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Estado de Minas ENTREVISTA

Mesmo afastada dos palcos, mineira encontrou outras formas de dedicar a vida à dança

Marjorie Quast, fundadora do Núcleo Artístico e do Camaleão Grupo de Dança, seguiu a carreira como gestora depois de sofrer um acidente de carro


postado em 01/09/2019 04:00 / atualizado em 29/08/2019 14:27

(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)


Para uma bailarina, ficar longe dos palcos poderia ser o fim. Impossibilitada de dançar depois de um acidente de carro, Marjorie Quast não se entregou, encontrou outras formas de se envolver com a arte que a acompanha desde criança. Formada em balé clássico, a mineira que fundou o Núcleo Artístico e o Camaleão Grupo de Dança, em Belo Horizonte, seguiu a carreira como gestora. Desde então, a pesquisa é um dos grandes interesses de Marjorie, que se define como curiosa e inquieta. A cada apresentação, com um coreógrafo diferente, os bailarinos do Camaleão se envolvem com novas técnicas. No ano em que completa três décadas e meia de história, o grupo estreia o espetáculo de rua Verga.
 
Na infância, você já dava sinais de que seria bailarina?
Desde pequena, tinha certeza de que seria bailarina. Na verdade, já me sentia uma bailarina. Adorava o balé clássico, estudei com a Ana Lúcia de Carvalho, do Ballet Ana Lúcia. Tinha o hábito de dançar para a minha família. Não tinha TV na época, então o meu pai e a minha mãe se sentavam para nos ver dançar. Eu e a minha irmã fazíamos aula na sala de jantar. Foi o meu pai, um holandês grandão, quem me levou para a aula de balé. Lembro-me de entrar de mãos dadas com ele, devia ter uns 6 anos. Com o decorrer do tempo, a família me apoiando, não tive dúvida do meu caminho para a dança e a curiosidade me levou a pesquisar outras formas de dança.

O que falavam, naquela época, de quem queria ser bailarina?
Falo que vivi tempos áureos. Tinha tanta certeza, um certo atrevimento, que as pessoas não questionavam. Fui para Londres, onde estudei na Royal Academy of Dance, depois fui para Nova York, era onde as coisas aconteciam, era um grande centro. Fiz muitos cursos de dança.

A sua trajetória começou pelo Núcleo Artístico. Como surgiu a ideia de montar a escola?
Minha irmã e eu tivemos a ideia de montar uma escola para colocar para fora a nossa vontade de dançar, a criatividade, a energia, de um jeito próprio. Queríamos falar da dança da forma como a entendíamos, então lançamos o Núcleo Artístico em 1978. No início, viemos com o balé clássico, depois fomos muito para o lado do jazz. Foi o jazz que nos fez despontar. Aí vieram os anos 1980, estávamos no auge de inventar coisas, e então surgiu a ideia do Camaleão.

Qual é o seu estilo de dança preferido?
Balé clássico faz parte da minha formação, está na minha alma, mas sempre tive uma inquietude de pesquisar outras técnicas, então ia para todos os lados. Gostava do jazz, do moderno, do contemporâneo, do sapateado.

Por que dançar faz bem para você?
Quando a alma tem necessidade da arte, ela pede. Para mim, dançar era um alento para a alma. Sofri um acidente de carro muito sério em 1985, com 29 anos, e tive que parar. Até tentei continuar, mas para o balé clássico ficou muito complicado, o meu pé teve que ser reconstituído. Então, continuei com a arte da dança através dos outros. A minha alma continuou feliz vendo o que ia construindo, as pessoas no palco. Fui me tornando uma empreendedora da arte. Fiz artes plásticas, depois pedagogia.

Você ficou muito revoltada por não poder mais dançar?
No início, sim, mas a arte foi me ajudando. Hoje existe tanta gente ligada no mesmo sonho, na mesma arte, e a dança também pode ser ferramenta de educação, de pesquisa. Lógico que o maior prazer de uma bailarina é estar no palco, mas, quando você ama o que faz, vai descobrindo outras formas de se realizar. Isso me fez pesquisar, ponderar, me autoconhecer e lutar pela dança como posso.

