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Estado de Minas

"Vocês vão me deixar aqui?": a angústia do isolamento de idosos em casas de repouso

O isolamento do convívio social provocado pela pandemia torna ainda mais difícil a situação dos abrigados, impedidos de receber visitas


postado em 05/04/2020 04:00 / atualizado em 05/04/2020 07:38

Segundo dados do IBGE, mais de 4 milhões de idosos vivem sozinhos no Brasil. Mais de 100 mil em abrigos públicos(foto: pixabay)
Segundo dados do IBGE, mais de 4 milhões de idosos vivem sozinhos no Brasil. Mais de 100 mil em abrigos públicos (foto: pixabay)

 

A pergunta no título desta reportagem foi feita por Maria Flor de Maio, de 84 anos, portadora de demência em estágio brando e internada em uma residência para idosos, ao filho. Os dois conversavam por meio de uma videochamada, uma forma que a proprietária Suzana Moura encontrou para amenizar a ausência de visitas, que se prolonga por mais de duas semanas, aos 17 abrigados na residência Lar Maria Flor, no Barreiro.

Ainda com razoável grau de lucidez, a anciã percebe a falta de visitas, mas não consegue compreender os motivos que levaram seus familiares ao afastamento do convívio, mesmo que periódico. Com toda a assistência médica, psicológica e terapêutica, a ausência dos entes queridos, ainda presentes no que resta de memória de grande parte dessa parcela da população que necessita de atenção especial, pode levar à depressão e trata-se de desafio a cuidadores e especialistas.

 

Suzana, que mantém a casa há sete anos, conta que o momento é um desafio, por se tratar de um público já fragilizado pela idade, e alguns com o agravante de demências em diversos estágios, o que dificulta a compreensão do risco da convivência social. “Há duas semanas que o acesso à casa está liberado somente aos funcionários essenciais, como de limpeza, cozinha, cuidadores e técnicos de enfermagem, somando nove pessoas.” São eles que criam danças, brincadeiras, cantorias, jogos, orações e rezas que ajudam passar o tempo. Fisioterapeutas, estagiários, terapeutas ocupacionais, nutricionistas estão em casa e prestam os serviços a distância. As visitas estão completamente suspensas.

 

"Aqueles com maior grau de lucidez não estão felizes. Perguntam se não é coisa do governo para tirar os velhos da rua"

Suzana Moura, proprietária do Lar Maria Flor

 

“Aqueles com maior grau de lucidez não estão felizes. Perguntam se não é coisa do governo para tirar os velhos da rua”, observa, uma vez que mais da metade dos abrigados tinham o hábito de sair com parentes e amigos uma vez por semana e uma vez por mês vão ao banco receber pensões ou aposentadorias, acompanhados de um funcionário. “Aliás, este será um problema, porque o dia dos benefícios liberados pelo INSS está chegando e eles estão inquietos de como será”, conta Suzana, que já acionou parentes para que busquem os cartões e entreguem os valores recebidos na porta da casa de repouso. Os familiares mais conscientes enviam vídeos, fotos e mensagens, deixando seus entes mais tranquilos.

 

A casa e todos os móveis são higienizados várias vezes ao dia e os funcionários obedecem estritamente às recomendações da Vigilância Sanitária na entrada e na saída da casa. “Até o momento, não tivemos nenhum caso de resfriado ou gripe”.

 

Rotinas A geriatra Maria Cristina Sartini considera que o isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus expõe a falta de políticas públicas para este segmento crescente da população, que são as pessoas com 60 anos ou mais. “Envelhecer é uma conquista e não um peso para a sociedade.”

 

Cristina lembra que os “idosos institucionalizados” já vivem isolados por seus familiares, que raramente os visitam, “portanto, a rotina deles pouco foi alterada, apenas os profissionais que atuam na dispensação do cuidado têm novas rotinas a seguir, como medidas protetivas para as pessoas residentes.”

