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Estado de Minas PENSAR

Simone Paulino: iluminando as trevas à frente da Nós Editora

Jornalista e escritora mudou o seu destino para, em viagem sem retorno, montar uma editora e viver à luz de livros dignos de ser amados


14/07/2023 04:00 - atualizado 07/08/2023 17:23
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Simone Paulino
Simone Paulino, da Nós, diz que foi por meio da escola que chegou à literatura: "A educação é sempre uma possibilidade, com potencial transformador impactante" (foto: divulgação)

 

Clarice Lispector, Virgínia Woolf e Simone de Beauvoir apresentaram-lhe as paisagens que a guiaram na viagem para a descoberta de si. E se por um lado, essa é uma jornada atemporal, foi em 2015 que Simone Paulino, jornalista, escritora, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada, tornou-se editora de literatura. Fundou a Nós. Já naquele tempo, a francesa Annie Ernaux, Nobel de Literatura, havia se enraizado como nova referência no repertório de escolhas de Simone, que muito revela de sua própria identidade: filha de família pobre, na centralidade da educação, construiu-se como intelectual, que crava em sua escrita questões sociais e de gênero num encontro poético de memória pessoal e coletiva. “Eu não vivo do passado, mas o passado vive em mim”, diz Simone. Assim como a literatura de Ernaux traz a marca da mobilidade social; também ela se identifica como trânsfuga de classes sociais. “Nasci onde ninguém se forma escritora e editora”, declara. 

 

Para além da autonomia intelectual que a educação lhe trouxe, Simone Paulino registra o significado pessoal e ampliado de criação da Nós: “Há uma diferença muito grande em ser editora e dona de editora. O Brasil sempre teve um monte de mulheres editoras, trabalhando o texto e todo o processo de edição, que sustentaram grandes grupos editoriais comandados por homens”. Começou a carreira como jornalista, depois ghost writer de sucessos editoriais de terceiros, até iniciar uma nova frente, - financeiramente muito compensadora - como editora de livros no âmbito do soft business. “A editora era de educação financeira. Eu estruturei, montei o negócio, com investimento do meu sócio majoritário. Tinha uma pequena participação societária”, conta ela. Mas a chama não estava ali. Sem conseguir a adesão do sócio ao projeto literário, - que diferentemente dos livros de educação financeira, tem um retorno lento - Simone Paulino deu o grande salto em 2015: fundou a Nós, assim sinalizando aquilo que Virginia Woolf um dia chamou de “retorno à vida”, à literatura. 

 

 

Simone teve medo. Inúmeras vezes sentiu-se insegura, sobretudo nos difíceis tempos que viriam, não só pela pandemia, mas também, no campo da política, com a negação sistemática da ciência, da cultura e da leitura como fundamentos do governo Bolsonaro. Mas prevaleceu a obstinação para realização do sonho. Lançou o primeiro livro da Nós, em março de 2015, no Salão do Livro, em Paris, depois de apresentá-lo na Primavera Literária, - projeto na Sorbonne, organizado pelo professor Leonardo Tonus. 

 

 

A obra inaugural, “Eu sou favela”, é uma antologia de contos centrados na voz daqueles dos oprimidos pelo aparato policial do estado, dos autores Alessandro Buzo, Ferréz, João Anzanello Carrascoza, Marçal Aquino, Marcelino Freire, Rodrigo Ciríaco, Ronaldo Bressane, Sacolinha e Victoria Saramago. “Tive muita dificuldade no começo, sobretudo, porque eu era muito sozinha. No começo, a Nós era eu. E muita gente dizendo que não ia dar certo. “Nosso catálogo hoje tem cem livros e lançamos a Nós em Portugal, e, agora, com o nome de Nossa Éditions, em Paris, em sociedade com a Márcia Tiburi”, afirma Simone. Atrelada à paixão pela literatura, como quer Clarice Lispector, a evolução da Nós segue em seu lema de fundação: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.

