
Brasília - A economista Monica de Bolle se tornou uma das referências no debate econômico brasileiro, mesmo morando nos Estados Unidos há quatro anos. De Washington, ela avalia que a maioria dos eleitores votou em Jair Bolsonaro (PSL) com um sentimento de indignação e revolta contra a corrupção e a violência que estavam muito personalizadas no PT. “Elegemos o que muitos viram como a antítese ao PT. O problema dos opostos é que nem sempre eles são a solução. Ir de um extremo ao outro no espectro das escolhas políticas parece trazer mais danos do que benefícios”, afirma a diretora do Programa de Estudos Latino-Americanos e Mercados Emergentes da Johns Hopkins University, onde detém a cátedra em ciências sociais de Riordan Roett. Na visão dela, que declarou voto no petista Fernando Haddad, mas foi uma crítica ferrenha ao governo de Dilma Rousseff, a esquerda derrotada está desarticulada e precisará se modernizar para recuperar o espaço político perdido. “Diante da grave crise fiscal que temos, ajustes são urgentes. Contudo, esses ajustes são impopulares, pois retiram fôlego da economia em um primeiro momento”, afirma.
Como a senhora avalia os resultados das eleições no Brasil? O que se pode esperar do governo de Jair Bolsonaro?
As eleições acabaram sendo, como imaginava há um ano, uma espécie de referendo sobre o petismo e o antipetismo. Digo “espécie”, porque há muito ainda para dissecar nessas eleições: qual realmente foi o impacto da mensagem lei e ordem de Bolsonaro, se no Nordeste, região onde mais aumentou a violência, ele perdeu? Qual o papel da bancada evangélica no apoio à sua candidatura e, mais recentemente, na influência sobre suas políticas, visto que a Frente Parlamentar Evangélica apresentou um programa completo para Bolsonaro, incluindo uma agenda econômica detalhada (o manifesto intitulado “O Brasil para os brasileiros”, de 24 de outubro)? Pela primeira vez, vi a bancada evangélica abraçar temas da agenda econômica, indo, portanto, além dos costumes e valores da família. Com base nisso, acho que ainda temos de esperar para dizer algo de concreto sobre o governo Bolsonaro. Mas, os primeiros indícios são de que veremos um retrocesso nos direitos conquistados por segmentos importantes da população. E, se isso de fato ocorrer, haverá muita turbulência. Afinal, os votos em Haddad somados aos brancos e nulos quase se igualaram aos votos em Bolsonaro.
A senhora acredita que um governo liberal, como vem pregando Bolsonaro, será capaz de tirar o país do atoleiro?
A tarefa será duríssima. Bolsonaro nada disse sobre a agenda econômica durante a campanha. Seu eleitorado está claramente dividido em temas como a reforma da Previdência, o ajuste fiscal, a agenda de privatizações, e unido em temas como violência, segurança pública e corrupção. Minha expectativa é de que Bolsonaro iniciará o governo tomando essas pautas como prioritárias para ganhar capital político, deixando a pauta econômica para depois. Não à toa, membros de seu círculo íntimo têm falado em não retomar a reforma da Previdência de Temer, mas elaborar uma nova proposta. Isso levará tempo, um tempo precioso, que não sei se o Brasil tem. Caso não tenha, veremos alguma turbulência e abalos na economia. Diante da grave crise fiscal que temos em todos os níveis, ajustes são urgentes. Contudo, esses ajustes são impopulares, pois retiram fôlego da economia em um primeiro momento. Não estou convencida de que Bolsonaro topará esse risco de imediato.
Do que foi apresentado até aqui, é possível dar um voto de confiança ao governo Bolsonaro?
Eu não dou voto de confiança, nem de desconfiança. É preciso esperar para saber quem ocupará todos os superministérios. Tenho algum desconforto com essa ideia de superministérios e superpoderes, pois, uma vez alterados, estarão lá para ser ocupados pelos inicialmente indicados e quaisquer outros que venham depois.
Na sua avaliação, em que direção deve seguir o governo Bolsonaro para recolocar o Brasil na rota do crescimento?
