Damares apostou nos penteados afro, virou trancista, hoje  consegue alimentar os seis filhos e, de quebra, colabora para a elevação da autoestima de outras mulheres negras

Damares apostou nos penteados afro, virou trancista, hoje consegue alimentar os seis filhos e, de quebra, colabora para a elevação da autoestima de outras mulheres negras

Luiz Ribeiro/EM/D. A Press
Elas já enfrentaram os mais variados tipos de dificuldades impostas pela pobreza extrema. Coitadinhas? Não, vencedoras. Para elas, o sofrimento não representou desânimo de encarar a luta. A partir do próprio esforço, encontraram uma maneira de gerar renda e vencer os obstáculos. Esta é a realidade vivida por mulheres que nasceram em áreas vulneráveis, mas que foram à luta, amenizaram o sofrimento e estão conseguindo mudar de vida com pequenos negócios ou prestação de serviços.

O Estado de Minas foi a campo e, a partir desta edição, conta a história de “mulheres lutadoras e vencedoras”, verdadeiras guerreiras, que, no dia a dia encaram e superaram o preconceito, a pobreza e outras adversidades. A reportagem conheceu de perto o esforço de dedicação de Damares, mulher negra, mãe de seis filhos, que fala abertamente dos momentos em que enfrentou a fome em um ambiente marcado pela violência. Sozinha, sem marido, ela encontrou um meio de sobrevivência para si própria e os filhos, em um ofício que, além de gerar renda, é um fator de elevação da autoestima e de valorização da cultura negra: trabalha como trancista – faz tranças de cabelo.

Outra lutadora é dona Teresa, mãe de seis filhos e avó de 13 netos, que, mesmo na terceira idade, mantém o negócio que a ajudou a criar sua família: um carrinho de pipoca. Na infância, na zona rural onde nasceu, ela trabalhou com a enxada na lavoura, o que a afastou da escola. Na adolescência, foi morar na cidade e deu duro como doméstica. “Trabalhei em casa onde não tinha comida pra mim”.



Já Kelly enfrentou o drama da gravidez na adolescência, aos 13 anos, o que a obrigou a abandonar a escola. Teve a segunda gestação aos 16 anos e experimentou muitos outros percalços. Hoje, supera as dificuldades fazendo trabalhos manuais, morando com as duas filhas na zona rural.

Por sua vez, Fabiana, após uma infância difícil por causa da pobreza, teve que abandonar, aos 17, a família no lugar onde nasceu, para trabalhar em casa de família e estudar. Fez cursos de estética e de cabeleireira. Hoje, ela é dona de um bem montado estúdio de beleza em Montes Claros, no Norte de Minas, onde emprega 12 pessoas e, em breve, vai inaugurar sua sede própria e ampliar o negócio e os postos de trabalho.



O esforço das mulheres de áreas carentes para melhorar de vida e gerar renda com as próprias mãos foi abordado na pesquisa “Empreendedorismo nas Favelas de Minas Gerais”, realizada pelo Sebrae Minas em parceria com o Data Favela /Instituto Locomotiva. O estudo foi feito no segundo semestre do ano passado, em comunidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte e do interior do estado.

De acordo com a pesquisa, 45% das mulheres empreendedoras das favelas mineiras identificaram uma chance de negócio ou um nicho de mercado e abriram um negócio. Por outro lado, 52% das entrevistadas empreenderam por necessidade, buscando uma alternativa para arcar com seus custos prioritários.

infográfico no leme do destino

No leme do destino

Soraia Piva
O estudo ainda mostrou o perfil das empreendedoras das favelas mineiras: 75% são negras, 45% têm entre 30 e 45 anos e 44% cursaram até o ensino fundamental completo. Além disso, sete de cada 10 mulheres que têm um negócio são mães. “São chefes de família que se dividem entre os afazeres domésticos e maternos e a rotina de comandar e administrar o seu próprio negócio. Também veem no empreendedorismo uma alternativa para terem mais tempo com seus filhos”, avalia Marcelo Souza e Silva, presidente do conselho deliberativo do Sebrae Minas.