 

Autora de livros como “Abraços negados em retratos” (2019), “Como Clarice Lispector pode mudar sua vida” (2017) e “O sonho secreto de Alice” (2013), Simone Paulino também participou das antologias de contos “Grafias Urbanas”, “Histórias Femininas”, “Olhar Paris” e “Escrever Berlim”. Ao longo da última semana, marcou presença em Minas Gerais para lançamentos em Araxá e Belo Horizonte de uma de suas mais recentes edições, o romance “Cara paz”, da filósofa, tradutora e escritora italiana Lisa Ginzburg. No Fliaraxá, em mesa integrada também por Rejane Dias (Autêntica Editora) e pelo advogado criminalista Kakay, participou do debate “Livro, poder e mercado”, temas que permeiam o universo literário. Filha de pai e mãe analfabetos, Simone destacou o poder dos livros na transformação de sua condição social: tornou-se jornalista, escritora, crítica literária, editora, biblioterapeuta e mais – justamente por acreditar no poder da literatura. 

 

Leia: Silvia Nastari:a artesã de livros

 

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Simone (D) com a autora italiana Lisa Ginzburg, do romance %u201CCara paz%u201D (foto: Juliana Lubini/Divulgação)
 

Selo dedicado à psicanálise

“História para matar a mulher boa”, de Anna Johann; “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve”, de Marcia Tiburi; “Hervelino”, de Mathieu Lindon; “Que por você se lamente o Tigre”, de Emillienne Malfatto; e “A nudez da cópia imperfeita”, de Wagner Schwartz, são os próximos lançamentos da Editora Nós, que já conta com um catálogo de mais de cem títulos. Também neste semestre, será lançado o selo Nós Psi, dedicado à psicanálise, a ser iniciado com dois livros do psicanalista inglês Christopher Bollas: “Momento freudiano” e “Segure-os antes que caiam”.  Entre os mais recentes lançamentos, a edição de “O vestido novo”, de Virginia Woolf, e “Viver à sua luz”, do marroquino Abdellah Taïa.

 


Sequência de série especial

O perfil de Simone Paulino é a terceira parte da série “As editoras das editoras”, sobre mulheres que comandam casas e selos editoriais no Brasil. O especial continua na próxima semana, com mais reportagens.

 

Entrevista/Simone Paulino ( Nós Editora) 
“É preciso sublinhar o protagonismo das mulheres”

 

Quais os maiores desafios de ser uma editora no Brasil?

Tem aquele desafio macro, que é o fato de que nós ainda não somos um país de leitores. Quase 50% da nossa população tem déficit de formação para a leitura, e tem uma pequena parcela que lê. E, dessa pequena parcela que lê, muitos não leem literatura. Então, eu acho que esse é o nosso desafio macro. Eu lembro que numa feira de Frankfurt, foi dito que se o Brasil se tornasse um país leitor, seria a wonderland do mundo editorial:  imagina duzentos milhões de pessoas lendo? Agora tem uma questão que acredito que a pesquisa Retratos de Leitura no Brasil não capta devidamente: a produção e a circulação de literatura no ambiente periférico nos saraus, nas cooperativas, nas bibliotecas improvisadas. Em São Paulo são muito populares; no Rio de Janeiro também. E trazendo mais para a atualidade, eu acho que diante de um fenômeno como Itamar Vieira Junior, com 800 mil exemplares vendidos, não podemos mais dizer que o brasileiro não lê literatura. Claro que, nesse número, tem as compras de programas governamentais. Mas, de qualquer forma, são quase um milhão de exemplares da literatura brasileira contemporânea. Conceição Evaristo, é outro fenômeno, 500 mil exemplares vendidos. Então, tem alguma coisa acontecendo. E o que eu acho? Eu acho que o que a gente está vendo hoje, é resultado dos vinte anos passados do primeiro governo Lula. Por quê? Porque se deu acesso à universidade a uma parcela da população que não tinha. E, uma vez na universidade, é bem natural que você passe a ler mais. Essa galera que eu adoro, que é o Itamar Vieira Junior, o Jeferson Tenório, a Djamila Ribeiro, Camila das Mercês, uma das primeiras alunas cotistas da UnB, é resultado do governo Lula. E eu acho que a outra mudança também que é preciso sublinhar, que é o protagonismo das mulheres.

