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Estado de Minas PENSAR

Obra-prima de Proust, 'Em busca do tempo perdido' ganha novas traduções

No centenário de morte do autor francês, livrarias brasileiras recebem novas traduções dos primeiros volumes da série de sete livros


18/11/2022 04:00 - atualizado 18/11/2022 01:11

Retrato em desenho do escritor francês Marcel Proust
(foto: Editoria de Arte/EM)

Uma longa viagem em todos (e por todos) os sentidos, com mergulho nas águas profundas das palavras e voo às constelações de arte, história, convívio social e outros temas que seduzem o leitor da primeira à última linha. Quem lê “Em busca do tempo perdido” (“À la recherche du temps perdu”), do escritor francês Marcel Proust (1871-1922), tem tudo isso permeado de emoção, ironia, imaginação e muito mais a descobrir. Afinal, a obra monumental, escrita entre 1909 e 1922, se divide em sete livros. Esta sexta-feira, 18 de novembro, quando são lembrados os 100 anos da morte do autor, nascido em Paris, pode ser um bom dia para começar a ler, planejar a leitura ou entender um pouco sobre a vida e a obra de Proust.

Para início de conversa, uma boa notícia sobre a obra, ambientada no final do século 19 e início do 20. A Companhia das Letras manda para as livrarias em dezembro e já tem pré-venda dos dois livros iniciais, ambos com novas traduções: o primeiro, “Para o lado de Swann”, por Mario Sergio Conti, e o segundo, “À sombra das moças em flor”, a cargo de Rosa Freire d’Aguiar. Nessa editora, o título geral é “À procura do tempo perdido”.

Como os sete volumes já tiveram outras traduções e edições, o leitor pode encontrá-los também com os títulos “No caminho de Swann”, “À sombra das raparigas em flor”, “O caminho de Guermantes”, “Sodoma e Gomorra”, “A prisioneira”, “A fugitiva” e “O tempo recuperado”.

Para Mario Sergio Conti, o maior desafio ao traduzir a obra de Proust está em preservar “o estilo fluido e sincopado” do romance, mantendo a pontuação e a espiral da prosa. “E fazer com que o livro continue novo como quando foi lançado, mas sem recorrer a construções demasiado artificiais.” No trabalho de tradução, Conti usou a última edição da Pléiade, “que é a mais fiel aos cadernos manuscritos de Proust”.

Marcas humanas

 Por que ler a grande obra de Proust em 2022? Segundo Conti, por se tratar de um clássico da literatura que diz muito sobre a atualidade. “Fala de uma sociedade em transformação. De amor, ciúme, sexo, preconceito, arrivismo, da passagem do tempo e das marcas que ele deixa nas pessoas.”

Quem lê da primeira à última frase entra, sem dúvida, num universo de encantamento – e cada um tem uma lembrança. “É inesquecível o episódio em que o narrador recupera o tempo perdido numa noite de inverno, em Paris, ao tomar chá com madalenas. Ele revive a infância e a cidadezinha onde passava férias”, afirma Conti. Pode ser que o leitor mergulhe de tal forma na narrativa que acredite piamente na existência dos personagens, mas o tradutor explica que todos foram inventados. “Mas algumas das suas características foram tiradas de pessoas reais que Proust conheceu.” 

Para quem vai abrir o primeiro livro, vai a dica do tradutor. “Por servirem como uma espécie de protofonia dos sete volumes, as primeiras páginas são as mais estranhas, porque o narrador está em vários tempos. Mas não desista: depois de acostumar-se, a leitura é tranquila e enriquecedora.”

