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Estado de Minas EDUCAÇÃO

Próximo Enem deve ser o mais desigual de todos os tempos; entenda

Educadores avaliam que pandemia acentuou abismo entre as redes de ensino pública e privada, criou desníveis até no ensino gratuito e preveem reflexos já no exame


14/09/2020 04:00 - atualizado 14/09/2020 18:25

(foto: Arquivo/Agência Brasil)
(foto: Arquivo/Agência Brasil)
Em um país com tantas diferenças, a pandemia acentuou ainda mais as desigualdades. E, no quesito educação, ensino público e privado nunca estiveram tão distantes, como demonstram a maneira mais ou menos eficaz das aulas remotas e até a adoção ou não desse modelo. As consequências vão se estender por muito tempo, na opinião de educadores, mas tendem a ser sentidas já nas próximas avaliações nacionais qualitativas e de resultados. O primeiro choque está previsto para ocorrer já no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), adiado para janeiro, mas cuja possibilidade de uma prova mais “light” está descartada, apesar das dificuldades do ano letivo.

Com previsão de queda nas notas, caberá às cotas, mais do que nunca, o papel regulador, de possibilitar acesso às universidades do maior público do Enem: os alunos da escola gratuita. “O Enem já era jogo de cartas marcadas. Se não tivesse cotas, seria um desastre completo, pois privilegiaria o estudante que tem maior nível socioeconômico e condição de pagar uma escola particular”, afirma o professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) José Francisco Soares, integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE). 

São quase 5,8 milhões de inscrições confirmadas para a edição 2020 da maior avaliação do país. Em Minas Gerais, 577.227 estudantes são esperados nos locais de prova. Soares, pós-doutor em educação, chama a atenção para outra desigualdade que está crescendo em um nicho em que ela não era tão grande: a diferença entre os próprios alunos do sistema público. “Do ponto de vista do direito, temos uma nova exclusão. Este ano (no Enem), haverá dois alunos da escola pública”, afirma. 

O raciocínio considera a diferença entre estudantes da rede gratuita que frequentam escolas que lidaram um pouco melhor com a situação, ao lado dos que estão no cursinho e, com isso, conseguiram um jeito de ter acesso ao aprendizado, em contraposição àqueles que não tiveram essas oportunidades. A outra disparidade, essa velha conhecida, tende a se acentuar: “Os estudantes da rede pública não estão tendo o mesmo acesso que os da particular. E a diferença entre essas duas redes vai aumentar muito”, prevê o educador.

O fato de a prova do Enem ser elaborada com um ano de antecedência impede mudanças de última hora. E, mesmo que fossem possíveis, seriam ainda mais desastrosas, avalia a diretora geral do Coleguium Rede de Ensino, Daniele Passagli. “Não acreditamos na possibilidade de um Enem mais simplificado em decorrência dessa discrepância (entre ensino pago e gratuito), uma vez que uma decisão que poderia favorecer o ensino público não foi efetivada”, diz. “Ao seguir com uma avaliação nacional em janeiro, retirou-se a possibilidade de tentar equilibrar o que foi oferecido para os alunos. Havia a possibilidade de a prova ser aplicada em maio, o que daria a probabilidade aos alunos do ensino público de tentarem algum resgate de conteúdo no próximo ano. Nesse sentido, uma prova mais simples poderá acarretar notas de corte mais altas e não está em linha com o que fora apresentado até o momento (a estrutura do Enem).”

''O Enem já era jogo de cartas marcadas. Se não tivesse cotas, seria um desastre completo, pois privilegiaria o estudante que tem maior nível socioeconômico e condição de pagar uma escola particular''

José Francisco Soares, professor emérito da UFMG e integrante do Conselho Nacional de Educação



É o que pensa também o diretor de Ensino do Grupo Bernoulli, Rommel Domingos. “É um exame para 7 milhões de estudantes. Quando esse formato foi elaborado, em 2009, pensaram numa calibragem. A prova é uma régua capaz de avaliar uma escola que está no interior do Amazonas, mas também as melhores das capitais do Sudeste”, diz. Segundo ele, o nível de dificuldade das questões é a base dessa régua. “Numa prova de matemática com 45 questões, por exemplo, há sempre umas 20 fáceis e 20 medianas. Apenas cinco são difíceis realmente. O desempenho e as médias vão cair no geral, mas a escala de dificuldade não muda, para não perder essa capacidade de medir (públicos diferentes).”

Domingos acredita numa mudança das notas de corte para entrada nas federais, mas não para os cursos mais concorridos, que exigem nota mínima acima de 750 numa instituição como a Universidade Federal de Minas Gerais. “Nesses, a tendência da nota de corte é se manter, porque os candidatos são alunos que estudam de qualquer jeito. Muitos deles estão preferindo, inclusive, o ensino remoto, pois não têm o desgaste com deslocamento e o tempo”, conta.

