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Biografia percorre contexto histórico 'das vidas' de Fernando Pessoa

Obra de fôlego, traduzida do inglês 'Pessoa: a biography' (Livelight), aborda os detalhes da vida deste que se descreveu como uma 'orquestra secreta'


10/03/2023 04:00 - atualizado 09/03/2023 23:28

Fernando Pessoa
Fernando Pessoa (foto: Quinho)
 
“(...) Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
 
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
 
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha (...)”

(Palavras de Pórtico, nota solta, não assinada, publicada pela primeira vez na primeira edição de “Obra poética”, Rio de Janeiro, 23/3/1960
 
Morreu quase ignorado, sem o reconhecimento que alcançaria, décadas depois. Estava plenamente consciente, que a aspirada imortalidade literária, não lhe chegaria em vida: o horizonte alargado e distante de seu próprio tempo é apreciado pelos leitores póstumos, de gerações futuras, registrou em “Erostratus” (“Heróstrato”) inacabado ensaio escrito em língua inglesa, nos anos de 1930. O gênio de Fernando Pessoa (1888-1935), talvez, nem o próprio conseguira compreendê-lo inteiramente em sua poética da individualidade fragmentada, ainda inalcançada por seus contemporâneos, afirma o biógrafo Richard Zenith, autor de “Pessoa, uma biografia” (Companhia das Letras). Obra de fôlego, traduzida por Pedro Maia Soares, do inglês “Pessoa: a biography” (Livelight), por extensas 1.160 páginas, Zenith percorre o contexto histórico e os detalhes da vida deste que se descreveu como uma “orquestra secreta”, de instrumentos diversos, cordas, harpas, timbales, tambores, talvez em referência à centena de heterônimos já listados (“136 pessoas de pessoa”, Tinta da China, 2017). A magnitude da produção de Fernando Pessoa e de suas três principais “personas” - Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos - levam o biógrafo Richard Zenith à afirmação: “Pode-se dizer que os quatro maiores poetas de Portugal do século 20 foram Fernando Pessoa”. 
 

Portugal é um país sem grande tradição em biografias. Até então, a única sobre Fernando Pessoa fora publicada em 1950, pelo novelista, crítico literário, amigo e editor João Gaspar Simões (1903-1987), sob o título “Vida e obra de Fernando Pessoa — História duma geração”. Tendo o mérito de apresentar Pessoa ao grande público, mas sem uma pesquisa rigorosa e completa, o trabalho de João Gaspar Simões não fechou a lacuna da monumental pesquisa exigida para a reconstituição detalhada da vida e, sobretudo obra, à altura da notoriedade alcançada pelo biografado. Outro livro importante foi escrito por José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e escritor. O integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) realizou extensa pesquisa e lançou, em 2012, “Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia”, considerado o mais completo trabalho produzido no Brasil sobre o escritor português.

Até agora, o mosaico das paisagens já desenhadas pelo “vulcânico” escritor Fernando Pessoa saltou principalmente de uma misteriosa arca de madeira, ancorada em sua casa, que reuniu a produção dele em vida. Continha mais de 25 mil papéis. Páginas de uma história ainda sem fim, ali estavam manuscritos organizados, contos, traduções, comentários políticos, peças de teatro e, igualmente abundantes, escritos fragmentários, ao irromper da criação, fossem em folhas soltas de cafés, em cadernos, em cartões de visitas. A maior parte desse inventário – do qual emerge a identidade de Pessoa ancorada sobre o sistema de heterônimos  – está hoje catalogada na Biblioteca Nacional de Portugal, ainda por ser inteiramente decifrada. Muito ainda há para ser revelado. 

Richard Zenith se propôs ao desafio, com pertinência: é considerado um dos principais especialistas em Fernando Pessoa. Nasceu em Washington, em 1956. Vive desde 1987 em Portugal (tem também cidadania lusa), e construiu uma carreira de dedicação à língua portuguesa e à pesquisa sobre Pessoa: revelou muitos textos inéditos do autor e organizou diversas edições de sua poesia e de sua prosa, entre as quais, o “Livro do desassossego” e “Heróstrato e a busca da imortalidade”, reunindo escritos em inglês “Impermanência”, “A inutilidade da crítica” e “Heróstrato”. Publicou uma fotobiografia de Pessoa (em parceria com Joaquim Vieira) e contribuiu para a exposição “Fernando Pessoa: Plural Como o Universo” (São Paulo, 2010; Rio de Janeiro, 2011; Lisboa, 2012). Foi laureado, em 2012, com o Prêmio Pessoa. Zenith aprendeu português no Brasil e também traduziu para o inglês as obras de João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, além dos portugueses Camões e Sophia de Mello Breyner Andresen.
 

