(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Leia a saudação de Maria Esther Maciel a Ailton Krenak, 'o xamã das letras'

Maria Esther Maciel, escritora e professora, fez a saudação a Ailton Krenak na entrada do indígena na Academia Mineira de Letras


10/03/2023 04:00 - atualizado 12/03/2023 20:49

Nascido em 1953 no município de Itabirinha, Ailton Krenak passou a ocupar a cadeira 24 da Academia Mineira de Letras
Nascido em 1953 no município de Itabirinha, Ailton Krenak passou a ocupar a cadeira 24 da Academia Mineira de Letras (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Vou começar minha saudação evocando uma planta. Uma planta de espécie rara, pertencente ao gênero Lippia da família Verbenaceaae, que foi descoberta em 2020 em terras mineiras e recebeu dos pesquisadores que a encontraram o nome de Lippia krenakiana, em homenagem ao nosso Ailton Krenak e, por extensão, ao seu povo.  

Trata-se de um pequeno arbusto aromático, com flores róseas que se reúnem em ramos, formando inflorescências. Ameaçada de extinção, a planta gosta dos campos rupestres, tendo se desenvolvido sobretudo na Serra do Espinhaço, que se estende por Minas Gerais e Bahia. Dotada de uma grande capacidade de adaptação, possui uma história de sobrevivência em ambientes hostis. A terra, seu lugar de abrigo, é também sua cúmplice nesse processo de desafiar os perigos do mundo.  

Isso também é o que acontece com os Krenak, em sua longa história de lutas e sobrevivência na região do Vale do Rio Doce. Munidos de força, sonhos e determinação para manterem vivas suas memórias e suas relações de solidariedade com todos os outros povos nativos, nunca deixaram de manter uma intrínseca relação com a terra. Não à toa, o próprio nome Krenak, como Ailton já mostrou em textos e entrevistas, mantém com  a terra uma estreita cumplicidade, por ser constituído de dois termos: kre, que significa “cabeça” e nak, que quer dizer “terra”. Daí o nome Krenak significar “cabeça da terra”. 
 
Como o próprio pensador-escritor elucida no seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”:

“Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de origem, que nos identifica como “cabeça da terra”, como uma humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra.”

E é a partir dessa comunhão que os krenak cultivam sua filiação também ao rio, às plantas, às pedras e a todos os outros viventes do seu entorno, transformando essa rede em uma constelação. 
 
 
O Rio Doce, que os Krenak chamam, em sua língua nativa, de Watu, e é considerado por eles uma entidade dotada de personalidade – um rio-avô, no dizer de Ailton –, ocupa um espaço medular na paisagem  (aqui compreendida como um espaço vital, em movimento) e na história do povo “cabeça da terra”. Numa extensão de 600 quilômetros, ele flui entre Minas Gerais e o Espírito Santo, e em sua margem esquerda os Krenak mantêm sua aldeia.

Ailton nos conta que o Watu corre a menos de um quilômetro do quintal de sua casa, e, mesmo doente por conta da poluição que assola suas águas e dos danos da mineração nas cercanias, o rio ainda canta nas noites silenciosas. Canta e convida seus netos a resistirem, a cultivarem a imaginação e a memória como vias possíveis para a reinvenção do mundo. Foi exatamente nesse lugar atravessado pelo rio Watu, conhecido como Vale do Rio do Doce, que Ailton nasceu em 28 de setembro de 1953. 

(...)

Foi na década de 1980 que passou a atuar, de forma mais incisiva, no movimento indígena brasileiro, abrindo, como ele mesmo relatou numa entrevista de 2018, “trilhas para as novas gerações buscarem o reconhecimento dos direitos das populações originárias, os indígenas, e para conscientizar a população da importância de continuarmos tendo rios, montanhas, paisagens, florestas como recursos capazes de se refazerem ao longo do tempo e como uma riqueza a ser partilhada pelas gerações futuras”. 
 
 
O escritor Ailton Krenak
O escritor Ailton Krenak (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
 

Em 1987, teve um papel decisivo na Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Brasileira de 1988, protagonizando uma cena antológica, celebrada até hoje: enquanto discursava no plenário do Congresso Nacional, pintou o rosto de preto com pasta de jenipapo, numa demonstração de luto face ao descaso e retrocesso na tramitação dos direitos dos povos nativos no país. Ailton, com esse gesto emblemático, somado à sua atuação sempre vigorosa contra o que chamou de “agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena”, foi fundamental  para que fosse incluído na Constituição o “Capítulo dos Índios” - que, em tese, garante aos indígenas “o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (artigo 231). Ou seja, uma conquista sem precedentes, já que, até então, nas palavras do próprio Ailton Krenak numa outra entrevista, “os índios sempre foram tratados como um povo que deveria desaparecer, seja por meio da guerra e do extermínio, seja com a integração na sociedade, de preferência nas favelas”.