Novas palavras 

Muito já se publicou sobre a vida e a obra de Marcel Proust, e as leituras complementares, vale destacar, são fundamentais para se compreender melhor o que ele escreveu. Ao chegar ao ponto final, o leitor, com certeza, vai querer saber mais sobre a época vivida pelo narrador da história (seria ele o próprio Proust?), Albertine, Gilberte, Saint-Loup, sr. de Charlus, tia Léonie, Odette e dezenas de outros personagens que, sozinhos ou juntos e misturados, compõem a obra, traduzem seu tempo, apresentam as cidades da infância e da maturidade, falam de política, música, arte, literatura, comida e lugares, sexo.  Traem, colecionam  amantes, fogem e desaparecem, calam-se e vociferam, enfim, preenchem seus dias e noites. Lá pelas tantas, para surpresa do leitor, surge até a menção a um médico brasileiro: “Subitamente lembrei-me: aquele mesmo olhar eu já vira nos olhos de um médico brasileiro que pretendeu curar minhas crises de asma com inalações, absurdas, de essência de plantas”.

Para Proust, arte era fundamental para viver, respirar e entender o mundo, e, bebendo nessa fonte inesgotável de sabedoria, o professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Roberto Machado (1942-2021), que estudou na França e dedicou uma década a estudar a obra do francês, escreveu no recém-lançado “Proust e as artes” (Todavia). Vejamos sua interpretação sobre “Recherche”, como trata intimamente essa referência da literatura mundial:

“‘Em busca do tempo perdido’ tem como objetivo principal apresentar a descoberta da vocação literária de seu protagonista. E uma das provas da genialidade de seu autor é baseando sua construção num paradoxo: o romance está quase todo terminado, quando, tendo descoberto sua vocação literária e exposto sua teoria da arte, o narrador anuncia que ele vai ser começado”.

E mais: “Meu objetivo principal é mostrar que há na ‘Recherche’ uma estética, no sentido de uma reflexão sobre a contemplação e a criação artística, que faz parte da própria criação literária de Proust. Além disso, também pretendo mostrar que essa estética está intrinsecamente ligada a uma metafísica, ou a uma ontologia, pois considera que a verdadeira arte deve dar conta da essência da realidade. Valorizo, a esse respeito, a afirmação de Proust de que ‘o ponto de vista metafísico predomina em toda a obra’”.

Bateu no paladar 

No meio desse turbilhão de pensamentos, palavras e obras, impossível não falar da madeleine (madalena), o biscoito oferecido pela mãe ao narrador, com um pouco de chá. É uma passagem que entrou para a história como “memória involuntária”, trazendo lembranças da infância.

Eis o texto: “Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madeleine. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa.”
 

Biografia

Os dados biográficos a seguir estão na edição com o título de “Em busca do tempo perdido” (Nova Fronteira, 2016) e são de autoria do tradutor Fernando Py. Marcel Proust, filho do médico Adrian Proust e da sua esposa, Jeanne Weil, de origem judia, nasceu em Paris, em 10 de julho de 1871. De compleição frágil, asmático desde os 9 anos, a mãe o cercou de cuidados excessivos na infância. Fez seus estudos no Liceu Condorcet, entre 1882 e 1889, e depois estudou direito e ciências políticas. Colaborou no jornal do liceu, La Revue Lilas, e passou a frequentar os salões da senhora Émile Straus e da senhora Madeleine Lemaire, à mesma época.

Publicou seus primeiros trabalhos literários nas revistas Le Banquet, de que foi um os fundadores, e Littérature et Critique, em 1892. Estreou em livro em 1896 com “Les plaisirs et les jours” (“Os prazeres e os dias”). O volume foi prefaciado pelo escritor Anatole France. Era uma miscelânea de crônicas, contos, poemas em verso e prosa; embora as peças já mostrassem algo do futuro escritor de “Em busca de tempo perdido”, revelavam sobretudo a influência de Anatole France e um certo simbolismo decadentista, próprio da época.

De qualquer modo, a questão do tempo e das inversões sexuais já se tornam suas principais preocupações. Entre 1895 e 1899, Proust escreveu um longo romance, “Jean Santeuil”, que deixou inacabado e só foi publicado em 1952. Nesse esboço de “Em busca do tempo perdido”, já estão delineados não só aspectos de sua obra-prima como até cenas inteiras retomadas posteriormente. Mas Proust ainda não é analista profundo que se revelará depois. Está apenas tratando o assunto e a linguagem. O descobrimento da obra do ensaísta e esteta inglês John Ruskin (1819-1900) foi fundamental: Proust traduziu a “Bíblia de Amiens” desse, e assumiu o gosto de Ruskin pelas catedrais góticas – cuja arquitetura basicamente simétrica lhe dará a estrutura de sua obra-prima.