Para o diretor do Bernoulli, além da diferença de redes de ensino, a pandemia acentuou ainda características dos estudantes. “Na questão tecnológica, é normal que quem tem acesso amplo tem prejuízo menor, mas o problema recai também sobre alunos mais motivados ou menos, independentemente se estudam na rede pública ou privada. É algo que ocorre também dentro da sala de aula. A pandemia afeta mais os menos motivados, pois os outros, que querem correr atrás, conseguem manter ritmo. Parte dos alunos que dependiam do incentivo do professor se tornou órfã, uma vez que a pandemia impõe o isolamento social. De todo modo, essa diferença social no Brasil é lamentável e é uma característica que tende a ser aumentada.”
(foto: Arquivo/Agência Brasil)
(foto: Arquivo/Agência Brasil)

DISTÂNCIA

Daniele Passagli, do Coleguium, aposta que essa distância ainda será enorme por muitos anos, uma vez que a rede particular se movimentou a partir de recursos que são menos acessíveis para a rede pública. “Os alunos da rede privada quase em sua totalidade têm acesso a internet, computador, smartphone e ambiente mais favorável em casa. Além disso, percebe-se em algumas áreas um descaso com a educação pública”, diz.

“Caminhamos para um aumento da desigualdade social e um retrocesso em algumas pequenas conquistas que o ensino público tinha alcançado”, ressalta. Um retrocesso que, mais uma vez, será evidenciado no Enem, avalia Daniele. “As médias da nota do exame estão relacionadas com o nível das questões selecionadas para o instrumento. Mas entendemos que a defasagem de conteúdos para o ensino público poderá interferir diretamente nesse resultado.”

Por isso as cotas serão importantes para minimizar esse abismo, aponta José Francisco Soares. “O aluno do setor público gasta mais tempo para entrar na universidade. Termina o 3º ano e vai fazer cursinho. E outra questão que deverá ser avaliada para não prejudicar ainda mais esses meninos é uma forma de eles serem aprovados (no ensino médio)”, diz. 

O professor da UFMG ressalta que são desigualdades que o sistema de cotas suaviza, mas não faz com que desapareçam. “Há um número grande de estudantes que estão sendo prejudicados e não sabemos quem são. A educação tem que aprender a trazer a pauta das desigualdades para o centro do debate. Índices de avaliação mostram que na média estamos bem, mas não podemos nos contentar com a média, porque o nosso ruim é muito ruim.”

''A pandemia afeta mais os estudantes menos motivados, pois os que querem correr atrás conseguem manter ritmo. Parte dos que dependiam do incentivo do professor se tornou órfã com o isolamento social''

Rommel Domingos, diretor de Ensino do Grupo Bernoulli



Prejuízo marcado no 
boletim do ensino básico


Os reflexos das diferenças acentuadas pela pandemia são esperados também nos resultados do próximo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica  (Ideb), com um baque ainda maior nas performances de escrita, leitura e matemática. Para o professor da UFMG e integrante do Conselho Nacional de Educação José Francisco Soares, é preciso maximizar o nível: aumentar a capacidade de leitura do aluno que lê muito mal e não se contentar com as médias. “O nosso mal é muito baixo. Ano que vem, será necessário pegar os estudantes de onde pararam e dar a todos, primeiro, leitura e matemática, e inchar essas duas dimensões. Essa desigualdade tem que estar colocada de forma límpida para todos.” 

O Movimento Todos pela Educação também acredita numa lacuna maior ainda na aprendizagem à força dessas disparidades entre ensino público e privado. “O ensino remoto não substitui o presencial – aulas a distância vieram para ficar e a mudança era necessária, mas só isso não dá conta. O papel do professor nunca foi tão importante”, alerta a coordenadora de projetos do movimento Todos pela Educação, Thaiane Pereira. 

O Ideb é uma iniciativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação (MEC), para medir o desempenho do sistema educacional brasileiro a partir da combinação entre a proficiência obtida pelos estudantes no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e a taxa de aprovação, indicador que tem influência na progressão dos estudantes entre etapas/anos na educação básica. Ele tem uma escala que vai de 0 a 10 e é feito a cada dois anos. Em cada edição, um objetivo é estabelecido.

Os últimos resultados, divulgados em 2018 referentes a 2017, mostram que, em Minas, o Ideb do ensino médio cresceu 0,2 ponto, saindo de 3,7 em 2015 para 3,9 em 2017 – mas a meta era 4,7. Nos anos iniciais do nível fundamental, as metas foram alcançadas, mas o mesmo não ocorreu nos anos finais. No estado, ela ainda caiu 0,1 ponto, recuando de 4,8 em 2015 para 4,7, em 2017.


PALAVRA DE ESPECIALISTA
Thaiane Pereira
coordenadora de projetos do movimento Todos pela Educação 

Desafios de tamanho e complexidade diferentes

“As redes privadas de ensino ficaram muito comprometidas no período inicial da pandemia, mas responderam mais rápido. É preciso considerar que a questão da escala no sistema particular é muito menor, além da diferença nos recursos disponíveis. As desigualdades se acentuaram tanto no primeiro momento quanto agora, em que não há previsão de volta às aulas presenciais. Para as públicas, o desafio também é maior. Quando se segmenta por nível socioeconômico, alunos com repertório menor e com pior condição socioeconômica tendem a ter piores resultados. Vira uma bola de neve. Está havendo algum esforço em nível nacional para responder a essas dificuldades. Em Minas, a ideia (de ensino proposta pelo estado) foi muito boa, mas não é suficiente. Haverá um legado, mas as desigualdades ficarão mais evidentes e vão aumentar. Isso não pode ser negligenciado de forma alguma.” 


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