Imagem da minissérie 'João sem Deus - a queda de Abadiânia', com Marco Nanini ao centro caracterizado como João de Deus

Marco Nanini dá vida à João de Deus na minissérie 'João sem Deus - a queda de Abadiânia'

Mariana Caldas/Divulgação

Apesar de inspirar o nome da minissérie de três capítulos, João de Deus não passa de um mero coadjuvante da história. São as irmãs Cecília (Karine Teles) e Carmem (Bianca Comparato) e a adolescente Ariane (Maria Clara Strambi) as verdadeiras protagonistas de ‘João sem Deus - a queda de Abadiânia’. Os episódios serão exibidos no Canal Brasil, a partir do próximo dia 13. A série, produzida pela Ventre Studio, também ficará disponível no Globoplay no mesmo dia. Mas o público pôde conferir a primeira parte da história na premiére, que aconteceu no Festival do Rio, nessa segunda-feira (9/10).
 
Cecília e Carmem buscam a cura para um tumor no cérebro da personagem de Karine em Abadiânia, no entorno do Distrito Federal, onde o médium atendia seus fiéis, acreditando nos poderes de João Teixeira de Faria, 17 anos antes da prisão do médium. Mas enquanto a irmã doente sai do Brasil, abalada com a violência que sofreu, Carmem se torna braço direito do religioso e acredita na sua inocência. 

Traumatizada, Cecília vê de Lisboa, em Portugal, as denúncias contra João de Deus pipocarem e resolve voltar ao Brasil para resgatar a irmã. Os conflitos do reencontro das duas ocupa a maior parte das cenas, enquanto a queda do médium é um plano de fundo para a história. 



Desde o princípio, a premissa era justamente focar nas mulheres e não na figura do criminoso, que tem uma pena que chega a 489 anos de prisão. “É uma série que conta a história de três mulheres que representam a maior parte dos casos e das relações que as mulheres, em geral, tinham (ou têm) com João de Deus; no sentido de fé, de depositar nele esperança, de ter não só fidelidade mas uma crença incondicional nele; de ter sido abusada e de só perceber que tinha sido abusada pelo contato com o relato de outras mulheres”, apontou a diretora Marina Person. 

Apesar de inspirada em fatos reais, a série é ficcional. O que, a princípio, deixou a diretora com um pé atrás. “Quando se trata de uma ficção que tem tantas coisas na realidade, que são fatos terríveis e que envolvem a violência contra a mulher, eu, como mulher, fico receosa de dar um passo em falso, ser injusta, posso ferir alguém, passou muita coisa pela minha cabeça. Em se tratando de João de Deus, não era uma figura que me causava uma curiosidade em especial, eu tinha sim uma aversão a aquilo tudo, era uma figura abjeta e nesse sentido foi difícil pra eu entender o que é que poderíamos fazer com esse material e me envolver de fato com o projeto”, revelou. 

Durante o processo de produção, a diretora visitou Abadiânia na tentativa de tentar entender o que levava tantos fiéis ao local. “É um lugar de muita fé, apesar da figura dele que é complexa, para dizer o mínimo. Tem muita coisa ali que cheira a charlatanismo mas também tem muita energia. É inegável que tem um impacto em quem passa por ali. O que eu nunca tive foi a pretensão de discutir se João de Deus tem ou teve de fato o poder de curar pessoas”, afirmou.

Para dialogar com mulheres

Para a construção das personagens, a roteirista Patrícia Curso conta que fez um mergulho nas denúncias das mais de 300 vítimas do médium, mas que preferiu não fazer nenhum tipo de entrevista em profundidade, para que Carmem, Cecília e Ariane não fossem inspiradas em um caso específico. “A gente sabe que foram mais de 300 mulheres, então achamos que a ficção seria uma forma de abrir mais e comunicar para mais mulheres do que escolher uma única história”, contou. 

Além do estudo a partir dos depoimentos das vítimas e dos documentários que já foram feitos sobre o caso,  o projeto também possui o acompanhamento da Bem Querer Mulher, organização de acolhimento integral a mulheres que sofrem violência, para a leitura sensível dos roteiros e apoio presencial no set durante as filmagens das cenas mais delicadas.

Desde a concepção da minissérie, a ideia era trazer as mulheres para o papel principal e deixar de lado a ideia de que o criminoso ocupa lugar central, contrariando diversas produções do gênero "true crime" que conquistaram o público nos últimos anos. “Isso para mim era quase uma condição. Eu não queria que o protagonista criminoso tivesse um fetiche ao redor dele e ele se tornasse a pessoa mais interessante da série. Isso nos guiou desde o começo”, apontou a roteirista.

Vítima de abuso sexual, Corso acredita que a série é potente e vai dialogar diretamente com mulheres que passaram por situações parecidas. “Começar a ouvir essas histórias fez parte do meu processo de cura. Se a gente conseguir tocar uma mulher que seja, uma pessoa, que passou por isso, a gente cumpriu nosso papel. Porque saber que essas coisas acontecem, mostrar a solidão, isso aproxima. Acho que quem viveu se sente acolhido e talvez tenha coragem de contar essa história e saber que foi uma vítima”, deseja.

Para dialogar diretamente com mulheres que passaram por violências do tipo, Patrícia conta que explorou maneiras diferentes de reações de vítimas. “Não é todo mundo que é abusado que tem a mesma percepção, não dá para exigir de todo mundo o mesmo comportamento. Cada um tem um processo e a gente procurou respeitar isso na dramaturgia também”, revelou. 

A irmã ferida

Quando Cecília chega a Abadiânia, ela tinha apenas 80% da visão. Ela via na figura de João de Deus uma esperança de cura. Mas, após ser abusada, já na primeira visita, ela entende que foi abusada.