Mas ainda está experimentando: 1905-1907, escreveu outro livro, mais fragmentário e igualmente inacabado, “Contre Saint-Beuve” (publicado apenas em 1954). Esse já é um esboço mais parecido com a futura obra. A análise se aprofunda, embora muitas vezes só indicada, sem desenvolvimento. Proust já adquiriu um sentido maior de sua obra, faltando-lhe um todo coeso e que desse um tom de linguagem própria ao conjunto. Em 1907, iniciou enfim a feitura da obra máxima, “Em busca do tempo perdido”. Deve ter trabalhado no romance de forma bem exaustiva até 1911, quando possivelmente deu por definitivo o primeiro da série, “No caminho de Swann”. Nesse meio tempo, publicou na imprensa uma série de pastiches, e, a partir de 1900, cessou toda a vida social para se consagrar exclusivamente à sua obra-prima.

“No caminho de Swann” foi publicado em 1913, após ter sido recusado por quatro editoras. O êxito intelectual foi grande. Porém, a irrupção da Primeira Guerra Mundial, em 1914, interrompeu a possibilidade de novas edições. Durante a guerra, Proust remanejou a obra e lhe fez acréscimos consideráveis. Nesse ano de 1914, morre seu secretário, Alfred Agostinelli, por quem Proust era apaixonado. A morte de Agostinelli lhe serviu de modelo para a morte da personagem Albertine, em “A fugitiva”.

Finda a guerra, publica-se “À sombra das moças em flor” (1918). O romance obteve o Prêmio Goncourt de 1919, única láurea conseguida pelo romancista em vida. Em 1920, é publicado “O caminho de Germantes-I” e, no ano seguinte, saem “O caminho de Germantes-II” e “Sodoma e Gomorra-I” em um volume. Recluso em casa, quase não deixando seu quarto forrado de cortiça para abafar os ruídos da rua, Proust adoece, mal tendo forças, no último ano de sua vida, para continuar a escrever e corrigir as provas de seus livros. Em abril de 1922, publica-se “Sodoma e Gomorra-II” em três volumes. Proust relê as provas de “A prisioneira” e sua saúde se complica com uma bronquite seguida de pneumonia.

Poucos dias antes de morrer, aos 51 anos, termina-se a impressão de “Sodoma e Gomorra-III” – “A prisioneira”. “A fugitiva”, com o título de “Albertine desaparecida”, foi publicado em 1925, e “O tempo recuperado”, em 1927.

Livro aberto 

Já se passaram 100 anos da morte de Marcel Proust e tudo indica que sua existência continua como um livro aberto, com “páginas” mundo afora, incluindo Recife (PE). Em 9 de junho deste ano, em livro lançado na França, foi divulgado que o escritor teria mantido uma complicada relação amorosa com um suíço, Henri Rochat, e, para se livrar desse homem, teria recorrido a amigos poderosos a fim de despachá-lo para o Brasil.

Tudo começa assim: convite feito, convite aceito, e Henri, que era garçom em um hotel de Paris, foi viver na casa do escritor, em 1918. Em carta a um amigo, o banqueiro Horace Finaly, Proust confessa acreditar que o jovem suíço “ficaria apenas algumas semanas” e que “poderia ser seu secretário”. Conforme noticiou recentemente a imprensa, as cartas de Proust a Finaly fazem parte da rica herança literária e epistolar que continua a aparecer regularmente na França em torno do autor. 

As “Lettres a Horace Finaly” (“Cartas a Horace Finaly”) mostram que o escritor se arrependeu de seu convite ao suíço. "Como fica entediado em casa, 'fugiu' duas ou três vezes e, infelizmente, não apenas perdeu peso, como também todo dinheiro que dei a ele", escreveu o autor na carta ao amigo banqueiro. 