Cartas inéditas, pesquisas em arquivos, uma viagem a Durban, na África do Sul, cidade em que Pessoa passou nove anos da infância, além de entrevistas com descendentes de parentes e amigos do poeta estão entre as fontes de pesquisa de Zenith, já familiarizado com os muitos dos cadernos e papéis deixados por Pessoa. Transitando num amplo universo imaginário, tal qual William Shakespeare, a vida de Fernando Pessoa foi uma alegoria, registra o biógrafo. “Tentei construir, com tantos detalhes dignos de crédito que pude reunir, uma vida ‘cinematográfica’: como Pessoa se parecia e se comportava, para onde seus passos o levaram, as pessoas com quem interagiu e os animados cenários onde sua vida se desdobrou. Mas esse filme, por si só, pouco nos diria sobre o escritor Pessoa, cuja vida essencial teve lugar na imaginação. E assim minha maior ambição foi mapear, tanto quanto possível, sua vida imaginária” considera Zenith. 

O esforço de Zenith se traduz também em um desafio ao leitor, que encontra, já no prólogo da extensa biografia, uma chave para empreender a grande viagem pelo imaginário de Pessoa: nele, o biógrafo apresenta algumas das múltiplas pessoas que, por 47 anos, povoaram, em vida, a mente do poeta. Ali também se introduzem as passagens mais marcantes na vida de Pessoa, nascido em Lisboa, em 13 de junho de 1888, que teve, aos cinco anos, a infância marcada pela morte do pai, Fernando Antônio Nogueira Pessoa e do irmão recém-nascido, Jorge. A mãe e viúva, Maria Madalena Pinheiro Nogueira casou-se novamente com o capitão de navio, João Miguel Rosa, logo nomeado cônsul de Portugal em Durban, maior cidade da colônia britânica de Natal, na África do Sul.  Pessoa passou a infância e cursou a escola regular naquela cidade, no ambiente conflagrado que submetia, sob violência, as populações autóctones e também pela Segunda Guerra dos Bôeres (1899), entre colonos protestantes e seus descendentes, de origem europeia contra o domínio inglês. 

Quando retornou de Durban a Portugal, em 1905, Pessoa assistiu à ascensão de um ditador ao poder, ao assassinato do rei e, em 1910, a uma revolução republicana que pôs fim à monarquia. O mundo, e particularmente a Europa, sofreria em seguida com a Primeira Guerra Mundial. Zenith anota a desastrada participação de Portugal no conflito, o que deixou um legado social e econômico favorável, naquele país e continente, à ascensão de regimes totalitários. Na Itália, Mussolini. Na Alemanha, Hitler. Em Portugal, uma ditadura militar assumiu o poder em 1926, abrindo caminho para o salazarismo. A biografia de Pessoa não se furta a mergulhar no contexto histórico e traz material de suporte e pesquisa, como mapas, a linha do tempo com a cronologia de vida; caderno de fotos, notas, referências e fontes, índice remissivo, além de um anexo com a descrição do perfil de 44 dos heterônimos criados por Pessoa, citados na biografia. Preparado intelectualmente e com fontes de pesquisa robusta para essa empreitada, Richard Zenith condensou, em quatro capítulos, a vida do autor: “O nascido estrangeiro (1888-1905)”; “O poeta como transformador (1905-1914)”; “Sonhador e civilizador (1914-1925)”; “Espiritualista e humanista (1925-1935)”. 
 