Fale de alguns momentos marcantes que viveu no palco.
Gostei muito de fazer o espetáculo Terra, com coreografia de Fred Romero e direção da esposa dele, Betina Bellomo, até hoje mestra da dança em Belo Horizonte, ela trabalha com todas as principais companhias. Fred trouxe para o Camaleão um número mais moderno. Depois veio o Diadorim, que surgiu por causa da minissérie Grande sertão veredas.

O que levou você a se interessar por pesquisa?
Acho que não existe uma só forma de falar com o corpo. É muito interessante ver um bailarino que usa várias técnicas, que pode falar com várias linguagens. Hoje em dia estou fascinada pela pesquisa do mexicano Omar Carrum com a Continuum. É uma técnica de dança contemporânea contínua de movimentos, nada quebra. Ele nos deixou o espetáculo traZ-humante, inspirado naquela época dos retirantes. Olhando, parece que as pessoas estão meio fora de contexto, fora do conforto.

Pesquisa é a essência do Camaleão?
Sim, somos um grupo de pesquisa. Temos por filosofia não trabalhar com coreógrafo residente e a cada hora pesquisar uma pessoa, uma tendência. Então, usamos várias linguagens, temos mesmo cara de camaleão, cada espetáculo tem a sua característica. Tem pesquisa que não vira espetáculo, mas não temos compromisso de conseguir. O nosso compromisso é pesquisar.

Como a dança transformou e transforma a sua vida?
A dança me faz olhar o entorno, ter sensibilidade, me faz pensar. Hoje, presto atenção na dança como ferramenta de educação. Temos um projeto com o Instituto Unimed-BH há 10 anos no Morro das Pedras. Damos aulas de dança de rua e bale clássico, que tem a maior lista de espera. O grande sonho das meninas de lá é ser bailarina. Os nossos bailarinos são professores do projeto. Quando algum deles desponta, trazemos para o grupo. Aqui podem fazer jazz e contemporâneo.

Que histórias já ouviu?
Meninos que saem da droga, que estão perdidos, que não estudam e começam a se concentrar através da dança. Os professores vivem nos agradecendo. A dança ajuda na caligrafia por causa da coordenação motora. Também ajuda no respeito ao próximo.

Você sempre pensou em dar aulas?
Já era mandona desde criança. Dava aula para a minha irmã e todo mundo, desde pequena tinha tendência para ensinar. Em 2014, me formei em pedagogia, eu e Inês Amaral, hoje diretora artística do Camaleão. Senti necessidade de estudar para entender a educação no Brasil.

O que você descobriu?
Temos que insistir, não podemos desistir de jeito nenhum. Estamos caminhando devagar. Afinal, sofremos com a escravidão e a ditadura, que atrasaram a nossa educação, mas o único jeito de o Brasil melhorar é com a educação.

Como a dança pode ajudar?
A dança é uma ferramenta maravilhosa de educação, primeiro pelo autoconhecimento, depois pelo respeito, disciplina, objetivo, meta, foco, cuidado com o corpo. A dança traz tudo isso. Dança é uma forma de exercício com criatividade.

Você também gosta de criar coreografia?
Não, nunca me senti confortável. Talvez porque tinha que fazer a coisa acontecer, então fiquei focada na parte de gestão administrativa e artística.

O que você buscava quando se envolveu com a dança?
A meta sempre foi buscar alegria, do coração e da alma, e liberdade.

Como o Camaleão marcou a história da dança?
Pelo fato de ser um grupo de pesquisa, que por onde vai quer ter contato com os artistas locais e a comunidade. Os nossos bailarinos, duas mulheres e três homens, estão juntos há cinco anos, então isso dá peso para as pesquisas. Assim, contribuímos para a dança mineira se firmar. Além disso, dezenas e centenas de artistas maravilhosos passaram por aqui e estão dando frutos para a dança no mundo. É muito gratificante saber que tem gente na Alemanha, França, Bélgica, Holanda. Agora estamos tentando ir para fora. Tenho vontade de ir para o Velho Mundo, para a Holanda do meu pai, com o grupo todo.

Conte um pouco sobre o mais recente espetáculo do grupo, Verga.
Com direção artística e coreografia de Inês Amaral, ele fala sobre formas criativas de resistência, inspirado na capoeira. Há quatro anos os bailarinos do Camaleão fazem capoeira com o Mestre Agostinho, do Grupo Ginga, e isso influenciou a nossa linguagem. Capoeira também não é uma forma de resistência no Brasil? Estreamos em Belo Horizonte na Virada Cultural, depois fizemos numa praça em São Paulo e no foyer do Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro. É um espetáculo de rua.

