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Estado de Minas ENTREVISTA

Guardiã do passado: restauradora ajuda a preservar obras importantes da nossa história

No momento, Carla de Castro Silva finaliza mais uma etapa da obra de restauração da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, em Belo Horizonte


30/08/2020 04:00 - atualizado 29/08/2020 21:08

(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

Só restaura quem pensa em preservar. Com essa fala, Carla de Castro Silva, de 58 anos, nos convence sobre a importância da sua profissão. A restauradora e conservadora, com mais de 30 anos de experiência, trabalha para garantir que obras e monumentos cheguem ao futuro. Olha para o passado pensando em como garantir que o seu legado seja transmitido às gerações que estão por vir. Muitas vezes, isso significa fazer renascer algo que poderia virar pó de tão deteriorado. Para Carla, não há nada mais prazeroso do que conseguir recuperar as características originais de uma obra, o que costuma revelar surpresas interessantes. A restauradora já trabalhou nas mais antigas igrejas mineiras, que guardam parte da nossa história. No momento, conclui mais uma etapa da obra de restauração da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, em Belo Horizonte.
 
Como era a Carla criança?
Nasci com dom para desenho e, desde pequena, sempre desenhei muito. Gostava de arte, minha família sempre leu muito e sempre incentivou a cultura. Lá em casa, conversávamos sobre arte e lite- ratura. Meu pai nos levava em viagens para museus e cidades históricas. Ficava encantava com o barroco.

Você sempre quis trabalhar com  restauração?
Quando fui fazer vestibular, queria algo ligado à arte. Pensei em arquitetura, mas resolvi fazer belas-artes. Estudei na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lá, conheci o Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor), que na época estava despontando como referência na- cional. Me interessei por esse modo de trabalho com arte mais prático, o trabalho artístico em si é mais complicado. Consegui um estágio no Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), fui contratada e fiquei lá por quatro anos. Depois, entrei no curso de pós-graduação do Cecor e me formei no início da década de 1990. Fundei o Grupo Oficina de Restauro com mais três sócios e trabalhei com eles por 11 anos. Em 1999, saí da empresa e montei a minha própria empresa, a Atelier de Restauro. Fiz um curso de especialização na Espanha e trouxe para BH uma técnica de descupinização que não danifica a obra. Você faz uma espécie de bolha e mata os bichos por asfixia. Lá também fiz um curso de especialização em escultura de madeira policromada (a escultura barroca espanhola é uma das melhores do mundo). Tudo o que aprendi utilizo nas esculturas sacras que temos aqui. Tenho outras especialidades, que são o trabalho com pintura sobre tela e o trabalho com arte aplicada a monumentos. São pinturas em murais, paredes, forros de madeira, retábulos, tetos. Às vezes, são afrescos, às vezes são a óleo. Venho trabalhando com isso há mais de 30 anos.

Fale sobre um trabalho marcante.
Fiz um grande trabalho na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Sabará, uma das três primeiras igrejas matrizes de Minas e uma das mais ricas do Brasil. Começou a ser construída em 1701 e teve a primeira inauguração em 1710, é muito antiga no contexto mineiro. Ela estava muito original. Em nível de arquitetura, tem toda a parte de adobe, nada foi trocado, uma talha riquíssima, com três fases do Barroco mineiro, desde o nacional português, passando pelo período joanino e rococó até chegar ao neoclássico. Isso permite o estudo de toda a arte barroca mineira. Focamos no que estava mais deteriorado, com risco de perda, havia muito cupim. Na primeira etapa, em 2004, trabalhei para o Iphan na capela-mor. Depois, trabalhei de 2007 até 2010, foi um trabalho muito importante. Parte do telhado estava desabando. Parecia milagre que não tivesse desabado, a reza ali é forte. Era para ter caído em cima das pessoas, só não caiu porque é superestruturado, com peças enormes de aroeira e braúna. Às vezes falta uma viga, as outras sustentam. Na terceira etapa, angariamos pouco recurso e não conseguimos restaurar tudo. Mesmo assim, fizemos grande parte. Agora, o padre e o bispo querem dar continuidade e até me chamaram para ver se conseguem retomar esse trabalho.

"Restauro é um trabalho técnico e científico, não é pintar uma imagem. Muitas vezes, o artista plástico está descaracterizando, tirando o valor histórico da peça, fazendo outro trabalho por cima"



O estado de conservação das obras é influenciado apenas pelo tempo, ou também por falta de manutenção?
Muitas vezes, a desinformação impede um trabalho preventivo. De uns tempos para cá, as informações estão mais acessíveis, até os próprios Iphan e Iepha orientam, fazem cartilhas, e as arquidioceses ajudam nesse cuidado. Mas, no passado, ocorriam muitas intervenções inadequadas. Os padres, muitas vezes por desinformação, contratavam um profissional ina- dequado. Chamavam, por exemplo, um artista para res- taurar. Restauro é um trabalho técnico e científico, não é pintar uma imagem. Muitas vezes, o artista plástico está descaracterizando, tirando o valor histórico da peça, fazendo outro trabalho por cima. Outra questão é que todos os governos, quando querem economizar, cortam verba da cultura, prejudicando muito esse setor. Sou do tempo de antes das leis de incentivo e vi muita coisa ser feita por meio desse mecanismo. Em Itapecerica, restaurei a Igreja Matriz de São Bento através da lei da Secretaria Estadual de Cultura, e isso ajuda muito. A parte de fiscalização e orientação ainda tem que melhorar. Os órgãos têm poucos técnicos, e não dão conta. O nosso estado tem 60% do patrimônio nacional; então, as instituições de patrimônio tinham que ser mais fortes.
 