 

Imortalidade


Entre tantas “personas” de estilos e produção diversos, cada qual de elaborada biografia, mapa astral e participação no debate público e literário, já plainam em cenário da imortalidade, além do próprio Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Diferentemente de pseudônimos, que guardam a identidade de uma única personalidade, foram assim definidos por Fernando Pessoa em uma “Tábua bibliográfica” de suas obras, publicada em 1928: “A obra pseudônima é do autor em sua própria pessoa, no nome que ele assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu”.  Pessoa, Caeiro, Reis e Campos são, assim, os fios de maior visibilidade desta teia complexa de pelo menos 136 personas, alinhavada, mas não inteiramente desvendada. Cerca de 30 delas assinaram pelo menos uma obra significativa, segundo registra o biógrafo Richard Zenith. 

Obcecado pelo ocultismo e realidade esotérica, inclusive presentes em seus poemas nos seus últimos anos de vida, para Zenith, a entrega obstinada de Pessoa pela literatura seria também, em certo sentido, a busca espiritual, um meio de expressar a verdade e de criá-la. “Seus heterônimos podem ser interpretados como um ato religioso, como sua forma de homenagear Deus, realizando seu potencial divino como um cocriador, à imagem e semelhança de Deus. Não só isso: Pessoa sugeriu fortemente que os heterônimos eram um meio para a transformação alquímica do eu, permitindo-lhe progredir em sua jornada espiritual”, registra Zenith.

Criador e criaturas


Caeiro nasceu em 1914, em princípio como uma brincadeira dirigida ao melhor amigo de Pessoa, o poeta, contista e ficcionista português, Mário de Sá Carneiro (1890-1916), membro da “Geração d´Orpheu”, que ao lado de Fernando Pessoa e Almada Negreiros, entre pintores como Amadeo de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor, introduziu o modernismo na literatura e artes em Portugal. Juntaram-se em torno da revista Orpheu - referência ao mítico músico grego que, para salvar a sua mulher de Hades (inferno), teria de trazê-la ao mundo dos vivos sem olhar para trás. Tratava-se, com o movimento, de “agitar as águas, subverter, escandalizar o burguês” e colocar as convenções sociais sob questionamento.
 
Quem descreveu o “parto” de Alberto Caeiro foi o próprio Fernando Pessoa, vinte e um anos depois de sua criação, em carta sobre a origem dos heterônimos escrita ao crítico Adolfo Casais Monteiro, só divulgada após a sua morte: “Levei uns dias a elaborar o poeta, mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de março de 1914 - acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, ‘O guardador de rebanhos’. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre”.
 

Alberto Caeiro, batismo que, segundo sugere Richard Zenith, homenageia Sá Carneiro - é personagem central do esquema de heterônimos de Fernando Pessoa. Não tem instrução formal, mescla sabedoria e inocência, em poesia pastoril vinculada às paisagens e natureza. Além de “O guardador de rebanhos”, são de sua autoria “Poemas inconjuntos” e “O pastor amoroso”. Não apenas de Pessoa, mas Caeiro tornou-se também mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, entre outros heterônimos pessoanos, que lhe dedicam em suas obras prefácios e referências.
 
E é Ricardo Reis - autodidata em grego, autor de “Odes de Ricardo Reis”, que em 1919, em protesto contra a proclamação da República em Portugal, mudara-se para o Brasil - quem comenta, em apontamento solto, “O guardador de rebanhos”. Segundo Reis, trata-se de obra de “desconcertante coerência intelectual (mais ainda do que sentimental, ou emotiva)”, da ordem e disciplina, da “inteligência raciocinada das coisas”, expressão que atribui à essência do paganismo, que Caeiro veio reconstruir, “pela magia harmônica (melódica) da sua emoção”.  


“Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um por de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.


Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso (...)”

(“O guardador de rebanhos”, Alberto Caeiro)


Diferentemente do viés metafísico do heterônimo Álvaro de Campos, para Alberto Caeiro, as coisas nada significam, nada ocultam, simplesmente existem: “Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: - As coisas não têm significação: têm existência. As coisas são o único sentido oculto das coisas”. O biógrafo Richard Zenith considera, assim, que com os seus versos, Caeiro coloca em xeque todo o conhecimento acumulado por Fernando Pessoa em anos de leitura, pois, “ver as coisas como são” exige o aprendizado em desaprender. “Se Caeiro ensinou alguma coisa a Pessoa foi a arte de desaprender, de ver como se fosse a primeira vez”, afirma Zenith. Para o pensamento lógico e cristalino de Caieiro, que enaltece a natureza e as suas paisagens, levando Fernando Pessoa a defini-lo como um “São Francisco de Assis ateu”, a existência de Deus é irrelevante para o objetivo da vida, que é simplesmente viver. “Caieiro não era um verdadeiro ateu, muito menos um santo. Mas era uma religião, cujo primeiro e principal adepto foi Fernando Pessoa”, observa Richard Zenith. 