 

"Nossa casa recebe idosas em sua grande maioria sem referências familiares, sozinhas, algumas nem sequer sabem nome ou idade"

Maria Cristina Sartini, geriatra

 

Para a geriatra, as instituições de longa permanência para idosos (Ilpi) filantrópicas de Belo Horizonte,há muito tempo se tornaram um bem necessário aos idosos, especialmente àqueles em situação de dependência e fragilidade clínica e social. “Neste momento, tenho certeza de que os profissionais que atuam nas Ilpis continuam cumprindo com o seu dever de cuidar, confortar, proteger e dar amor aos idosos.”

 

A preocupação do grupo formado pelas 28 Ilpis registradas em Belo Horizonte de como enfrentar a quarentena encontrou uma forma interessante de manter os idosos calmos e sem maiores traumas durante esse período. “Nossa casa recebe idosas em sua grande maioria sem referências familiares, sozinhas, algumas nem sequer sabem nome ou idade. Nesses casos, a prefeitura recolhe, emite um documento para servir de referência, com um nome que nem sempre é o delas.

 

Muitas nem sequer interagem com seus cuidadores ou com a sociedade, relata a enfermeira Lúcia Helena de Paula, coordenadora do Asilo Recanto Feliz São Francisco de Assis, no Bairro Betânia, Região Oeste de BH, que encontrou na terapia com animais uma forma de interação com esses pacientes.

 

Ela conta que, há dois anos, apareceu um filhote de gata na porta da instituição e foi recolhida com intenção de oferecer para adoção, mas a reação das moradoras chamou a atenção dos funcionários. “Elas passaram a interagir e muitas apresentaram significativas melhoras de cognição e até mesmo físicas.” O asilo, que funciona há 37 anos, passou a contar com apoio de animais nas terapias. “São idosos que sentem seus corações tocados pelos bichinhos. Eles cuidam, dão água, ração, e percebo que se sentem como em seu próprio lar. Os animais reagem de forma muito dócil, já que chegaram aqui filhotes e se adaptaram muito bem à casa e aos seus moradores.”

 

Com ajuda do Ministério Público do Idoso e Deficiente, da PBH e outras parcerias, a instituição conseguiu permissão para manter animais no local. A saúde de duas gatas, uma cadelinha e duas calopsitas é acompanhada pela veterinária Letícia Godoi. “Aqui, eles não estão sentindo o peso da quarentena, se sentem em casa, com jardim, quintal e animal que elas alimentam e cuidam”, conclui.

Isolamento leva à discussão sobre solidão e saúde mental

 

De acordo com o IBGE, mais de 4 milhões de idosos vivem sozinhos no Brasil. Mais de 100 mil em abrigos públicos. Com o atual cenário de isolamento social em função da pandemia do coronavírus, a solidão é um aspecto que passa a fazer parte das principais discussões sobre saúde mental durante a quarentena, tanto em relação a este público quanto às pessoas que mudaram completamente suas rotinas para estar em casa.

 

Tratar do isolamento com esse público e seus familiares necessita de atenção especial. A terapeuta ocupacional Roberta Machado Bastos conta que ao receber a determinação de suspensão de visitas, procurou os parentes de cada um e eles decidiram, de forma conjunta, a melhor maneira de comunicar sobre a ausência prolongada que estava por vir. Alguns explicaram que iam se afastar por um tempo por motivos de viagens. Outros, com parentes em quadro demencial menos grave, foram informados do que realmente está acontecendo.

 

Roberta trabalha com idosos há 21 anos, oferecendo duas modalidades de atendimento no Bairro Serra: um núcleo de convivência e uma moradia, com um total de 23 idosos em ambas as casas, e está com escala menor de funcionários. Alguns, acima de 60 anos, se afastaram. Ela diz que foi redobrada a higienização, e os profissionais são orientados a chegar, tomar banho e trocar de roupa antes do início das atividades.