O seu trabalho se limita ao território de Minas Gerais?
Já trabalhei no Rio de Janeiro, no restauro de mais de 60 colunas do saguão da Biblioteca Nacio- nal. As colunas estavam com uma cobertura cinza e, quando tiramos, descobrimos um mármore belíssimo de 1905. Já trabalhei em Portugal, num forro do século 17 para uma empresa de Lisboa. Já trabalhei em Belém do Pará, interior de São Paulo, mas em Minas o trabalho é mais forte.

Qual é a importância do trabalho do restaurador?
Garantir a conservação das obras para transmiti-las ao futuro. Não só no mercado de arte, mas do patrimônio histórico e artístico. É muito importante preservar o legado do passado, o que vai possibilitar estudos de técnicas antigas. Uma obra apresenta um mundo de possibilidades de conhecimento para além da mensagem, estudo de uma época, de um costume. Homem sem arte é um bicho sem graça. Acho que é a arte que dá graça a uma sociedade.

Você continua desenhando?
Muito pouco, minha rotina é muito absorvente. Às vezes, preciso do meu próprio desenho no trabalho, mas tenho feito pouquíssimo.

Tem algum lugar que gostaria de restaurar?
Já restaurei lugares onde queria trabalhar, os monumentos mais antigos, como o Mosteiro de Macaúbas, em Santa Luzia, e a matriz de Sabará. Agradeço muito a Deus porque trabalhei em muitos lugares interessantes e continuo trabalhando, então tenho uma vivência bem bacana. Tenho carinho por todos os lugares por onde passei. Talvez gostaria de trabalhar na Igreja São Francisco de Assis, que é obra de Aleijadinho, ou na Igreja Matriz Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto. Já trabalhei em Mariana, Santa Luzia, Sabará e outras tantas cidades mineiras, mas em Ouro Preto nunca.

O que motiva você a trabalhar com restauração?
A possibilidade de recuperar uma obra que vejo que vai se perder, que vai deixar de existir. Lembro-me de uma pintura na madeira cuja madeira estava igual papel, ia virar pó. Muita gente já jogou obra fora por desinformação, por não saber que dá para recuperar. Outra coisa que dá prazer é pegar uma imagem totalmente repintada, começar a remover as camadas e achar por baixo a pintura original maravilhosa. É um trabalho de arqueologia. Você conseguir revelar a verdadeira obra de arte, isso é muito bom. Às vezes, temos surpresas muito interessantes. Uma obra totalmente desvalorizada, um caco, e de repente a restauração traz ela de volta e ela passa a ser superva- lorizada. Pegar um quadro que está com um verniz muito escuro e as cores originais começam a aparecer. Teve um caso de um São Sebastião de uma igreja que restaurei que estava todo cheio de massa, com a cara deformada, estava até gordinho. Estava horrível, todo descaracterizado. Fui tirando a pintura, as camadas, e ele foi emagrecendo. Voltou a ser uma figura esguia, virou outra imagem. Às vezes acontece isso, alterações loucas de pessoas que não têm co- nhecimento. Cada coisa que já vi que você não acredita. Outro trabalho interessante que fiz foi numa igreja em Itaúna, que fica em um bairro que sofria muito preconceito, já tinha sido zona de baixo meretrício. Depois da restauração, ela ficou maravi- lhosa. Descobrimos as cores originais da fachada e voltamos ao que era no século 19, branca com portas azuis. Agora, a igreja virou point, todas as noivas querem se casar lá. Isso é um exemplo de recuperação do local como um todo.

Nos trabalhos com colecionadores particulares, o que você destaca?
Já restaurei uma vez uma obra do Amilcar de Castro no ateliê dele. Como fui aluna dele, ele me pediu para restaurar um quadro de um amigo, uma pintura de Ouro Preto. Acho que ele queria me testar primeiro, porque depois falou: “Vai lá no meu ateliê, tem uma obra para você restaurar”. Era um quadro grande, bem bonito, importante da carreira dele, com pinceladas de preto sobre branco e mais duas formas geométricas, uma vermelha e outra amarela. Ele estava respingado, acho que tinha caído refrigerante. Fiz o trabalho na presença dele, ele ficava perguntando o que ia passar, mas me deixou à vontade. Foi uma experiência interessante restaurar uma obra no ateliê do próprio artista. Fiz a limpeza, dei alguns retoques e passei verniz, foi bem tranquilo. Já restaurei uma escultura de acrílico do Waltercio Caldas, foi um dos trabalhos mais difíceis que já fiz. Era um acrílico tão precioso, não podia tocar, uma dificuldade, e a obra valia milhões. Ele teve que me orientar na colagem. Ganhei não sei quantos cabelos brancos.