Segundo o levantamento, quatro em cada 10 empreendedoras das comunidades do estado realizam as atividades do seu negócio em casa. Em relação ao tipo de empreendimento, 32% das mulheres das favelas mineiras têm negócios no setor de prestação de serviços, 31% se dedicam ao comércio de produtos feitos por terceiros e 29% atuam com a produção e venda de bens e produtos artesanais. Já as atividades em que há um maior número de empreendedoras atuando são: beleza e estética (29%), alimentação e bebidas (26%) e vestuário e acessórios (15%).


Na pesquisa, foram entrevistados 1.004 empreendedores de comunidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Aglomerado da Serra, Alto Vera Cruz, Conjunto Taquaril, Morro Alto e Nova Contagem), Araçuaí (Calhauzinho), Montes Claros (Bairro Cidade Conferência Cristo Rei), Araguari (Bela Suíça – I, II e II, Independência, São Sebastião, Monte Moria e Vieno) e Congonhas (Residencial Gualter Monteiro).

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 3% dos domicílios de Minas Gerais estão localizados em favelas – isso corresponde a mais de 231 mil domicílios na capital e em cidades do interior. Ainda segundo o IBGE, em Belo Horizonte, mais de 12% das moradias estão nessas localidades.

Superação trilhada na cultura afro

 
Uma das lutadoras e vencedoras de áreas carentes a partir do esforço próprio é Damares Aparecida Pinto, de 40 anos, mãe de seis filhos. De família pobre, ela nasceu no Aglomerado Cidade Cristo Rei, em Montes Claros, no Norte de Minas, uma das comunidades incluídas na pesquisa ‘Empreendedorismo nas Favelas de Minas Gerais”, realizada pelo Sebrae Minas em parceria com o Data Favela /Instituto Locomotiva.

O estudo apontou que 75% das empreendedoras desses locais são negras, como Damares. Ela recorda das muitas dificuldades que já enfrentou e considera que mais dura foi a “falta de dinheiro para comprar comida para os filhos”. Damares superou as barreiras aprendendo um ofício ligado à própria valorização da cultura negra: o trabalho como trancista, fazendo penteados e alongamentos, que destacam a beleza de cabelos crespos e valorizam a cultura afro, contribuindo para a conscientização contra o preconceito e o racismo.

O setor de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos alcançou a ocupação de 5,6 milhões de postos de trabalho no Brasil em 2022. A informação é da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), que aponta os salões de  beleza  como  o carro-chefe da geração de empregos no segmento, com um crescimento de 11,3% dá oportunidades geradas em 2022 em relação a 2021.

Hoje, dona de um bem montado salão em Montes Claros, no Norte de Minas, Fabiana Cardoso Dias, de 33 anos, é uma das   integrantes do exército da beleza. Mas, além de ser destaque no empreendedorismo feminino, ela tem outra marca: a superação.

“O salão mudou minha vida”, diz a empresária, que durante uma fase da adolescência, trabalhava como empregada doméstica durante o dia e estudava à noite. Atualmente, emprega 12 pessoas, número que vai aumentar para 18 em breve, quando vai inaugurar a sede própria do seu estabelecimento.


Além das conquistas como empreendedora, ela manifesta outra satisfação: “sou mulher preta de corpo e alma”. “Cada uma tem que usar o melhor de si. Precisa usar a criatividade e inovar sempre. Somente assim conseguimos a mudança”, afirma.

Fabiana nasceu em Brasília de Minas (Norte Minas), sendo a primeira filha de  Maria Benilde Dias,  foi mãe solteira. Ainda nos primeiros meses de vida, foi morar em uma fazenda, na comunidade de Sucuiú, na zona rural do município, onde Maria Benilde (que é filha de um carvoeiro) trabalhava como empregada doméstica para os donos da propriedade.

Aos 4 anos, junto com a mãe, ela mudou-se para Água Boa, distrito de Claro dos Poções, município carente da região, onde passou a infância e enfrentou uma vida de sofrimento.

Aos 9 anos, cuidava dos três menores (7,5 e 3 anos, na ocasião). Pois, a mãe, que dava duro como cozinheira em um restaurante, saía de casa às 5 da manhã e só volta às 10 horas da noite.  Por outro lado, o padrasto dela, Reinaldo Ferreira ganhava a vida como lavrador em fazendas da região e “visitava” a família a cada 15 dias.

