esquerda, mas é um movimento popular, que conseguiu  grande capitalidade em vários lugares no Brasil. 

Na ausência de Bolsonaro, a gente vai por outro, daqui a pouco vem outro. E por isso a dificuldade de transformação não é assim: aceita que o Bolsonaro perdeu. É como a gente desfaz um discurso, que é um processo cultural, é um processo libidinal, é um processo histórico. Quanto tempo demorou para esse discurso se formar? Foram anos e anos. Então é todo um processo histórico que a gente precisa reconstruir para desconstruir o bolsonarismo.

Existe uma possível ilusão de alguns eleitores petistas de que Lula vai resolver as coisas de uma vez só?

Acho que não vai resolver de uma vez. Essa ilusão de que a gente vai passar um pano e começar de novo, não é bem-vinda. A gente sabe que a coisa se infiltrou capilarmente e, portanto, não vai se resolver. Bolsonarismo é um discurso muito forte, muito potente, que vai mobilizar aí coisas por se inventar.

Inclusive, por se reinventar uma esquerda. Acho que o Lula está no momento de composição, de vamos juntar todo mundo para rever e fazer um balanço, mas  precisamos de uma nova esquerda. Eu até brinco: Tem que ser um futuro trans porque esse cis não deu certo.

Nesta pós-eleição, temos visto manifestações mais extremas. O senhor acha que isso de alguma forma se aproxima de algum tipo de fundamentalismo religioso?

Acho que o bolsonarismo tem muitas maneiras de a gente definir, mas como um capítulo do neoliberalismo, ele se apoia nos neofundamentalismo.

Fora do Brasil, a gente tem o fundamentalismo ligados aos estrangeiros. O Brasil, enquanto se discutia essa questão das imigrações e tal, a gente estava aqui um pouco Haiti, um pouco Venezuela, mas é muito pouco. O que a gente inventou foi  um estrangeiro dentro do nacional.

Tem brasileiros que não deviam estar aqui, devia estar em Cuba, na Venezuela. Esse é o discurso: tem que ir embora ou morrer. Um tipo de necropolítica apoiada no fundamentalismo, no neofundamentalismo religioso.

É difícil organizar uma crítica sobre isso porque essas religiões são de fato um suporte para as pessoas, sem apoio do Estado. Cerca de 60%  dos evangélicos, neopentecostais da terceira geração são pobres, 61% são mulheres e 62% são negros.  Mas então é essa gente que você quer incriminar? Não, pera aí . Temos que fazer um filtro dizer: olha aqui tem um processo que está espreitando o sofrimento.

Um processo que pega o sofrimento real das pessoas, oferece algo em troca e  instrumentaliza em um delírio político. O Brasil criou um fundamentalismo. Não é o Iraque com o homem- bomba, mas são esses discursos que estão explodindo instituições, estão fazendo pastores ordenarem voto para um ou para outro como se fosse uma madrassa, no pior sentido do preconceito.

Esse quadro de manifestações e insurgências, sem liderança clara e sem organização explícita, era o que o senhor previa? O que significa esse silêncio do Bolsonaro?

O silêncio de Bolsonaro é muito inteligente. Ele está esperando para ver onde que o discurso funciona mais, onde a resistência se organiza melhor. Ele está sendo revolucionário como em 1789,  a Revolução Francesa. Ele está esperando as massas, onde é que a insurgência popular vai dar mais certo. Tem dois meses até o Lula assumir. 

Ele está esperando justamente uma brecha para tentar ou retentar aquilo que ele vem anunciando e tentando fazer,  que é um golpe. Um golpe realmente popular. Isso que a esquerda precisa entender:  não é um golpe de gabinete, é um golpe que vem de baixo. Se o Alexandre Moraes  não tivesse sido suficientemente rápido  podia ter desandado a maionese e  até 1 de janeiro, ele terá outra chance, por isso está em silêncio.

O comportamento dúbio dos militares em relação ao relatório sobre as urnas enviado ao TSE e sobre as manifestações em frente a quartéis são um tipo de senha para a manutenção dessa expectativa de apoio aos protestos?

Totalmente. Esse clima de banho-maria para ver  se alguém organiza essa insatisfação que está nas ruas, as pessoas fechando estradas e etc. Então, acho que não é uma resposta surpreendente do Exército. Porque você tem uma ala importante, que foi formada minimamente nos efeitos da Ditadura Militar,  não quer repetir um erro grotesco.

E, por outro lado, você tem uma outra ala que tem ambições políticas. Não se pode olhar para os militares como uma massa uniforme, assim  como a gente não deve olhar para os bolsonaristas como uma massa uniforme.

No curto prazo, como o STF e demais instituições devem agir para contornar essa situação e evitar riscos à posse de Lula e ao novo governo? Punição exemplar dos financiadores já identificados das manifestações ou ignorar até o enfraquecimento desses movimentos com a saída de Bolsonaro do poder?

Não ignorar. Essa é uma atitude errada da esquerda antiga, que tem uma concepção de psicopatologia equivocada. Que é assim: deixa o louco falando que ele fica sozinho no deserto e o elimina. Isso não funciona. O que a gente defende no laboratório de teoria social, filosofia e psicanálise é que é preciso escutar a loucura, tem tratamento para isso. 


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