Os atores Camilla Amado e Marco Nanini em 'As cadeiras'

Camilla Amado (1938-2021) filmou o texto com Marco Nanini quando já havia desistido do tratamento quimioterápico contra o câncer; "Foram momentos muito felizes, apesar da situação", diz ele

Cabera/divulgação

Isolado em uma ilha, um casal de nonagenários espera ansiosamente a chegada dos convidados a quem pretende, no momento certo, revelar sua mensagem. Esse é o cerne de “As cadeiras”, de Eugène Ionesco (1909-1994), mestre do teatro do absurdo. Alienação, isolamento, solidão, tédio e uma busca desesperada para entender a humanidade é o que emerge da condição e dos diálogos da dupla de personagens.

 

É, portanto, um texto que soa sincrônico com a experiência da pandemia, na qual a desorientação passou a dominar os prismas individuais e coletivos. Foi durante a crise sanitária, movidos por um desejo profundo de seguir fazendo teatro que os atores Marco Nanini e Camilla Amado e o diretor Fernando Libonati voltaram a essa obra. 

 

Voltaram é um verbo que se aplica a esse caso porque, em 2017, durante um ciclo de leituras organizado por Nanini e Libonati, Camilla sugeriu a montagem de “As cadeiras”, que marcaria seu reencontro com o ator em cena, após mais de quatro décadas. 

 

“Seria uma versão mais farsesca. O tempo passou, não conseguimos realizar, até que na pandemia me lembrei desse texto. Sugeri ao Nando, que gostou da ideia e organizou um processo para a gente filmar no estúdio”, conta Nanini.

Ensaios virtuais

Com a incerteza sobre quando seria possível reencontrar o público, ele, Camilla, Libonati e a equipe começaram a fazer leituras e ensaios virtuais em 2020 e, com o prolongamento da pandemia, resolveram que apresentariam a obra em dois formatos: ao vivo e gravada. Em janeiro de 2021, foram para o estúdio filmar a encenação, que foi precedida de todas as etapas relativas a uma montagem teatral.

 

“Tivemos um convívio muito gostoso com Camila, apesar de ela já estar doente, com o câncer em estágio avançado. Ela não queria mais a quimioterapia, mas filmou tudo com total disposição; foram momentos muito felizes, apesar da situação”, diz o ator.

 

“As cadeiras” coroa a amizade de Nanini e Camilla, que teve início nos anos 1970 e perdurou pelas cinco décadas seguintes. A primeira parceria profissional foi em “Encontro no bar” (1973), seguida pela montagem de “As desgraças de uma criança” (1974). Ao longo dos anos, a relação deles se consolidou para além dos palcos e, desde então, buscavam um texto para voltarem a encenar juntos.


'Temos ali esse casal, que está há 70 anos num farol, em uma ilha deserta, e que fica reinventando prazeres, brincadeiras, histórias, que vai criando mecanismos para seguir adiante, encontrar uma situação saborosa onde ela já não existe mais'

Fernando Libonati, diretor

Grande fracasso

O ator se recorda de seu primeiro contato com Camilla. “Ela estava em cartaz com 'Encontro no bar' no Teatro das Artes, contracenando com outros dois atores. Eu fui assistir e gostei muito. Um dos atores teve que deixar o elenco e eu me ofereci para ocupar o lugar dele. A peça foi um grande fracasso, mesmo assim a gente viajou por algumas cidades, e ela seguiu como um grande fracasso”, recorda.

 

Ele conta que surgiu, então, a ideia de se realizarem outra montagem. “Chamamos o Antônio Pedro para nos dirigir, ele subverteu todo o nosso sistema e acabou saindo 'As desgraças de uma criança', que fez um sucesso enorme, algo que não esperávamos. Só fizemos essas duas peças, e alimentamos durante todo esse tempo o desejo de voltarmos a atuar juntos”, conta.

 

Pouco depois das filmagens, Camilla Amado morreu, aos 82 anos. O filme “As cadeiras”, entendido também como “teatro na tela”, chega a Belo Horizonte nesta sexta-feira (25/8), em sessões (até domingo) comentadas por Nanini e Libonati, antes de sua exibição, no Teatro Feluma. 

 

Marco Nanini e Camila Amado, sentados à mesa, olham para a câmera

Marco Nanini e Camila Amado: parceria no palco e amizade de 50 anos

Cabera/divulgação

'Ficamos contentes por poder fazer na idade com que estávamos, dois velhos interpretando um casal nonagenário. Não precisamos forçar, não teve micagem; assumimos e percebemos outro lado do texto, que é o da poesia, o falar sobre a finitude de uma forma muito engraçada. Ficou gostoso jogar nessa área'

Marco Nanini, ator

 

 

“As cadeiras” marca a estreia na direção de Libonati, cuja carreira como produtor teatral engloba uma série de grandes êxitos à frente da produtora Pequena Central, fundada por ele e por Nanini praticamente desde que estão casados, há mais de 30 anos. Conhecido por ser um produtor muito ligado ao processo de criação, ele resolveu, pela primeira vez, assumir efetivamente uma função artística.

 

“O Nanini é uma pessoa que observa muito quem está em volta dele. Essa coisa de produção, foi ele quem me chamou para isso. De uns tempos para cá, começou a insinuar que eu deveria dirigir, e chegou esse momento. Eu tinha dirigido um prêmio de teatro aqui no Rio de Janeiro, o que me deu uma pequena experiência no audiovisual. Também pude acompanhar muito o trabalho desses profissionais, então cheguei nesse lugar com uma boa bagagem de observação”, diz Libonati.