Quais são as dicas para conservar obras de arte?
Sempre usar pano seco e macio ou pincel de cerdas naturais para tirar poeira. Nunca passar produto químico, porque pode danificar. Chame um restaurador para fazer uma limpeza mais profunda. A questão de iluminação também é importante. Sugiro trocar lâmpada fluorescente por LED, que não tem emissão de radiação ultravioleta, danosa para os pigmentos. Tem a questão do telhado, que não pode ter infiltração de água, e a questão do cupim. Mesmo a madeira que tratou precisa ser monitorada. As pessoas da limpeza são as primeiras que podem detectar uma infestação ativa de cupim. É bom avisar quando encontrar aqueles montinhos para já começar o tratamento no início. Nos monumentos grandes, seria interessante ter alguém com esta especialidade, um conservador contratado para ir cuidando. Não é uma prática usual, mas pode vir a ser interessante fazer este trabalho de conservação, como nos museus. Conservação preventiva evita uma restauração dispendiosa.

Quais trabalhos você está executando no momento?
Estou trabalhando na restauração das pinturas das paredes da Igreja Matriz Nossa Senhora das Mercês, na cidade de Mercês. São cenas da vida de Jesus e de Nossa Senhora das Mercês, feitas em 1920. Entrou muito água lá e o reboco estava se soltando. Estou terminando também a Igreja da Boa Viagem, em Belo Horizonte. Nos anos passado e retrasado, fizemos as capelas. Agora, vamos inaugurar a parte da nave. Antes era tudo pintado num tom só, bege claro. A abóbada ficou em azul acinzentado claro e os frisos em um tom amarelo ocre escuro, e outra parte tem um tom bege mar- fim. Descobrimos um barrado marmorizado belíssimo em torno da nave inteira. Ficou com um colorido elegante, está muito bonita. Vale a pena ver como a restauração valorizou tudo. Estão faltando a arte do altar antigo, da antiga matriz da época do Curral del-Rei, que vai ser restaurado na sequência, e a fachada.

A pandemia impactou o mercado de restauração?
O trabalho na Igreja da Boa Viagem ficou parado por dois me- ses. Muitas pessoas ficaram sem trabalho. Continuei o trabalho em Mercês com uma equipe bem pequena, tomando todas as precauções, mas devagar, então atrasou o serviço. Todo ano tem a festa de Nossa Senhora das Mercês e a paróquia arrecada muito dinheiro. Estamos fazendo só uma das três naves e o trabalho não vai continuar. O dízimo diminui, não dá para fazer uma festa grande, então a igreja não tem recursos para continuar a restauração. A parte de restauração particular está bem parada, as pessoas estão rece- osas. Estou participando de concorrências, e projetos pela lei estadual estão para sair; então, tenho alguma perspectiva.

Quais habilidades você considera essenciais para um restaurador?
A pessoa tem que gostar de arte e entender a obra na sua importância histórica e valor artístico. Ter bom senso e não ser muito afobado. Não pode ir tocando a obra sem estudá-la bem antes. Não pode fazer nada que possa comprometer a integridade física da obra, o que às vezes acontece em uma ação malfeita. Além disso, tem que ter paciência e habilidade manual, ter conhecimento da parte científica, de história e ter sensibilidade para a arte. Fazer o mínimo possível de interferência. Às vezes, para conservar uma obra, você tem que interferir de certa for- ma. Por exemplo, está entrando água em uma igreja e você tem que colocar uma calha no telhado. É uma interferência grande, pois aquela calha não existia no século 18, mas é necessária. Mas isso tem que ser em último caso, o máximo que puder não interferir é melhor. É preciso tomar cuidado com os materiais, alguns são danosos. Você não pode pintar uma parede de adobe de uma igreja com tinta sintética, porque ela tampa os poros da parede, o adobe deixa de respirar e, com os anos, vai desmanchando. Em parede de adobe, tem que ser tinta mineral. Há questões técnicas que precisam ser respeitadas para a durabilidade do bem, por isso são tão importantes todos os estudos para conservação. Só restaura quem está pensando em preservar.

A profissão de restaurador tem lugar no futuro?
Somos conservadores e restauradores. Trabalho preventivo vai ter que existir sempre. Fora que temos um patrimônio imenso precisando de tratamento, obras que estão muito degradadas, então há muito o que fazer. Mão de obra temos bastante. As universidades estão formando muita gente boa e o mercado tem demanda, o que falta é investimento na área de cultura. Trabalhei muitos anos em Caeté e lá treinei várias pessoas que hoje são técnicos em restauração, outros vão até fazer faculdade. Em Sabará, também. Isso é muito bom, trabalhamos com mão de obra local que vai aprender o ofício e ajudar na conservação da obra. Água, cupim e vandalismo são os principais fatores de degradação, e a durabilidade daquilo que restauramos depende da conservação preventiva. 
 
 


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