Pintura de Wallace Pato

A mostra "Dignidade como utopia" reúne trabalhos recentes do artista nascido em Ramos, como "Eu lamento pela falta dela... É alegria no curto tempo de brecha... Era mar em dois piscar de olhos..."

Leonardo Mitre/Divulgação

Na obra de Wallace Pato, a margem está no centro. O público poderá conferir esse deslocamento na exposição “Dignidade como utopia”, a primeira individual que o artista carioca, nascido e criado em Ramos, apresenta em Belo Horizonte, a partir desta sexta-feira (4/8), na Mitre Galeria. A mostra reúne oito quadros e uma pintura/instalação com cenas que antecipam uma existência digna para aqueles que viveram e vivem à margem no país.

São corpos negros em situações diversas – no trabalho, nas festividades, com crianças nas ruas, nas refeições e até nos funerais. Paisagens do Nordeste e do Rio de Janeiro se aproximam, promovendo uma junção do sertão com o mar, o que embasa o título com que a mostra foi batizada. Enquanto figura de linguagem, essa convergência de opostos parte do princípio de que a dignidade deixará de ser uma utopia.

“Minha investigação começa nas margens do país, até porque eu nasci em uma. Minha obra passeia por essas margens, seja o sertão nordestino ou o subúrbio carioca. Não há um lugar específico. A margem inteira é o foco, todo lugar onde habita o povo preto e pobre do país”, aponta. Ele diz que seu trabalho condensa várias buscas e que a principal é ser porta-voz de quem nunca foi ouvido, quem nunca tem a chance de falar ou, quando o faz, é ofuscado.

Pato, que já teve obras expostas em Inhotim, na coletiva “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, entre outros espaços expositivos prestigiosos, diz que sua centelha criativa é a indignação com a situação da classe operária do país.

'Todo imperialismo cairá!', obra de Wallace Pato

'Todo imperialismo cairá!', obra de Wallace Pato

Leonardo Mitre/Divulgação

Alegrias nas brechas

“A classe preta e pobre brasileira sofre opressão da classe burguesa. Isso nos faz levar uma vida de ir se virando com o pouco que tem. É dessa indignação que parte o desejo da poética das pinturas, porque é muita coisa não concluída”, afirma. Soma-se a esse sentimento, conforme aponta, um olhar sobre as alegrias que surgem nas brechas do trabalho e da dureza da vida. “A cultura popular, por exemplo, representa uma brecha. Disso também surgem ideias”, pontua.

Ainda sobre o título da exposição, ele recorre à frase “o sertão vai virar mar” para ilustrar seu pensamento. “Dignidade não deveria ser utopia. Essa expressão, 'o sertão vai virar mar', me faz pensar na classe pobre e preta do país longe dos centros – até mesmo do centro de atenção das coisas básicas. O mar seria a dignidade chegando nessa grande margem, onde habita esse povo”, comenta.

Para Rodrigo Mitre, um dos sócios da galeria, “há nas pinturas uma atmosfera de esperança, uma vontade de acontecimento, uma iminência que pode ser vista como uma espécie de preparação para o momento em que a dignidade passa a ser realidade”. Pato acrescenta que esse norte temático não diz respeito apenas às pinturas que compõem a exposição na Mitre Galeria; trata-se de algo que atravessa toda a sua produção.
 

'Minha investigação começa nas margens do país, até porque eu nasci em uma. Minha obra passeia por essas margens, seja o sertão nordestino ou o subúrbio carioca. Não há um lugar específico. A margem inteira é o foco, todo lugar onde habita o povo preto e pobre do país'

Wallace Pato, artista plástico

 

Coração da obra

“Falo sempre sobre as mesmas coisas. Às vezes faço um recorte e dou um zoom, mas são sempre as mesmas questões. É impossível fugir disso. Toda a classe pobre do país, que move esse grande moinho, trata a dignidade como utopia. Isso está entranhado na minha obra, é o coração dela”, afirma.

Autodidata, o artista, que está com 29 anos, iniciou seu trabalho, com as feições que tem hoje, em 2015, mas sua relação com a arte vem desde a infância. “Soa meio clichê, mas realmente é algo que começa quando eu era muito garoto, em casa, com o desenho. Por eu vir de uma margem e não ter acesso a museus ou galerias, meu trabalho se desenvolveu na rua, com a pichação, com o grafite. A partir daí fui buscando outros caminhos”, relata.
 
Artista Wallace Pato

O autodidata Wallace Pato já expôs em Inhotim e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

Leonardo Mitre/Divulgação

'Falo de gente como a gente, da classe preta e pobre. É importante que ela perceba as próprias ações. As pinturas falam de um movimento futuro, de uma reconstrução de Brasil nos nossos moldes, onde a dignidade deixe de ser utopia. Queria que as pessoas entendessem essa força e essa necessidade de organização para que algum lugar seja alcançado'

Wallace Pato, artista plástico



Ele conheceu o grafite em 2010 e, a partir de 2013, passou a pintar regularmente, primeiro com spray e depois com tinta de parede. Nesse período, sua arte se espalhou pelos muros de bairros periféricos do Rio de Janeiro, como Penha, Bonsucesso, Complexo do Alemão e Maré, além, naturalmente, daquele em que nasceu e onde, até hoje, mantém seu ateliê.

Sua intenção, conforme diz, era oferecer arte para aqueles que nunca tiveram acesso a ela e fazer com que essas pessoas pudessem se sentir representadas por seus grafites. Ele afirma que a expectativa que sempre nutriu – a mesma que sustenta em relação à mostra que será aberta amanhã na Mitre Galeria – é a de que as pessoas possam ver suas obras e refletir sobre o movimento que elas mesmas fazem no sentido de construção de um país.

“Falo de gente como a gente, da classe preta e pobre. É importante que ela perceba as próprias ações. As pinturas falam de um movimento futuro, de uma reconstrução de Brasil nos nossos moldes, onde a dignidade deixe de ser utopia. Queria que as pessoas entendessem essa força e essa necessidade de organização para que algum lugar seja alcançado”, ressalta.

O texto para a exposição assinado pelos curadores Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos aponta que, sozinhas ou em grupos, as figuras retratadas por Pato parecem sempre se situar em relação a outras tantas, evocando uma existência comunitária. “São cenas imaginadas sempre ao ar livre e abertas ao que há em volta, eludindo qualquer sentimento de aprisionamento daqueles corpos. Aqueles lugares não somente lhes pertencem, mas deles essas pessoas são também parte”, escrevem.

“DIGNIDADE COMO UTOPIA”

Individual de Wallace Pato. Abertura nesta sexta-feira (4/8), das 19h às 23h, na Mitre Galeria (Rua Tenente Brito Melo, 1.217, Barro Preto). A exposição fica em cartaz até 16/9, com visitação aberta ao público a partir deste sábado (5/8), das 10h às 16h, e de terça a sexta, das 10h às 19h.