Minha visão é tão distinta da até agora apresentada por membros do governo Bolsonaro que nem sei por onde começar. Temo que a ultraortodoxia pregada por Paulo Guedes destrua o parco Estado de bem-estar social que temos, deixando os mais vulneráveis a ver navios. Não acredito em superpoderes dos mercados, nem em intervencionismo estatal. Um país tão desigual como o Brasil precisa manter suas redes de proteção e seus programas sociais. Precisa ter políticas que garantam direitos às minorias. Precisa ter uma visão sobre a redução das desigualdades que seja compatível com a prudência fiscal. Precisa ter um sistema educacional que funcione. Não precisa, de modo algum, da proposta Escola sem Partido, que se finge não ideológica quando, na verdade, assegura a morte do pensamento crítico e a possível militarização das escolas. Qualquer sugestão que eu pudesse dar à equipe de Bolsonaro é tão diametralmente oposta a muitas de suas visões que pouco importa qual eu acredite ser o caminho para reduzir o emprego e aumentar a renda sem retirar direitos e redes de proteção. O que posso dizer, estando fora do país, é que os caminhos traçados pela equipe de Bolsonaro para a economia — especialmente a ultraortodoxia — são considerados ultrapassados no debate internacional.
É possível classificar o governo de Jair Bolsonaro como de extrema- direita? Por quê?
Não há qualquer dúvida quanto a isso. As definições de esquerda e direita, hoje, passam por questões identitárias e de costumes, mais do que por agendas econômicas. A centro-esquerda moderna há muito fez as pazes com a boa gestão econômica: a necessidade de voltar às políticas macroeconômicas para a estabilidade dos preços e para a sustentabilidade fiscal, sem perder de vista questões distributivas. A esquerda brasileira ainda não entendeu bem isso. Ainda se molda por um discurso de intervencionismo estatal que faliu várias vezes — a última durante o governo Dilma. Agora, ela terá de se modernizar e de se reinventar para conquistar espaços políticos. Creio que os brasileiros votaram em Bolsonaro com um sentimento de indignação e revolta contra a corrupção e a violência. A imagem da corrupção ficou colada na esquerda devido ao papel de protagonismo do PT.
A senhora vislumbra a possibilidade de supressão de direitos no Brasil, de retrocessos na área social e ambiental?
De retrocessos na área social, sem dúvida alguma. Estão aí propostas de revogar a legislação que permite casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Na área ambiental, vejo menos problema. O nosso poderoso agronegócio, ao contrário da indústria de transformação, é primordialmente exportador. Esses empresários sabem que os mercados externos se fechariam rapidamente caso houvesse afrouxamento das leis de proteção ambiental e das regulações. Por esse motivo, os vejo como um contrapeso a qualquer iniciativa que tente atropelar o meio ambiente. Sinal disso foi a desistência de fundir os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, além da desistência de sair do Acordo de Paris.
Existe algum risco de Bolsonaro seguir numa direção totalmente diferente da que ele indicou durante a campanha?
Ele detalhou tão pouco ou quase nada de suas propostas que risco de estelionato eleitoral não há. O que há é o risco de decepção e frustração. Afinal, muita gente depositou nele esperanças quase inalcançáveis, como a redução da criminalidade e da violência da noite para o dia. Essas são questões muito complexas, que exigem um entendimento repleto de nuances. E Bolsonaro não é um homem de nuances.
O Brasil tem futuro? Ou o país está condenado a surtos de euforia seguidos por mergulhos em decepções?
Todo país tem futuro. Contudo, temos de entender o que estamos a fazer de nós mesmos, assim como temos de compreender nosso entorno. Surtos de euforia e decepção são a marca latino-americana em maior ou menor grau. Veja a Argentina. O que me parece é que para nos livrarmos do legado deixado pelo PT — e por seu parceiro de anos, o MDB, assim como pelo PSDB, que se omitiu em momentos importantes, conspirou em outros, e pouco fez para atender àqueles que não viam em Bolsonaro ou no PT uma esperança para o país —, elegemos o que muitos viram como a antítese ao PT.
