Tudo ali tinha ar de recomeço naquela manhã de domingo. Caras novas. Ingredientes inéditos. Palavras que pela primeira vez emergiam. Mas não era difícil constatar o que movia aquela gente: paixão. Cada um ao seu modo, a maioria declarava como hobby a conexão ao mundo cervejeiro. Mas havia quem planejasse literalmente uma guinada. Então, duas respostas concentraram a atenção após a pergunta simples, ainda que cheia de significados:
– Por que, afinal, estão aqui?
Depois de boa parte falar da sincera e dedicada entrega à produção nas panelinhas caseiras, a garota ruiva meio que desconcertou o grupo.
– Vim pra mudar minha vida.
Uauuuu!! Falou de um jeito tão espontâneo, que todos os rostos se voltaram a ela. Alguns atônitos. Outros, incrédulos. Uma das coordenadoras quebrou o gelo.
– Mas como exatamente? Conta pra gente.
Ela não titubeou
– Quero produzir cervejas mágicas, que encantem o mundo.
Fez-se silêncio. Um aluno brincou:
– Mas só isso?
Ana não teria mais que 18 anos. Determinada desde sempre. Aos 12, sonhava ser arquiteta para trabalhar com projetos solidários em comunidades carentes. E não se desviou. A atmosfera de surpresa ainda pairava por lá, quando foi a vez de outro candidato a cervejeiro deixar a turma sem chão.
– Vim aqui em busca de uma história de amor.
Opsss!!! Como assim? A mestre esperou as gargalhadas cessarem.
– Agora fala sério.
– É isso mesmo. Quero uma namorada. E se der pra aprender um pouquinho sobre cerveja, beleza.
A galera sem levar a sério, uns julgando até heresia, a mestre intercedeu de novo.
– Tem certeza de que não errou o endereço?
A reação meio tosca, meio “me pega no colo”, acabou por descontrair o ambiente:
– Tenho não. Nunca tenho. Mas deixa eu contar um caso rapidinho?
Gente com a mão no queixo.
– Levei umas artesanais pra casa de uma amiga. Bebemos. Conversamos. Ela colocou as cartas de tarô...
Aí, o burburinho impediu que ele prosseguisse. E a coordenadora já suplicando:
– Bora, pessoal, concentrar no essencial.
Pareceu filme. Grupinhos se diluindo pro contato inaugural com o malte, a apresentação do lúpulo, as introduções preliminares sobre leveduras, quem fica lado a lado? E conferindo textura e composição naquela saca de grãos, eis que as mãos se cruzam, num roteiro quase novelesco. A ponto de sentirem o calor mútuo da pele. Ah, pele!! Estilo câmera lenta, olho no olho, sorrisos trocados. Cumplicidade.
– Prazer. Sou Beto. E já sei. Você é a garota da carta do tarô. Adivinhei?
Era um instante em que, em meio a tanta gente, rolava a sensação de terem se metido num mundo só deles, semicongelados. Um mirando o outro.
Foi a mestre cervejeira quem, bem-humorada, quebrou o encanto:
– Os pombinhos autorizam o recomeço da aula?
Um leve desconcerto, e logo mergulharam no universo em que reinavam enzimas, aminoácidos... Entre um e outro respiro, foram se descobrindo. Ela amava as Witbier. Ele, as Porter. Ela adorava o Caraça. Ele, Bonito. Ela se dobrava ao blues. Ele, ao samba raiz. Ela, caminhada. Ele, pedal.
Mas algumas verdades só vieram à tona alguns anos depois. Ela com suas cervejas mágicas e projetos de arquitetura a pleno vapor. Ele ricamente inventivo nas receitas. Véspera de Dia dos Namorados, entre um brinde e outro, ambos adoravam recontar sobre a manhã em que se conheceram. Até que Beto finalmente revelou:
– Sabe aquela história de estar ali no curso em busca de amor? Era charme. Só pra te atrair. Tinha certeza, desde o primeiro momento, de que era você.
Piegas? Jeito nenhum. Ela se deixou emocionar, tascou-lhe um beijo quente. Abriram mais uma artesanal.
– Ah, amor, viu aquela taça linda que eu trouxe de Londres? Tá sumida faz tempo.
Ela, recolhida como quem escondesse um segredo.
– Posso te contar um pequeno desastre?
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