A atriz Karine Teles afirmou que se colocar como uma mulher que sofreu um abuso sexual, mesmo que sendo somente ficção, já é um momento difícil, mas que ela viu na série uma forma de trazer à luz o sofrimento de tantar pessoas. “Infelizmente ainda é tabu. As mulheres ainda têm dificuldade de denunciar seus abusadores, seus algozes porque a sociedade ainda tende a culpabilizar as mulheres. Eu acho que esse é um dos motivos do porque a gente ainda precisa falar muito sobre esse assunto. Infelizmente é uma coisa que acontece todo dia, o tempo inteiro, no Brasil e no mundo ”, destacou.

No ar como a cientista Carol, na novela ‘Elas por elas’, da TV Globo, Karine apontou que sempre busca trazer o empoderamento feminino para seus trabalhos. “É um assunto que me interessa. Sempre que estiver falando de sororidade, de diversidade, sempre que eu puder e eu achar que vale a pena, eu vou estar envolvida. São as discussões que me interessam na minha vida”, resumiu. 

A atriz ainda destacou a diferença na construção de Cecília e de Carol: “‘Elas por elas’ tem essa delícia de ter um tom leve, de comédia, é uma delícia poder exercer isso no audiovisual. São desafios muito diferentes. A comédia é um exercício de precisão, eu acho muito difícil”, revelou. 

A irmã fiel 

Enquanto Cecília entende de cara a violência sofrida, Carmem desenvolve uma devoção pelo religioso e passa a fazer parte do esquadrão de confiança do médium, comandando as sessões. Mas, ao longo da história, ela passa a acreditar na versão das vítimas. 

A atriz Bianca Comparato apontou que, por mais que o caso João de Deus seja muito emblemático, o abuso e o estupro se tornaram naturalizados no cotidiano das mulheres. “Você liga a rádio, liga a TV e tem um caso novo. É uma epidemia mesmo. Acho importante uma série como essa que denuncia os abusos. Espero que inspire muitas mulheres e dê força para mais denúncias, deseja. 

A artista revelou que a personagem fez com que ela diferenciasse religião e fé. “A religião está dentro de instituições humanas que, muitas vezes, cometem crimes, que são muito falhas. Pode pensar em várias religiões que passam por isso. E tem a fé, que é uma coisa individual de cada um, e que eu respeito muito. Todo mundo tem direito a ter fé e acreditar e é tão bonito esse sentimento. Acho que a Carmem fica muito dividida entre a fé dela e a esse médium, que ela era devota. Claro que isso abala a fé dela, mas ela tenta se manter firme para manter isso nela”, pontuou. 

A filha em busca da verdade

Fazendo sua estreia na TV, a atriz Maria Clara Strambi vive a adolescente Ariane, que cresceu dentro de Abadiânia e tem João de Deus como um tio. Ao se deparar com as denúncias, ela começa a se entender também como uma das vítimas. 

A mineira de 22 anos traz uma visão de uma mulher jovem que lida com o abuso em um momento crucial para seu entendimento enquanto ser humano. A atriz contou que a personagem teve um impacto direto na sua realidade. “Foi um processo que mexeu muito comigo. Foi um período da minha vida que eu tive que me desconectar de várias coisas para me conectar com a personagem. Acho que justamente por ser jovem, tem rede social, trabalho, eu estava terminando minha faculdade, eu acho que eu tive que entrar em uma conexão mais íntima comigo para dar conta desse trabalho e de estar ao lado de atores e atrizes tão incríveis”, apontou.

Por ser um assunto tão sério e estar passando por um momento conturbado fora das gravações, Maria Clara revelou que a terapia foi muito importante no seu processo. “Eu faço terapia há uns anos já e acho que, nesse momento da série, ela foi fundamental. Mais do que no durante, foi o depois. Porque a gente vive uma certa nostalgia daquilo e tem uma despedida da personagem, das pessoas, do set. É um processo muito intenso”, afirmou. 

O antagonista

João de Deus é vivido pelo ator Marco Nanini, que assumiu a tarefa de ser o antagonista coadjuvante. Ele contou que o personagem foi um desafio. “É um personagem diferente de todo mundo. Foi bastante impactante. É um personagem difícil, uma história difícil, um tema duro”, resumiu.

Nanini revelou que seu processo criativo passou por pensar em como representar o médium sem ser uma caricatura. “Não foi exatamente um grande desafio assim de medo, porque eu já sabia que eu não ia imitá-lo. Eu ia fazer uma postura que simbolizasse ele, mas não queria imitá-lo. É uma presença somente”, explicou.

Ele ainda apontou como a série conduz a discussão sem focar na imagem do médium. “Esse assunto é seríssimo, mas que ficou muito popular. Essa série é um documentário muito bem escrito. O foco são as duas protagonistas, que são as mulheres. Eu faço uma participação como o João de Deus. O roteiro vai por cima delas, do encontro delas com João de Deus. É um enredo interessante de fazer”, comentou.

Outro antagonista da história é Lindinho, vivido por Antônio Sabóia. Ele é do primeiro escalão da equipe de João de Deus, marido de Carmem e pai de Ariane. O ator revela que o enredo do personagem passa pelo amor pelo poder. 

“É um cara comum, que veio do nada e cresceu, como um dos braços direitos de um dos homens mais poderosos do Brasil. Automaticamente, ele herdou um pouco desse poder e, ao longo da série, ele tenta manter aquilo de pé de todas as formas possíveis, porque não quer perder seus privilégios. Tudo que ele conseguiu foi graças ao João de Deus. Ele construiu uma nova persona graças ao João de Deus e ele tenta preservar isso de todas as formas possíveis. É quase uma tragédia shakespeariana”, definiu.