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Estado de Minas DURA REALIDADE

Brasileiros voltam aos tempos das trevas e se viram como podem

Carestia muda drasticamente a vida das famílias de baixa renda no Brasil. Fila por ossos, roubo de comida e acidente com fogão à lenha são cenas comuns


17/10/2021 08:00

família de baixa renda
Antonia Ladyjane não mede esforços para alimentar a família, já que o marido está desempregado (foto: Fernanda Fernandes/CB/D.A Press)


A inflação crescente e sem freio atingiu em cheio os mais pobres, e os retrocessos sociais estão mais evidentes. Em vez do gás de cozinha, fogão a lenha. No lugar da carne no prato, ossos que antes iam para os cachorros, e pé de galinha, quando o dinheiro dá para comprar. A energia elétrica foi substituída por velas e lamparinas. Já o carro e o ônibus foram trocados pela bicicleta reformada ou mesmo por longas caminhadas. Essa é a realidade sombria de muitos brasileiros. Nem a ajuda do governo, quando vem, dá um alívio às famílias.

É o caso da moradora do Paranoá (DF) Antonia Ladyjane Silva, de 34 anos, que tem sentido o peso da alta inflação no básico do dia a dia. Monitora educacional voluntária, recebe apenas o auxílio diário para passagem e lanche de R$ 30, valor que ela economiza indo e voltando a pé da escola onde trabalha e levando comida de casa. No fim do mês, acumula cerca de R$ 600 e, com uma ajuda que recebe de uma organização não governamental (ONG), vem garantido o sustento da família, composta por ela, dois filhos menores de idade e o marido, atualmente desempregado.

“Vai tudo embora nas contas. A água está vindo R$ 220 por mês, porque eu tive que renegociar uma dívida que estava acumulada. Na luz, estamos pagando quase R$ 100 apenas com uma TV e uma geladeira. Os alimentos, nem se fala: leite, arroz, óleo, feijão, até o flocão (flocos de milho), que era R$ 0,99, foi para R$ 2,50. Tudo está caro”, detalha Antonia Ladyjane, que assim como outro 1,2 milhão de pessoas, aguarda para participar do Bolsa-Família.

O último dado do Indicador de Inflação por Faixa de Renda do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), referente a setembro, revelou que a inflação continua mais acentuada para as famílias de renda muito baixa, 1,30%, comparativamente à apurada no grupo de renda mais elevada, de 1,09%. Essa taxa está abaixo da inflação oficial de setembro medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que subiu 1,16% em relação a agosto. O indicador acumula alta de 10,25% em 12 meses, e analistas reconhecem que o custo de vida não deve cair facilmente, porque a inflação está muito disseminada na economia, atingindo a maioria dos itens de consumo da população.

Antonia, que sonha em ser pedagoga um dia, se emociona ao falar dos filhos e do que gostaria de oferecer a eles. “As contas não deixam a gente pensar nos estudos ou no lazer. Tem hora que eu penso que é difícil você se manter e ser feliz ao mesmo tempo. Eu queria ter dinheiro para o meu filho fazer um curso, para comprar um sofá novo. Ter dinheiro para levar meus filhos ao cinema e para comer uma pizza. Isso é o que mais dói, mas eu não sou de reclamar”, desabafa.

A assistente social Lara Montenegro tem acompanhado de perto o desespero de famílias como a da monitora Antonia Ladyjane. Coordenadora da Rede Solidária Entre Nós, que ajuda famílias com doação de cestas básicas e a mapear os lares mais carentes para recebimento de assistência social do governo, a especialista afirma que, somente na capital federal, mais de 170 mil pessoas aguardam para ser atendidas no Centro de Referência de Assistência Social (Cras), número recorde.

“É feito o encaminhamento para inclusão em programas e para solicitação de benefícios socioassistenciais. Em alguns casos, isso significa até um ano de espera, mesmo em um contexto de emergência sanitária e de extremo risco social para milhares de famílias, que não podem esperar porque a comida está faltando no prato hoje. A equipe da rede socioassistencial do DF se encontra absolutamente insuficiente e sobrecarregada”, desabafa a assistente, que atua junto aos Cras do Paranoá, Itapoã e Estrutural, regiões carentes do DF.

