Sofia Cunha
Em 1958, a hostilidade do futebol, então um esporte machista e patriarcal, foi ignorada por mulheres do Araguari Atlético Clube, clube do Triângulo Mineiro. Sem pensar em aprovação, a contragosto de alguns, vestiram uniformes considerados inadequados, ignoraram lei, lotaram estádios, foram felizes e fizeram história. Nascia, ali, o primeiro time profissional de futebol feminino.
Essa história, na realidade, ganhou força no início dos anos 2000, quando Ney Montes, o idealizador do projeto, adoeceu. No hospital, para puxar conversas com a filha Teresa Cristina de Paiva Montes Cunha, o então secretário do Araguari contou a trama.
“Nem minha mãe comentava porque na época era tão proibido, contra a lei, tanto que se engavetou (o projeto do futebol feminino). E nem as jogadoras, nem meu pai, nem mais ninguém falou sobre a história”, explicou Tetê Cunha, como é conhecida.
Graduada em Comunicação Social, ela fez do momento com o pai o ponto de partida para resgatar o passado. A pesquisadora quis conhecer a trama e traçar a história do futebol feminino.
Muito tempo se passou e, atualmente, o Araguari passa por uma fase de reestruturação. Praticamente inativo por questões financeiras e com problemas de gestão, em 2022 o clube fez parceria com o Instituto Leões do Cerrado, presidido por Marcus Borges, que também é o atual vice-presidente do Araguari, responsável por viabilizar a existência do time de futebol feminino.
Ano passado, o clube voltou a disputar o Campeonato Mineiro. Como previsto, o desempenho não foi dos melhores e o Araguari sequer pontuou. Naquela edição, a intenção era reativá-lo. O que foi feito com a participação de jogadoras experientes, como Pretinha, ex-Seleção Brasileira.
Em 2023, a equipe voltará a disputar o estadual, que terá início amanhã, com seis equipes (.
Desta vez, além do financiamento do Instituto, a equipe contará com o apoio da Prefeitura municipal e da rede de supermercados Mart Minas. Vale ressaltar que as atletas não vivem do futebol, o conciliando com outras atividades.
De acordo com o vice-presidente do clube, a reestruturação é um processo para um objetivo maior. “Estamos trabalhando nessa reconstrução para que, em 2024, a gente tenha a base e o profissional feminino funcionando. Nossa meta é nos tornar referência da modalidade no estado”.
Por isso, Marcus Borges deixa claro que o projeto, atualmente, visa detectar novas atletas e não necessariamente brigar pelo título mineiro. “Nosso intuito é abrir as portas para mulheres que nunca jogaram estarem no cenário esportivo de alto rendimento”.
Nascido ao acaso
O time de futebol feminino do Araguari nasceu do acaso. Os personagens principais são Isolina França Soares e Ney Montes. Ela era diretora da Escola Estadual Visconde de Ouro Preto, ele, dirigente do time da cidade.
A escola gerenciada por Isolina recebia crianças de origem simples e sanava a necessidade de alimentos, roupas, brinquedos e materiais por meio de doações. Estruturalmente, o local também era precário.
Em 1958, a diretora pensou em uma solução diferente para manter a escola. Ela procurou Ney Montes e pediu que ele organizasse um jogo beneficente para arrecadar fundos. O dirigente, então, propôs algo diferente para os padrões da época: uma partida jogada por mulheres. Ali, ele viu a oportunidade ideal para formar um time de futebol feminino, pensamento que já matutava. Proposta aceita e martelo batido.
O primeiro jogo do Araguari foi disputado em 19 de dezembro de 1958, no estádio Vasconcelos Montes. O amistoso em prol da escola Visconde de Ouro Preto marcou época e encheu as arquibancadas.
Depois da estreia, deslancharam. Receberam convites e atuaram em algumas cidades mineiras, como Uberlândia e Varginha, até chegarem a capital Belo Horizonte. Não satisfeitas, ultrapassaram as divisas do estado e jogaram também em Goiânia, Itumbiara, Buriti Alegre e Salvador.
Mas o Araguari já estava vivendo perigosamente. Em 1941, o então presidente Getúlio Vargas promulgou um decreto-lei que proibia as mulheres de praticarem o futebol. O político justificou que o esporte não era adequado à natureza feminina. A nível nacional, restou às mulheres o jogo clandestino, em campos de várzea.
Além de ter o devido reconhecimento, assistir ao futebol feminino na televisão é o que afaga o coração de Zalfa Nader, ex-zagueira e capitã do time do final dos anos 1950. “Eu lembro de tudo que a gente passou. Os jogos que a gente fez foram muito aplaudidos. O povo tinha muito carinho com a gente. Foi muito bom. Dá saudade”, disse a ex-jogadora ao reviver os momentos.
Depois do desmonte, a ex-capitã não retornou ao esporte. Hoje aposentada, Zalfa trabalhou por anos como telefonista.