"Um dos momentos mais difíceis foi quando meu padrasto sofreu um acidente na perda com motosserra e ficou uns seis meses sem poder trabalhar.  A gente ficou até comprar alimentos mesmo”, recorda Fabiana, lembrando que o salário da mãe dela como cozinheira era insuficiente para cobrir as despesas.  

“A gente só comia carne no domingo”, completa, lembrando que a família também recebia doações de roupas. Ela relata que, aos 12 anos, já cuidava do cabelo das colegas – “fazia aquelas coisinhas como tranças e tererê”.

Aos 17 anos, transferiu-se para Montes Claros (65 quilômetros de Água Boa), onde, para se sustentar, começou a trabalhar em casa de família durante o dia, ao mesmo tempo que estudava  à noite.  A hoje empresária relembra que “chorava todos os dias” por ficar longe da família,   mas resistia em retornar para a casa da mãe “porque eu queria uma coisa   melhor para minha vida no futuro”.

Após concluir o curso de estética, se matriculou em um curso de cabeleireira. Com a capacitação, deixou o serviço doméstico e passou a atuar como auxiliar de cabeleireira em um salão de beleza, morando em uma república, com um amigo.

Depois de sete anos como empregada, a  cabeleireira decidiu montar o seu próprio salão, em 2016. Hoje, o “Estúdio Fabiana Dias”, situado no Bairro Todos Santos (área de classe média/alta), oferece uma infinidade de serviços na área da beleza feminina, incluindo estética, depilação, além de coloração, descoloração, alisamento,  tranças,  diferentes tipos de corte de cabelo e outros procedimentos.

A empreendedora revela que, para divulgação de sua atividade, recorre muito às redes sociais, o que acha que contribuiu o seu crescimento, que, em breve, será incrementado com com a inauguração da sua sede própria (erguida no Bairro Augusta Mora, região sul da cidade), que já tem data marcada: 10 de julho.

No “novo salão”, adianta, ela vai aumentar de 12 para 18 empregos, ampliando também os serviços oferecidos.  Fabiana participa do grupo Central de Empresários da Beleza do Norte de Minas (CEB), voltado para cultura da cooperação e capacitação dos empreendedores do setor. “Eu sempre gosto de aprender algo a mais sobre gestão”, diz.

A dona de salão sofre de compulsão alimentar, uma consequência do que enfrentou no passado “Hoje, o que me faltou no passado, quero comer em dobro, com “medo” de faltar alguma coisa”, conta. Por causa do problema faz terapia, com tratamento de reeducação alimentar.

Retirando essa sequela, ela afirma que tenta se espelhar nas experiências vividas para tentar a superação de novos desafios. “Mesmo tendo enfrentado dificuldades, a pessoa não se pode se sentir apenas como coitadinha. Penso que tudo que passei tem que servir como aprendizado. Se eu ficar remoendo algumas coisas eu só vou gastar energia enquanto poderia está fazendo novos planos” comenta.

A empreendedora ressalta que   valoriza a sua negritude, estando engajada na luta contra a discriminação e contra o racismo. “Me sinto uma mulher preta de corpo e alma. Quero participar de projetos voltados para a aceitação da mulher negra na sociedade. Sempre, incentivo as mulheres a saber cuidar do cabelo crespo, valorizando a identidade afro”, sustenta.

Fabiana dá uma dica para outras mulheres que sonham com a independência a partir do negócio próprio. “Cada uma tem que usar o melhor de si. Precisa usar a criatividade e inovar sempre. Somente assim que conseguimos a mudança.

O negócio de Damares ainda é mais tímido, mas ela conta que sua vida de “sem nada” começou a mudar há seis anos, quando começou fazer os penteados trançados que aprendeu pela internet. “No início, fiz tranças em meu próprio cabelo e não ficou lá essas coisas. Depois, aprimorei bastante e hoje sou uma boa trancista”, garante Damares, que hoje domina vários modelos de tranças, como nagô, box braid (boxeadora) e twist.

Ela considera, entretanto, que seu maior feito foi conseguir, com a profissão, garantir renda para alimentar seus seis filhos, que cria sozinha. O mais velho é Jeferson, de 14 anos, e o caçula, Flávio Gael, de apenas 8 meses. “Hoje, posso alimentar os meus filhos. Não falta nada”, comemora a mulher, lembrando que já viveu situação bem mais complicada. “Antes faltava dinheiro para comprar comida e outras coisas, como pagar contas de água e luz. Eu também não tinha como dar conforto a meus filhos. Não tinha condições de ir a uma lanchonete e muito menos a uma pizzaria.”