A vinda de Henri Rochat ao Brasil é também o ponto de partida para “O último romance de Proust” (Editora Ibis Libris), do escritor pernambucano Cláudio Aguiar. No carnaval de 1972, em Olinda, portanto, 50 anos após a morte de Proust, um trio se une para encontrar os “desaparecidos” manuscritos do francês e comercializá-los na Europa, o que renderia uma boa fortuna por serem considerados um tesouro. Nesse roteiro, há contrabandista de obras de arte, ex-combatente das Brigadas Internacionais na Guerra Civil espanhola, bailarina do famoso cabaré Moulin Rouge e um professor de latim.

“Para o lado de Swann” (primeiro volume da obra “À procura do tempo perdido”)
• Marcel Proust
• Tradução de Mario Sergio Conti
• Companhia das Letras
• 448 páginas
• R$ 144,90 e R$ 44,90 (e-book)
• Lançamento em 7 de dezembro

“À sombra das moças em flor” (segundo volume da obra “À procura do tempo perdido”)
• Marcel Proust
• Tradução de Rosa Freire d’Aguiar
• Companhia das Letras
• 528 páginas
• R$ 124,90 (edição impressa) e R$ 44,90 (e-book)
• Lançamento em 7 de dezembro

“Proust e as artes”
• Roberto Machado
• Tradução de Mario Sergio Conti
• Todavia Editora
• 236 páginas
• R$ 74,90 e R$ 49,90 (e-book)

“O último romance de Proust”
• Cláudio Aguiar
• Editora Ibis Libris
• 274 páginas
• R$ 50
• Lançamento em 1º de dezembro

“Em busca do tempo perdido (box)”
• Marcel Proust
• Editora Nova Fronteira
• Tradução de Fernando Py
• 2.472 páginas
• R$ 329,90



O prazer de ler em estado absoluto


A primeira vez em que ouvi falar sobre Marcel Proust, tinha lá pelos meus 11, 12 anos. Foi na aula do professor Davis Viana, até um pouco parecido com o escritor francês, e, muito culto, formado em pedagogia, falava sobre música, literatura, história, métodos de estudo e por aí vai. Portanto, não me recordo exatamente de qual era a matéria lecionada, só sei que aprendi muito – e alguns temas permanecem na nebulosa da memória.

O professor caprichava na pronúncia de “Proust”. Muitos anos mais tarde, numa mesa de bar, escutei Davis (sim, era nessa intimidade que já o tratava) se esmerando no francês para citar “À la recherche du temps perdu” (“Em busca do tempo perdido”). E dizia palavras que, sinceramente, nem sabia da existência. Uma delas, alhures, povoa os nove volumes da obra monumental do autor, nascido em Paris.

Irônico e meio debochado, ainda mais depois de umas doses de “cacha-cola”, uma mistura de cachaça com Coca-Cola, bem apreciada nos anos 1970, Davis contava partes dos primeiros dos sete livros, “No ca- minho de Swann” e “À sombra das raparigas em flor” (hoje mudado de raparigas para moças), com divagações sobre os extensos parágrafos, o ponto final sempre distante, a profusão de personagens. Depois contava uma piada: um homem havia morrido sufocado, ao final da primeira página, pela falta de vírgulas. Pilhérias.

Tudo isso me vem agora à cabeça, me faz sorrir, e vejo na lembrança do professor, falecido jovem, a “madeleine” necessária para eu redigir este texto. Explicando melhor: “madeleine” é um biscoito, que, após mergulhado no chá, toca o paladar do narrador da história e desperta as recordações da infância. “Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa (...) Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreendê-la?”, escreveu Proust.

O tempo passou, como tinha de ser, e eu continuava sem ter lido Proust... Mas isso até o final de julho, ao ter em mãos a coleção em três volumes, contendo os sete volumes, da Editora Nova Fronteira, com tradução de Fernando Py. Primeiro fiquei olhando, depois deslizei os dedos sobre os desenhos da capa antes de mergulhar de cabeça e não soltar mais. Li de enfiada, como se diz, às vezes indo e voltando, recorrendo ao dicionário físico, ao Google e a obras complementares, comentando com amigos – e para quem tem medo de muitas páginas, tenho a resposta: mais vale o prazer da leitura.