 

Ele ressalta o trabalho dos atores com um componente importante para o êxito da empreitada. “Dirigir os dois é um luxo, você começa com 90% do trabalho resolvido. Fiquei muito feliz com o resultado. Já levamos o filme a Brasília, Recife e Fortaleza, em formatos de fim de semana, com sessões em grandes teatros, e a recepção tem sido muito boa”, destaca.

 

Fazer “teatro na tela”, como diz, foi a solução encontrada diante do prolongamento da pandemia. Ele pontua que “As cadeiras” foi originalmente pensada para ser apresentada no formato audiovisual, por meio das redes sociais, mas também no teatro. “A coisa foi caminhando e, com a doença da Camilla, vimos que não conseguiríamos chegar no ao vivo. Resolvemos levar para o estúdio”, conta.

 

Ele delimita onde essas duas linguagens – a teatral e a cinematográfica – se fazem mais presentes em “As cadeiras”. O que o filme traz das artes cênicas, conforme aponta, é o texto e a interpretação dos atores, com o tempo próprio do teatro. “Outra coisa é que no cinema você apela para as coisas concretas: uma mesa é uma mesa, uma janela é uma janela. Aqui não, com exceção das cadeiras, todo o resto está na imaginação dos espectadores. Mas contamos com todos os recursos do cinema, inclusive os efeitos de pós-produção”, diz.

 

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A partir do momento em que se decidiu filmar “As cadeiras”, o texto foi trabalhado pelo escritor e tradutor José Almino, que cuidou de torná-lo mais enxuto e adequado ao audiovisual. “A partir daí, trabalhamos como o processo teatral pede, com leituras de mesa, com preparação corporal e com dois meses de ensaios. Quando fomos filmar, resolvemos tudo em 10 dias. Tínhamos uma equipe maravilhosa, que também estava com muita vontade de voltar a trabalhar, com todo mundo tomando os cuidados necessários”, diz Libonati.

 

Ele se recorda que, quando atravessavam a cidade vazia rumo ao estúdio, o espelho entre a ficção e a realidade era inevitável. “Naquele momento de pandemia, estávamos filmando um texto que aborda essa questão do isolamento e da falta de comunicação”, observa. Quando fala em “equipe maravilhosa”, o diretor alude a uma ficha técnica que traz nomes como Gringo Cardia na concepção visual, Deborah Colker na direção de movimento, Júlio Parente cuidando de iluminação e efeitos, e Antonio Guedes assinando os figurinos.

Equipe especial

Alguns dos integrantes da equipe, como Gringo Cardia e Deborah Colker, são parceiros de longa data; já trabalharam com a Pequena Central em diversas produções teatrais. “Expliquei para eles a ideia, começamos a fazer reuniões virtuais e fomos desenvolvendo esse teatro na tela. Era um momento em que as pessoas estavam muito sensíveis a projetos como esse, isso me permitiu montar uma equipe muito refinada em termos de capacidade de trabalho e de entrega”, aponta o diretor.

 

Para Libonati, o que mais chama a atenção no texto de Ionesco é seu caráter reflexivo, com questões que, como diz, servem a todo mundo. “Temos ali esse casal, que está há 70 anos num farol, em uma ilha deserta, e que fica reinventando prazeres, brincadeiras, histórias, que vai criando mecanismos para seguir adiante, encontrar uma situação saborosa onde ela já não existe mais”, destaca.

 

Nanini, por sua vez, diz gostar muito tanto da dramaturgia quanto da tradução e do tratamento de José Almino para o texto. “Ficamos contentes por poder fazer na idade com que estávamos, dois velhos interpretando um casal nonagenário. Não precisamos forçar, não teve micagem; assumimos e percebemos outro lado do texto, que é o da poesia, o falar sobre a finitude de uma forma muito engraçada. Ficou gostoso jogar nessa área”, diz.

Noite de autógrafos

Ele aproveita a passagem por Belo Horizonte e a temporada no Teatro Feluma para uma noite de autógrafos, amanhã (26/8), no foyer do espaço, do livro “O avesso do bordado” – biografia do artista escrita por Mariana Filgueiras, que repassa seus quase 60 anos de carreira.

 

“Essa ideia partiu da Companhia das Letras, então a Mariana foi uma indicação do editor. Ela me entrevistou muitíssimas vezes, viu tudo o que eu tinha para mostrar e também conversou com várias outras pessoas, Carla Camurati, Marieta Severo, Luiz Cardoso, Denise Bandeira, Gerald Thomas. Aliás, meu próximo trabalho, a peça 'Traidor', vai ser com ele. Estamos conversando via internet, ele manda os textos e vamos trocando ideias. A ideia é estrear em São Paulo, no dia 16 de novembro”, adianta. 

 “AS CADEIRAS”

Lançamento do filme dirigido por Fernando Libonati, com Marco Nanini e Camilla Amado (1938-2021) no elenco, no Teatro Feluma (Alameda Ezequiel Dias, 275, 7º andar, Centro). Nesta sexta-feira (25/8) e sábado, às 20h, e domingo, às 17h. As sessões serão comentadas por Nanini e Libonati. No sábado (26/8), das 18h às 19h, sessão de autógrafos do livro "O avesso do bordado: uma biografia de Marco Nanini", no foyer do teatro. Classificação indicativa: 12 anos. Ingressos a R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia), à venda pelo Sympla