Fátima prefere dizer apenas o primeiro nome e não tirar fotos. Tem medo de que isso possa prejudicar sua situação junto ao Cadastro Único, para recebimento do auxílio assistencial. Ela é uma das 177 mil pessoas na fila de espera por atendimento em um dos Cras da capital. A moradora do DF fala sobre as dificuldades que tem enfrentado ao lado dos dois filhos menores de idade e do marido, desempregado como ela. “Além de ser desgastante, fico ansiosa todo dia por uma ligação que pode nunca chegar, isso é muito dolorido”, diz, sobre a espera por resposta à solicitação feita em abril deste ano junto ao governo. Até que o cadastro seja aceito, ela conta que a família tem feito de tudo para que não falte o básico em casa, além de contar com a ajuda de terceiros. “A carne agora não é para todo dia. Ultimamente, estamos consumindo bastante ovo, que também não está barato, mas é melhor comprar uma cartela de ovo do que um quilo de carne”, relata junto ao filho mais novo, Enzo, de 9 anos, diagnosticado com espectro de autismo.

De acordo com dados do IBGE, a carne vermelha já acumula alta de 30,7% em 12 meses. A série histórica da Companhia Nacional de Alimentos (Conab) aponta que o consumo da carne vermelha ainda deve recuar 14% neste ano, atingindo o menor nível de consumo da proteína desde o início do levantamento, em 1996.

Além da carne, Fátima conta que também economiza na água para a conta fechar no fim do mês. “Aqui em casa, eu tenho um galão que quando eu lavo roupa pego a água para usar no vaso, e mesmo assim a conta não diminui”, afirma. A economia também está presente na hora do banho. “Quando a gente vai tomar banho, o banheiro tem um balde e uma panela grande. Tomamos banho dentro para poupar água e usar ela de novo depois”, desabafa.

A escassez de itens básicos para as famílias tem tornado comuns cenas devastadoras que chocaram o país, como a de uma fila gigantesca para receber doação de ossos em um açougue em Cuiabá (MT). Na cidade de Anápolis (GO), uma família se queimou, recentemente, ao tentar acender um fogão a lenha com álcool, por falta de gás. Outro caso emblemático foi o da mãe de cinco filhos presa por furtar, na última semana, dois pacotes de macarrão instantâneo, um refrigerante e um sachê de suco em pó em um supermercado na Zona Sul de São Paulo. “Roubei porque estava com fome”, argumentou, ao ser detida.

“O Estado não cumpre o seu papel em garantir condições dignas de sobrevivência a todos os cidadãos brasileiros. Mas não tem trabalho de sociedade civil que dê conta de fazer o que é papel do Estado. Há mais de 120 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, e somente programas de distribuição de renda em grande escala darão conta de responder às necessidades básicas dessa enorme parcela da população”, avalia a assistente Lara Montenegro.

O professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) Célio Bermann concorda que há incapacidade do governo em gerir questões como, por exemplo, a da escassez hídrica. “A gente nota uma incapacidade de (o governo) lidar de forma adequada e técnica na questão da escassez hídrica e do aumento tarifário, tentando atenuar as consequências dessa escassez com restrição do consumo de energia, como se a única responsabilidade fosse do consumidor”, critica.

Segundo Bermann, a questão da energia elétrica no país é social. “Quando você vê a população de baixa renda buscando alternativas como uso de álcool e fogão a lenha, nota a desigualdade de renda vexatória no país”,  argumenta.

*Estagiário sob a supervisão de Rosana Hessel

Braços no combate à miséria

Diante da crise, grupos e organizações não governamentais (ONGs) continuam tentando fazer a diferença na missão que, segundo os especialistas, deveria ser do Estado, especialmente com a pandemia da COVID-19 no país. Um desses grupos que vai aonde o governo federal não toma conhecimento é a Pastoral do Povo da Rua, em São Paulo, referência no combate à pobreza e à fome na maior cidade do Brasil, coordenada pelo padre Júlio Lancellotti. Aos 72 anos, faça chuva ou faça sol, todos os dias Lancellotti distribui alimentos e máscaras para centenas de pessoas em situação de rua, geralmente no Centro São Martinho, no Bairro da Mooca, na Zona Leste de São Paulo.

Com jaleco branco e máscara de respiração com filtro embutido, o padre, que virou referência de caridade por meio das redes sociais, fala sobre o momento difícil que os mais pobres enfrentam e descreve o sentimento “agridoce” que experimenta em sua rotina diária de ajuda aos necessitados. “Tem um momento de dureza muito grande de ver a agudeza da fome e o aumento da necessidade. E também tem o momento de relacionamento com as pessoas e de descobrir junto com eles os caminhos que podemos construir”, diz o padre, que mantém a esperança de que esse cenário mudará.

De acordo com estudo feito pelo economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), apenas três estados (Acre, Pará e Tocantins) não registraram aumento da pobreza na pandemia, entre novembro de 2019 e janeiro de 2021. Em São Paulo, onde o padre Lancellotti atua, a população pobre chegou a 19,7%, alta de 5,9 pontos percentuais em relação aos 13,8% no fim de 2019. Lancellotti acredita que vai levar tempo para o Brasil reverter a situação calamitosa que vive. 


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