Ainda em 1988, Ailton contribuiu para a fundação da União das Nações Indígenas (UNI) e, um ano depois, participou da Aliança dos Povos da Floresta, que reuniu, pela primeira vez, indígenas e seringueiros em defesa da demarcação de terras e da criação de reservas extrativistas na Amazônia, com vistas à proteção da floresta e da população que  nela vive. Um movimento empenhado em manter a floresta viva, em impedir (e aqui evoco livremente as palavras do grande xamã  e ativista Yanomami, Davi Kopenawa), que os rios desapareçam debaixo da terra, o chão se desfaça, as árvores murchem e as pedras rachem no calor, a terra ressecada fique vazia e silenciosa.  

Anos depois desses e muitos outros feitos, Ailton finalmente voltou para sua aldeia em Minas Gerais. Isso, em 1997. Sempre incansável, idealizou e levou adiante, na Serra do Cipó, o Festival de Dança e Cultura Indígena, que promove o encontro a interação de diferentes etnias indígenas. Entregou-se também, com afinco, ao exercício da reflexão e da escrita, e logo o seu pensamento e suas visões começaram a se disseminar nas esferas intelectuais e literárias do Brasil e do exterior (...). 
 

O reconhecimento de sua obra e de suas muitas atividades só cresce a cada dia, evidenciando a grandeza viva desse pensador-escritor que, com sabedoria, inteligência e sensibilidade poética, nos ensina a ver a ancestralidade no futuro e nos apresenta vias possíveis para o adiamento do fim do mundo. 

(...) 

No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton aborda, por vias críticas e poéticas, a construção secular da noção de humanidade, lamenta que os humanos estejam se “descolando” da terra e assaltando a natureza de uma forma indefensável, resgata as potências do sonho, tomado por ele “como um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida” e defende que sejamos capazes de “manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência” como um antídoto contra a mercantilização da vida e a destruição do mundo. 

Um ano depois dessa publicação, e já sob os impactos da pandemia, Ailton lançou o e-book “O amanhã não está à venda”, voltado para reflexões contundentes sobre o coronavírus e os humanos, e o livro “A vida não é útil”. Neste que é o segundo da trilogia iniciada com “Ideias para adiar o fim do mundo”, Ailton questiona o papel das grandes corporações no destino trágico do território mineiro, revisita sua própria experiência coletiva na aldeia dos Krenak e afirma, entre outras coisas, que o capitalismo, em estado de metástase, “ocupou o planeta inteiro e se infiltrou na vida de maneira incontrolável”. 

(...)

O “Futuro ancestral”, que encerra a trilogia, foi lançado em 2022. É um livro de louvor aos rios vivos e aos da memória, às alianças afetivas, ao coração que bate no ritmo da terra. Nele, Ailton reflete, valendo-se de um pensamento dialógico, sobre as relações entre natureza e cultura, convida-nos a (aspas) “imaginar cartografias, camadas de mundos, nas quais as narrativas sejam tão plurais que não precisamos entrar em conflito ao evocar diferentes histórias de fundação”. 

(...)

A poesia como terra-mãe


O olhar poético atravessa todas essas obras, pois a poesia é também a terra-mãe de Ailton Krenak. Não por acaso, ele escreve poemas, organizou um dossiê da poesia indígena de Minas, em parceria com a professora Maria Inês de Almeida, para o volume 81 da Revista da Academia de Letras, é um leitor apaixonado da poesia de todos os tempos e conhece, até a raiz, a obra de Carlos Drummond de Andrade, evocando-a em livros, palestras e conversas. Na pag. 24 de “A vida não é útil”, por exemplo, Ailton confessa: “Quando tudo está entrando em parafuso, você tem que ter alguém para chamar – eu chamo Drummond.” 

Foi, aliás, esse seu amor por Drummond que desencadeou a nossa amizade em meados de 2019. Na ocasião, ele generosamente cedeu uma entrevista à revista “Olympio – literatura e arte”, numa conversa de dois dias com José Eduardo Gonçalves, Maurício Meirelles e eu. Os encontros aconteceram em minha casa, em clima de alegria e descontração. A certo ponto, Ailton citou versos de Drummond para falar dos riscos da mineração no nosso estado e do poder visionário do poeta mineiro. Foi quando busquei um volume da obra completa do poeta para que nosso convidado localizasse alguns versos. Ficamos um bom tempo lendo e comentando a poesia drummondiana, numa espécie de sarau improvisado dentro da conversa. Depois, percebi o interesse do Ailton por livros de vários outros autores, dispostos nas estantes. E constatei que estávamos lidando também com um grande leitor e conhecedor da literatura brasileira e mundial. 
 

Ainda no que tange a Drummond, vale lembrar que é de autoria de Ailton Krenak o posfácio da nova edição de “O sentimento do mundo” (Record, 2022). Nesse texto, ele conta sua descoberta da literatura brasileira se deu aos 20 anos de idade e que Drummond “aparece nesse horizonte como ilha de reconhecimento, possibilidades de identificação com a maneira como o poeta estranha o mundo”. E reitera: “Invocar Drummond como escudo invisível é algo cotidiano para mim, que sinto a dor do rio e suporto, nas minhas “retinas tão fatigadas”, o incessante vaivém da pesadíssima máquina de comer mundos”.