 

Quais os próximos capítulos de sua editora?

A consolidação da Nós, que ainda não se deu por completo. Hoje, a gente já é uma editora muito mais profissional, tem uma sede, tem funcionários, tem sistemas que controlam o nosso fluxo de livros, tem uma presença nas livrarias muito grande. Ganhamos alguns prêmios importantes, o nosso catálogo de autores estrangeiros se expandiu bastante. E o que está em curso agora é um plano de expansão para fora do Brasil. Então, eu comecei uma pequena operação comercial em Portugal: uma parte do catálogo da Nós, já está disponível também em Portugal. Mas, mais do que isso, a gente já publicou dois títulos só em Portugal, que é “Carta à Rainha Louca”, da Maria Valéria Rezende; e “O contrário da solidão”, da Márcia Tiburi. E aí eu fiz um outro passo, que foi criar uma Nós na França. Em conversa com a Márcia, que é a minha sócia lá, chegamos a um nome: Nossa. A gente sabe que tem um desafio grande pela frente, e que vai ser construído livro a livro. Fizemos o da Márcia Tiburi. Agora, em julho, vamos publicar a Márcia Bechara e, em outubro, a Luiza Romão, que ganhou o Jabuti de poesia e de melhor livro do ano, o ano passado.

 

Qual livro ou autor, brasileiro ou estrangeiro, gostaria de ter sido a primeira a editar?

Eu costumo brincar que, como autora e como leitora, eu tenho uma Santíssima Trindade: Clarice Lispector, Virginia Woolf e Simone de Beauvoir. São as autoras que me ajudaram a ser quem eu sou. Mais recentemente eu tenho dito que agora não é mais uma trindade; tem mais uma mulher, mais uma autora, que é Annie Ernaux. Por razões muito pessoais mesmo, porque Annie Ernaux é uma autora transclasse. E eu acho que é o que eu sou: uma autora e uma editora transclasse, no sentido de que eu nasci numa classe em que ninguém se forma escritora e editora. Então, Ernaux é a escritora que eu gostaria de ter publicado. E tentei, mas ela já estava vendida para a Fósforo.

 

Qual o papel da literatura em sua trajetória de vida, marcada pela mobilidade social?

É esperado que uma pessoa que frequentou escolas excelentes, estudou línguas, que teve vasta biblioteca em casa, pais intelectuais, venha se transformar numa jornalista mestre em literatura, editora, escritora. Mas não é esperado que esse caminho se dê para alguém que venha de onde vim, um lugar periférico, pobre, e onde as ofertas culturais e educacionais eram precárias. E de uma casa onde não havia livros, nem a Bíblia, por uma razão concreta: meus pais sequer foram alfabetizados. Perdi meu pai brutalmente, aos 5 anos, e minha mãe também não foi alfabetizada. Como desse solo, se faz o caminho de uma pessoa, que agora é editora? A escola e é por meio dela que a literatura chegou para mim. A educação é sempre uma possibilidade, com potencial transformador impactante. Foi onde encontrei uma afirmação possível, de uma existência, para além daquela carência toda que me rondava. Então, é o poder transformador da educação que faz isso. Clarice Lispector me foi apresentada no ensino médio: “A hora da estrela” foi o primeiro livro que li. Achei muito difícil. Estava crua, naquele momento ainda não tinha repertório para compreendê-la. E na faculdade de jornalismo a Clarice retorna com “Perto do coração selvagem”; aí, sim, houve um espanto. O mesmo que me causou, mais tarde, Virginia Woolf. Elas foram um espanto.  


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