Diálogo 

Amor, sexo, política, obsessão, costumes, fofocas de salão, intrigas, moda, arte, episódios históricos, culinária e toda sorte de assuntos cotidianos e passados compõem a obra, parecendo, muitas vezes, uma grande crônica sobre o final do século 19 e início do 20. Proust vasculha escuridões da alma humana, mostra o fausto dos nobres, expõe conflitos de ho- mens e mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres, e, claro, não é comedido ao revelar histórias de alcova ou da vida em sociedade, envolvendo heterossexuais convictos (as), alguns e algumas de vida dupla, e os “invertidos”, como eram chamados, naquela época, os homossexuais. Tudo tratado com a elegância que é peculiar ao escritor nascido em Paris e cuja morte completa 100 anos hoje.

Na leitura, algo me ocorreu: muitas vezes, me peguei em conversas com o narrador, batendo boca com os personagens e surpreso com as revelações de alguns deles. Mas aí me lembrava da frase do dramaturgo e poeta romano Terêncio (“Nada do que é humano me é estranho”) e gostava ainda mais do que lia. Afinal, percorria linhas do tempo, conhecia “novas” palavras antigas e me abria a pensamentos para caminhar “em busca do tempo perdido”. Seguindo as pistas, como um pássaro a bicar os pedacinhos de “madeleine” espalhados pelas páginas.

Ponta do lápis

 Foi aí que veio a urgência de criar uma “entrevista imaginária” com Proust, mesclando ficção e a realidade atual. Não poderia sair da obra como se apenas virasse uma página ou fechasse uma porta. Li o livro com um lápis bem afiado, tipo um detector de metais preciosos, e fui marcando o que julgava inte- ressante. Fiz anotações, aplaudi trechos, coloquei interrogações, sublinhei parágrafos inteiros.

Num belo dia, estava já na última página me perguntando como alguém tinha tanta disposição, fôlego e “coragem” – essa última acrescentada por um amigo – para produzir uma narrativa longa e com tanta imaginação. 

A resposta veio rápida, na “voz” do próprio autor: “Sabia muito bem que meu cérebro era uma rica área de mineração, onde havia diversas extensas jazidas preciosas”. Foi bom, refleti, ter usado um detector de metais preciosos.

Assim, vi que o trabalho do autor foi explorar as cavernas da memória, trazer à luz as pedras garimpadas e lapidá-la com a arte das palavras. E a palavra Fim era só uma volta ao começo – pois basta recontar a história para que o ciclo da vida volte a girar. (Depoimento/Gustavo Werneck)



ENTREVISTA IMAGINÁRIA COM MARCEL PROUST


“Somente pela arte podemos sair de nós mesmos”


O que Marcel Proust tem a nos dizer em 2022? Mesmo que a grande obra dele seja ambientada no final do século 19 e início do 20, soa bem atual em muitos aspectos. Então, marcando aqui e ali as páginas dos sete livros, há respostas, nas “falas” e reflexões do narrador e de personagens, para algumas questões contemporâneas. E assim nasceu, para esta edição do Pensar, uma “entrevista imaginária” com o autor francês.

Para entender aquela época, é bom lembrar que Marcel Proust nasceu seis meses após o término da Guerra Franco-Prussiana ou Guerra Franco-Germânica (1870-1871), conflito entre o Império Francês e o Reino da Prússia. Já aos 43 anos, viu eclodir a Grande Guerra (1914-1918), que entrou para a história como a Primeira Guerra Mundial. No seu tempo, acompanhou o caso Dreyfus, sobre o capitão do exército francês Alfred Dreyfus, judeu de origem alsaciana acusado de entregar documentos secretos aos alemães, e registrou amplamente, no livro, o fato de grande repercussão.
Portanto, em tempos de guerra da Europa neste ano de 2022, vale ouvir a voz da experiência, mesmo que venha do passado para exprimir o horror diante de uma “rea- lidade monstruosa”. E qual a saída? Proust orienta nas respostas a seguir.