Damares se diz apaixonada pelo que faz. “Para quem antes não sabia fazer nada, ter uma profissão hoje é motivo de muito orgulho”. Ela manifesta o mesmo sentimento em relação à cor de sua pele. “Tenho muito orgulho de ser negra. Ainda existe muito preconceito, mas estamos vencendo isso”,considera.
A pequena empreendedora assegura que também se sente empoderada por proporcionar alimentar a autoestima de outras mulheres, especialmente as moradoras da comunidade onde vive e labuta. “Às vezes, a pessoa entra aqui cabisbaixa e sai com um sorriso no rosto e o brilho nos olhos. Isso pra mim é incrível.”

Violência de perto

O Aglomerado Cidade Cristo Rei já viveu um período de muita violência e mortes relacionadas à disputa pelo tráfico de drogas. O período sombrio é relembrado por Damares. “Já presenciei muita violência. A gente tinha muita apreensão, com medo de sair de casa por causa do risco de balas perdidas”,  conta. “Mas, hoje está tudo tranquilo”, assegura. O clima de paz citado por ela foi confirmado pela reportagem do Estado de Minas, que, por várias vezes, circulou pela comunidade sem problemas, acompanhando o ir e vir de adultos e crianças em suas ruas estreitas.

Após ter superado as barreiras impostas pela pobreza e o preconceito, Damares Aparecida Pinto dá dicas para que outras mulheres encarem as agruras e vençam os desafios, gerando a própria renda. “Acho que todo mundo pode romper as barreiras e melhorar de vida. Para isso, basta ter foco, determinação e fé”, recomenda.

Movidas pelo desafio da subsistência

 
A maioria das mulheres empreendedoras das áreas carentes transformou o próprio negócio numa garantia de subsistência. Elas também foram “incentivadas” pelas dificuldades impostas pela pandemia do coronavírus.

“A maioria dessas mulheres começou a empreender por necessidade. Não porque elas viram uma oportunidade, mas sim porque o empreendedorismo foi uma forma de garantir a subsistência de sua família. Durante a pandemia, muitas delas ainda se viram desafiadas a trabalhar e cuidar dos filhos em tempo integral, já que as creches estavam fechadas”, afirma Patrícia Delgado, analista do Sebrae Minas, ao avaliar os resultados da “Empreendedorismo nas Favelas de Minas Gerais”. “A pesquisa mostra justamente essa realidade: pelo menos um quarto das empreendedoras realizam as atividades do seu negócio em casa”, completa.

A especialista salienta que as empreendedoras de áreas de baixa renda têm como desafio manter o negócio e elevar a autoestima. “Gerir um negócio, ser seu próprio chefe, estar no controle dos seus ganhos são iniciativas que já trazem um aumento da autoestima para qualquer pessoa. Estar preparado para assumir esses desafios é fundamental para o sucesso do empreendimento”, destaca. Ela lembra que o Sebrae tem um programa que incentiva e apoia o empreendedorismo feminino: o Sebrae Delas.

Patrícia Delgado salienta ainda que as empreendedoras das áreas mais vulneráveis devem se preparar para investir em qualquer atividade. Não existe um indicativo de atividades mais propícias às mulheres. “De um modo geral, podemos dizer que quando se está preparado, é possível ter sucesso em qualquer empreendimento.

Porém, a maioria das mulheres empreende em alguma atividade em que já tem conhecimento e experiência”, relata. De acordo com a última pesquisa do próprio Sebrae, baseada em dados do IBGE, de 2022, o Brasil atingiu a marca de 10,3 milhões de mulheres donas de negócios, representando 34% dos empreendedores no país.

A analista do Sebrae destaca que o fato de Minas Gerais ter 3% dos seus domicílios (231 mil) em favelas também mostra a relevância do empreendedorismo nessas áreas. “Muitos dos que vivem nessas localidades são empreendedores ou potenciais empreendedores, que almejam o crescimento de seus negócios e o desenvolvimento local”, afirma. Ela lembra que o Sebrae Minas desenvolveu o programa Comunidade Empreendedora, que tem como objetivo capacitar pessoas de lugares em situação de vulnerabilidade.