Por que ir para a rua?
Tivemos a primeira experiência com Chico Pelúcio, do Grupo Galpão, que dirigiu o espetáculo Horas possíveis. Esse já rodou o Brasil, mas é muito difícil por causa do cenário, que é muito pesado, e as pessoas querem coisa mais simples de transportar. O Verga não tem cenário, só os bailarinos, o que estimula a interação com o público. No fim, todo mundo entra no cortejo. Mas acontecem imprevistos também. Na rua estamos sujeitos a entrar um cachorro, um morador de rua, estamos invadindo o espaço deles. Aqui fizemos na Praça Sete, foi uma emoção. Acho que é o lugar mais mágico em que já nos apresentamos, é o símbolo de BH. O público se envolveu, foi gratificante demais.

Fazer arte no Brasil não é fácil. O que levou o Camaleão a chegar aos 35 anos?
Muita raça. Participamos de todo tipo de edital e procuramos parcerias. O Camaleão funciona muito com parceria, no Brasil todo, para conseguir circular o seu repertório.

Em algum momento você pensou em desistir?
Em alguns, sim. Agora estamos atravessando momentos difíceis no Brasil, muitas companhias desmanteladas. Acho que é um dos mais difíceis que já vivi, mas, com coragem e união, a classe tem que lutar para que a dança não acabe. Uma andorinha sozinha não faz verão.

O que faz o Camaleão diferente dos outros grupos de dança?
O Camaleão é versátil e está sempre aberto a receber pessoas, trocar ideias, a pesquisar o outro. A direção escuta, olha no entorno e está o tempo inteiro pesquisando, descobrindo quais são as tendências. Hoje, por exemplo, as danças urbanas cresceram demais. Não é só olhar, temos que viver aquela ideia, fazer aulas, até para saber se cabe para o grupo ou não.

E o projeto da expedição ao Rio das Velhas?
Ganhamos prêmio no Fundo Estadual de Cultura para fazer uma expedição pelo Rio das Velhas, chegando até perto do Rio São Francisco. Vamos pesquisar comunidades ribeirinhas, descobrir quem borda, quem toca, e construir a nossa dança baseados nisso. Depois, vamos apresentar para eles dentro de uma chalana e produzir um vídeo de dança. Convidamos Jorge Garcia como coreógrafo. Ainda falta receber a verba, mas está tudo combinado para 2020. A única época em que dá para transitar pelo rio é na cheia, março, abril, depois do verão. Agora só tem pedra, está muito seco. Estamos indo com o coração aberto. É um sonho antigo que tinha.

Qual é o seu objetivo com isso?
Divulgar a dança e fazer trocas. Trazer um pouco deles para nós e de nós para eles. Não sabemos o que nos aguarda, temos que chegar perto e ver o que vai ser. Agora estamos colhendo materiais, como se fossem biólogos pegando mudinhas.

Você tem uma história antiga com Oswaldo Montenegro. Vem mais um capítulo por aí?
Nunca perdemos o contato. Ele nos viu dançando o Ritmo do coração e bateu na nossa porta: quero fazer um espetáculo sobre signos. A partir daí, criamos a Dança dos signos. Agora vamos para a quinta parceria, mas, como ele disse, não sabemos onde, nem como nem quando. Só sabemos que se chama Mayã e que a trilha sonora está pronta. Oswaldo vem uma vez por mês a BH, mas não queremos ter pressa, queremos fazer devagar. Ele é um excelente diretor e contator de história. É um poeta antes de ser músico, está dando ideias e estamos embarcando, vamos ver aonde vai chegar. Não queremos colocar data, já corremos tanto na vida. É uma alegria não ter pressão de fazer espetáculo amanhã. Há 42 anos que nos conhecemos, é uma amizade. Ele quase acabou com o meu coração quando fez show com Renato Teixeira no Palácio das Artes e dedicou a música Velhos amigos a mim.

O que você quer para os  próximos anos?
Saúde, alegria e prosperidade com a dança. Quero ver o Camaleão feliz dançando, todo mundo produzindo, vivendo através da dança, a dança circulando pelo Brasil.

Pensa em se aposentar?
Da dança, não. Estou com muita disposição. 


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