 

As informações precisas do estado de saúde dos abrigados são fundamentais para manter a tranquilidade dos familiares afastados de seus parentes, explica a psicóloga clínica Michele Gomes Ferreira, de 38: “Afinal, eles ficarão por tempo prolongado sem contato, deixando-os aos cuidados de pessoas que não são da família. A condição de saúde deve ser dividida regularmente com a família”. Outra recomendação é treinar a equipe para este momento, já que não pode abraçar, beijar. Desenvolver novas formas de lidar com atividades mantidas a distância. Os estímulos de conversa on-line com os familiares é importante, principalmente quando esses retribuem. Ela recomenda a manutenção das atividades multiprofissionais auxiliando na manutenção da rotina.

 

"Nesse tempo, o diálogo, a dedicação e a criatividade serão muito importantes"

Maria Dolores Lemos dos Santos, terapeuta ocupacional

 

 

“Nesse tempo, o diálogo, a dedicação e a criatividade serão muito importantes”, explica a terapeuta ocupacional com especialização em gerontologia Maria Dolores Lemos dos Santos, de 59. Amparadas pelo conselho profissional, muitas práticas foram adaptadas à nova realidade, como o atendimento virtual, sempre que possível. “Enviamos aos responsáveis, por e-mail, as tarefas para que sejam impressas. No dia e hora agendados, trabalhamos a atividade a distância, com ajuda do familiar ou do cuidador. Deixamos tarefas programadas para a semana e retornamos na próxima data agendada. Infelizmente, para alguns outros clientes não se consegue fazer o atendimento dessa forma devido às suas limitações cognitivas e ambientais. Mas nos colocamos à disposição para orientar a família e dar um ‘alô’ ao cliente.”

 

Cuidadores


A orientação aos cuidadores é que diminuam as trocas de profissionais, aumentando a permanência por mais tempo, com menos turnos, evitando que transitem diariamente entre sua casa e a do cliente. É uma forma de proteger o idoso e cercar seu risco de contágio. Dolores coordena o Grupo de Apoio ao Cuidador Familiar do Hospital das Clínicas da UFMG e está trabalhando no formato virtual. “As sugestões para diminuir a sensação e o real isolamento são que os familiares gravem vídeos curtos e enviem com frequência, ‘não todo o tempo’, mas uma vez por dia, por exemplo, cada filho envia o seu e combina a exibição com o responsável. No caso de pessoas em quadro inicial de demência, pode ser feita a chamada por vídeo no mesmo horário. Procurar manter a rotina e um ambiente calmo, oferecendo atividades prazerosas, pequenos exercícios físicos, cuidar de plantas, escrever crônicas de pequenos casos, montar quebra-cabeças, copiar letras de músicas favoritas para cantar para os familiares, cadernos de receitas, de orações, de acordo com o histórico ocupacional ou da história de vida de cada um contribuem com o bem-estar. Criar listas, categorizar objetos, pequenas arrumações, cozinhar um prato para a família, com supervisão, ver álbuns de fotos, revistas, palavras cruzadas, bingo, cartas, confecção de artesanato, pintura em tecido, colorir, bordado, linhas, pequenos consertos, jardinagem, entre outras tantas”. Tudo deve ser feito aos poucos, com calma e alegria, sem excessos de atividades e divididas ao longo da semana para não criar mais ansiedade ou desagradar ou sobrecarregar o responsável.

 

Caso o familiar ou responsável pelo idoso se sinta deprimido, desanimado ou apavorado, deve buscar ajuda na equipe profissional. “Nós, profissionais da saúde, devemos estar disponíveis e generosos para acolher esse familiar, ouvir seus medos, aflições, cansaço. E ter a serenidade de fornecer orientações corretas, sem alarmismo, com delicadeza, lucidez e solidariedade. Manter e estimular o acolhimento, a sanidade mental das famílias e a nossa, pois teremos muito trabalho agora, e mais ainda pela frente, quando isso passar. Teremos muitos cotidianos a serem reconstruídos e reestruturados, destacando o apoio às prováveis perdas, readaptações e novas formas de trabalho.”

 

 

 


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