Além de comentários sobre Caeiro, o heterônimo Ricardo Reis também fez críticas ao seu companheiro Álvaro de Campos, um engenheiro naval formado em Glasgow, que viajou pelo Oriente, experiência que lhe inspirou os poemas da obra “Opiário”. Estão entre as obras pessoanas mais populares, “Tabacaria”, “Ode triunfal”, “Ode marítima”, “Lisbon revisited” e “O que é a metafísica”. Segundo Ricardo Reis, num extravasar de emoções, em que a ideia serve a emoção, não a domina - e o ritmo é “escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve”, Álvaro de Campos está em permanente e insaciável busca por “sentir tudo, de todas as maneiras”,  observa Ricardo Reis.

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

(...)

Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente (...)
 
(Álvaro de Campos, “Sentir tudo de todas as maneiras”)

“Irreprimível e impertinente, Álvaro de Campos costumava interagir com Pessoa, ora brigando com ele em artigos ou entrevistas publicados na imprensa portuguesa, ora colaborando estreitamente em prol de uma causa comum. Às vezes, Campos o substituía em situações sociais, para consternação de quem esperava que o próprio Pessoa aparecesse, ou agia como porta-voz de seu criador, publicando manifestos numa linguagem inflamada que Pessoa não conseguia exibir por conta própria”, aponta Richard Zenith.
 
Segundo o biógrafo, enquanto Caieiro era a rocha sólida e “religião” da salvação poética de Pessoa; Álvaro de Campos era seu braço direito e companheiro. “Campos era tão próximo de Pessoa que acabou atrapalhando sua única tentativa de ter uma vida amorosa, com Ofélia Queiroz. E era tão talentoso como poeta urbano das sensações que se tornou, inadvertidamente, um obstáculo entre pessoa e seu melhor amigo, Sá-Carneiro”, considera Richard Zenith. 

Sexualidade


Sem interesse pela vida amorosa sexual, é quase certo que Fernando Pessoa tenha morrido virgem, considera Richard Zenith. Encetou um vacilante romance com Ofélia Queiroz, com quem trocou alguns beijos, mas a história não avançou. De curta duração, segundo o biógrafo, a paixão de Pessoa por Zélia foi suficiente para satisfazer-lhe a curiosidade sobre como seria amar uma mulher. Já a curiosidade sobre o amor homoerótico satisfez-se por meio da observação de dois de seus melhores amigos, homossexuais declarados e por Pessoa defendidos publicamente, sempre que atacados. Na escrita, a poesia homoerótica, sobretudo entre 1910 e 1919, brotou em Álvaro Campos, - “um Pessoa visceral, todo sentimento e instinto, antes da intromissão da razão” -, fosse, como sublinha Zenith, pela fantasia de ser abusado por piratas (“Ode marítima”) ou agarrado, no escuro, por marinheiros (“Saudação a Walt Whitman”); ou no romance secreto com um rapaz da cidade de York (“Contemporânea”); ou ainda o amor pelo jovem louro Freddie (“Passagem das horas”). Mas Zenith lembra que também o poeta menciona, nos dois poemas, uma namorada, Daisy e Mary, com quem se deliciava lendo poesias. 