Hoje, há muita polarização no mundo, especialmente no Brasil. Uma briga política acirrada, que deixa as pessoas com os nervos à flor da pele...
“Veja, só há duas classes de pessoas: os magnânimos e os outros; e cheguei a uma idade em que é preciso tomar partido, decidir de uma vez por todas a quem amar, e a quem desdenhar; juntar-se àqueles a quem amamos e, para recuperar o tempo perdido com os   outros, não mais deixá-los até a morte.”

A Europa está em conflito, assunto que o senhor conhece bem, pois viveu em tempos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como o senhor vê tais situações?
“Aqueles que viveram durante a guerra de 1870, por exemplo, dizem que ideia da guerra acabara por lhes parecer natural, não porque não pensassem muito nela, mas porque pensavam nela sempre. E, para compreender o quanto a guerra é um fato estranho e considerá- vel, era necessário que, arrancadas à sua obsessão permanente, esquecessem por um instante que a guerra imperava, e voltassem a sentir-se como eram em tempos de paz, até que, de repente, nesse branco momentâneo, se destacasse, afinal distinta, a realidade monstruosa que desde há muito eles tinham deixado de ver, por não ver outra coisa senão ela.”

O senhor aponta algum caminho para a humanidade?
“Somente pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que enxerga outra pessoa desse universo que não é igual ao nosso, e cujas paisagens permaneceriam tão ignoradas de nós como as por acaso existentes na Lua. Graças à arte, em ver um mundo, o nosso, nós o vemos multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quantos forem os artistas originais, mais diferentes uns dos ou- tros do que aqueles que rolam pelo infinito e que, muitos séculos depois de se haver extinto o núcleo de onde provêm, chame este Rembrandt ou Vermeer, ainda nos enviam seus raios especiais.”

O que representa a literatura na sua vida?
“A vida verdadeira, a vida afinal descoberta e tornada clara, por conseguinte, a única vida plenamente vivida, é a literatura. Essa vida que, em certo sentido, habita cada instante em todos os homens tanto quanto no artista. Mas eles não veem, pois não procuram des- vendá-la. E assim o seu passado fica encoberto por inúmeros clichês que permanecem inúteis, visto que a inteligência não os “desenvolveu”. Nossa vida; e também a vida alheia; pois o estilo, para o escritor, tanto a cor para quem pinta, é uma questão não de técnica, mas de visão.”

Escrever é, assim, tão fundamental?
“Escrever é, para o escritor, uma função sadia e ne- cessária, cuja realização o torna feliz, assim como para os homens esportivos o exercício, o suor, os banhos.”
 
Na sua obra monumental, com sete volumes, o senhor fala do tempo perdido e do tempo recuperado. O que é, afinal, o tempo?
“Cada dia antigo permanece depositado em nós como, numa imensa biblioteca, onde existem livros mais antigos, um exemplar que, sem dúvida, ninguém nunca irá consultar. No entanto, basta que esse dia antigo, atra- vessando a transparência das épocas seguintes, remonte à superfície e se estenda sobre nós, cobrindo-nos inteiramente, para que, durante um momento, os nomes recuperem o seu antigo significado, as criaturas, o seu rosto antigo, nós, a nossa alma dessa época, e sintamos, como sofrimento vago, porém suportável e de pouca duração, os problemas de há muito tornados insolúveis, que tanto nos angustiavam então. Nosso eu é formado pela superposição de nossos estados sucessivos.” 

O que o senhor tem a dizer a quem vive em 2022? Há muitas fake news...
“Os nossos adversários mais cruéis não são os que nos contradizem e procuram nos convencer, mas aqueles que exageram ou inventam notícias que podem nos afligir, evitando dar-lhes uma aparência de justificação que diminua a nossa mágoa e nos inspire talvez uma leve estima por um partido que eles timbram em nos mostrar, para nossa tortura completa, a um tempo atroz e triunfante.”  (Gustavo Werneck)


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