Passei, então, a acompanhar de maneira mais assídua as atuações de Krenak na vida pública, nos eventos, livros, depoimentos e documentários, confirmando o quanto a literatura incidiu na sua formação e nas suas visões sobre o mundo, o tempo, a existência. Uma literatura, cabe dizer, pluralizada, porque não circunscrita ao cânone instituído, mas aberta a todas as vozes e a diferentes registros de oralidade e escrita. 

Há poucas semanas mesmo, ao nos encontrarmos numa padaria para uma conversa sobre a cerimônia de posse, ele falou dos encontros literários, de sua participação na FLIP, do dossiê de poesia que ajudou a preparar, de Drummond e outros nomes da poesia brasileira, de romances recentes que prefaciou, além de tecer um brilhante comentário a questão dos limites entre os mundos humano e não humanos, a propósito do livro “Escute as feras”, da escritora e antropóloga francesa Nastassja Martin, com quem manteve uma rica interlocução.

Não bastasse isso, quando mencionei o enorme conhecimento que ele tem da história da literatura brasileira e os diferentes enfoques das culturas ameríndias que ela trouxe ao longo dos séculos, Ailton não deixou de comentar diversas obras do passado e pontuar que sempre se interessou em saber o que os escritores, desde o chamado Descobrimento do Brasil, escreveram e escrevem sobre os povos originários do país. Depois voltou a Drummond, mais especificamente a um verso do poema “A palavra e a terra”, de “Lição de coisas”: “Onde é Brasil?”.  E falamos de identidade, que não pode ser tomada como algo homogêneo ou uma essência,  e sim plural, já que nela sempre ressoam as vozes diferenciais da outridade. 

Quanto à literatura indígena, que hoje finalmente começa a ser editada e celebrada no país, lembro que, num texto intitulado no livro “A outra margem do Ocidente”, de 1999, organizado por Adauto Novaes, Ailton fez algumas considerações sobre a então inexistência de uma literatura indígena publicada no Brasil até aquela época. Em suas palavras: “Até parece que a única língua no Brasil é o português e aquela escrita que existe é a escrita feita pelos brancos. É muito importante garantir o lugar da diversidade, e isso significa assegurar que mesmo uma pequena tribo ou uma pequena aldeia guarani (...) tenha a mesma oportunidade de ocupar esses espaços culturais, fazendo exposição da sua arte, mostrando sua criação e pensamento”. 

Se essa situação já não se dá a ver como antes, é porque pessoas como Ailton Krenak não pouparam esforços para que a literatura e as artes indígenas entrassem no circuito cultural contemporâneo e pudessem ser reconhecidas como um “pluriverso” (para usar aqui uma palavra usada por Ailton no lugar de universo) cheio de temporalidades, visões, saberes e tradições, em interação com as novas linguagens artísticas e tecnológicas do agora. Como escreveu a Profa. Rosângela Tugny, hoje, quando “cresce a percepção de vivermos uma irreversível crise do Antropoceno, é fascinante assistir ao florescimento de uma exuberante literatura ameríndia, que consiste na expansão coletiva do ritual a novos suportes”. 

No caso de Ailton, a essa exuberância do ritual expandido a outros suportes se acrescenta também uma gama de experiências pessoais. Sobre isso ele escreveu no ensaio “Poesia-experiência”, que também integra o dossiê. Cito um trecho: 

“ Eu me percebo como um sujeito coletivo, que, por ter vivido uma experiência plural, urbana, rural, ter circulado e, por essa experiência multiétnica de ser um Krenak convivendo com Yanomami, Xavante, Guarani, pessoas que experimentam outras perspectivas da pessoa, do sujeito, do coletivo, da comunidade, uma boa parte da minha criação passa por esse caminho de experimentar processos com uma implicação pessoal”. 

Quase no final do texto, ao descrever os processos que envolvem sua experiência com a literatura, ele ressalta as emoções e os sentidos, já que todos esses processos possuem um cheiro, um gosto, uma profusão de estados emocionais e espirituais que o afetam. Em outras palavras, entram na esfera do poético, que é onde Ailton transita com desenvoltura.

Essa força sinestésica e emocional permeia, o tempo todo, os relatos que faz sobre sua própria trajetória e a vida ao redor, estendendo-se ao exercício da memória sobre sua aldeia e seus parentes.

(...)

É, portanto, esse homem dos trânsitos e dos traspassamento de fronteiras, gêneros literários, tempos, paisagens e culturas, que já foi chamado de “xamã cultural” e poderia ser também invocado como um “xamã das letras”, que toma posse na Academia Mineira de Letras. É ele o nosso novo confrade, colega, parceiro, irmão, que, como a planta Lippia krenakiana, com seu poder bioativo, chega para tornar esta Casa mais vital, iluminada, arejada, empática e aberta à pluralidade.

Chega como o impávido índio que Caetano Veloso cantou em uma música que o próprio Ailton sempre menciona em suas conversas: “um índio preservado em pleno corpo físico/ em todo sólido, todo gás e todo líquido/ em átomos, palavras, alma, cor /em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico”.

Seja muito bem-vindo, querido irmão Ailton Krenak. 


Escritora e professora, Maria Esther Maciel ocupa a cadeira 15 da Academia Mineira de Letras. 


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)