“Campos não estava profundamente comprometido com nenhum (ou nenhuma) de seus (ou suas) amantes, o que se pode adivinhar por sua confissão, já aludida, de que embora fumasse ópio e bebesse absinto preferia ‘pensar em fumar ópio a fumá-lo’ e gostava mais de ‘olhar para o absinto que bebê-lo”, escreve Zenith. De forma análoga, também Pessoa - que acima de tudo preferia a si mesmo a qualquer outra companhia - também tinha mais desejo em escrever sobre o amor entre homens a amar de fato um homem, considera o biógrafo. O biógrafo sustenta que não apenas a sexualidade, mas também a espiritualidade e visão política de Fernando Pessoa foram expressas e vividas por meio das palavras. “Pessoa não teve relações sexuais com nenhum homem ou mulher, não rezou a nenhum deus e não se filiou a nenhum partido político. E, depois de regressar da África do Sul para Lisboa, raramente se afastou dessa cidade. Escreveu e escreveu, em vários gêneros, sobre incontáveis assuntos”, observa Zenith. 


Plural como o universo

 
“Sê plural como o universo!”, escreveu Fernando Pessoa num rasgo de papel encontrado, nos anos 60, no precioso baú, que acumulou o tesouro das paisagens pessoanas. A dispersão literária de Fernando Pessoa espelha, segundo Richard Zenith, a ausência de unidade intrínseca ao mundo que habitamos. “Sem saber exatamente o que estava fazendo, ele nos pré-diagnosticou, já que seus escritos falam de nosso senso contemporâneo de autoestranhamento (quando paramos e pensamos sobre nós mesmos). Seu universo de partes desconexas prefigurou nossa própria visão de mundo, com os desenvolvimentos na história, na ciência e na filosofia, que nos desiludiram de qualquer todo harmonioso que outrora valorizávamos. Evidentemente, tudo o que existe deve, em última instância, estar conectado, uma vez que é parte do existente, e os atuais cosmólogos e filósofos da ordem do mundo desenvolveram algumas teorias elegantes desse panorama mais amplo, no qual o Big Bang talvez seja apenas um evento isolado. De forma semelhante, Fernando Pessoa teve uma visão surpreendentemente ampla do que constitui um eu, uma vida, um sentido”. 

Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
 (Fernando Pessoa, “O Cancioneiro”)
 
Pessoa segue encantando leitores no mundo inteiro, instigando a pesquisa acadêmica, desse universo imaginário e pleno em dizer poético. Passadas quase nove décadas de sua morte, grande parte de sua obra e poemas inacabados ainda não foram transcritos e publicados. O que quis foi não simplesmente ouvido; mas escutado sem qualquer preocupação com o espaço-tempo, já que ele próprio, estava convicto de que, ao renunciar aos códigos vigentes, lançava-se à imortalidade em multipessoas, em multiversos.

“Dai-me rosas e lírios,
Dai-me flores, muitas flores
Quaisquer flores, logo que sejam muitas...
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores,
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço
Que me dei flores...
Sejam essas as flores que me deis (....) (Fernando Pessoa, “Obra poética”)
 

Novas edições

 
Com organização e introdução de Jerónimo Pizarro, especialista responsável por dezenas de estudos e publicações sobre Fernando Pessoa, a Editora Todavia lançou novas edições de duas obras do poeta português:  o livro de poesias “Mensagem” (2022) e o “Livro do desassossego” (2023). “Mensagem” reflete sobre o passado lusitano — as viagens marítimas, os mitos nacionais, o apogeu e a queda do Império. Já o “Livro do desassossego” é obra póstuma que reúne mais de quatrocentos fragmentos de prosa escritos, sem regularidade, entre 1913 e 1934, no contexto europeu da ascensão do fascismo e a chegada de Hitler ao poder. A instabilidade e a incapacidade de firmar posição são aspectos que atravessam essa obra, como observa o escritor Tiago Ferro, que assina o posfácio. Instabilidade de um pensador que, em meio a um mundo em transformação, se dedica a uma profunda reflexão sobre a vida e o que pode instigar um espírito irrequieto: “A minha vida é uma febre perpétua, uma sede sempre renovada.” 
 
 

“Pessoa, uma biografia”

  • Richard Zenith
  • Tradução de Pedro Maia Soares
  • Companhia das Letras
  • 1.160 páginas
  • R$ 199,90
 

“O livro do Desassossego”

  • Fernando Pessoa
  • Todavia Editora
  • 528 páginas
  • R$ 79,90. E-book: R$ 39,90
 

“Mensagem”

  • Fernando Pessoa
  • Todavia Editora
  • 128 páginas
  • R$ 54,90. E-book: R$ 36,90 


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