Cena de 'Bodas de sangue', de Carlos Saura

"Bodas de sangue", exemplo da abordagem da dança no cinema de Carlos Saura, é um dos títulos da mostra, realizada em parceria com o Instituto Cervantes

Fotos: Divulgação

A Fundação Clóvis Salgado e o Instituto Cervantes confluíram no desejo de prestar um tributo ao cineasta espanhol Carlos Saura, que morreu em fevereiro deste ano, aos 91 anos. Realizador prolífico, com mais de 50 títulos produzidos ao longo de quase sete décadas de carreira, ele tem um pequeno recorte de sua produção na mostra “As alegorias de Carlos Saura”, que estreia nesta quarta-feira (28/6) e segue até o dia 5 de julho, no Cine Humberto Mauro.

Serão exibidos os filmes “A caça” (1966), “Cría cuervos” (1976), “Elisa, vida minha” (1977), “Mamãe faz 100 anos” (1979), “Bodas de sangue” (1981), “Ai, Carmela!” (1990), “Goya” (1999)  e “Ibéria” (2005). São filmes pertencentes ao acervo do Instituto Cervantes, com exceção de “Bodas de sangue”, “Ibéria” e “A caça”, que foram custeados especialmente para a mostra e só terão uma sessão cada um.

Gerente do Cine Humberto Mauro, Vitor Miranda diz que está sempre em diálogo com instituições representantes das culturas de outros países e que a morte de Saura ensejou o contato com o Instituto Cervantes, que, conforme diz, também estava interessado em homenagear o cineasta.

“Enviei uma mensagem dizendo que estava querendo exibir os filmes que eles têm no acervo e, por um acaso, o Instituto também estava com planos de fazer uma pequena mostra com as obras de Carlos Saura”, conta.

Confira o trailer de "Cría cuervos":



Miranda pontua que, sempre que um cineasta morre ou há alguma efeméride em torno de seu nome, o Cine Humberto Mauro abre espaço para uma revisão de sua obra. “Saura é um nome muito importante para a história do cinema, então não dava para deixar passar em branco. É um momento propício para um balanço do impacto artístico e do legado que ele deixou”, afirma.

Ele reconhece que, diante do volume da produção do diretor, oito filmes representam uma seleção enxuta, mas observa que ela é bastante representativa da trajetória do homenageado, na medida em que evidencia as diversas linguagens e estéticas que Saura incorporou em seu trabalho. 
Cena de 'Goya' (1999)

"Goya" é exemplo da produção dos anos 1990


Ele observa que o cineasta abordou os mais variados temas em sua cinematografia, como a burguesia, o conservadorismo, a Guerra Civil Espanhola e a ditadura de Francisco Franco, que assolou a Espanha de 1939 a 1975 e censurou algumas de suas obras.



“Ele foi um diretor muito versátil, com registros muito diferentes entre si, e acredito que essa seleção dá um gostinho de todas as fases, desde o início, ainda no período do franquismo, com 'A caça', até os filmes que ele fez em parceria com Antonio Gades nos anos 1980, com forte influência da cultura flamenca. Também incluímos suas obras mais famosas, 'Cría cuervos', 'Elisa, vida minha' e 'Mamãe faz 100 anos', e produções realizadas a partir da década de 1990, mais carnavalescas e coloridas”, aponta.

Cena de 'Elisa, vida minha', de Carlos Saura

"Elisa, vida minha" é um dos oito títulos da mostra


Alegorias de Saura 

“As alegorias de Carlos Saura” não esgota as possibilidades de homenagem do Cine Humberto Mauro ao diretor, segundo Miranda. “Temos uma limitação orçamentária, então não tivemos oportunidade de exibir os filmes mais atuais, por exemplo, mas é um desejo nosso apresentar, posteriormente, um panorama mais robusto. Ele faleceu com projetos em aberto, quer dizer, percorreu muitas décadas de produção”, salienta.

O  título da mostra busca expressar o traço mais marcante da obra do cineasta: o uso da alegoria. Apesar de ter criado filmes muito diferentes entre si, em termos formais e temáticos, Saura se vale, ao longo de toda sua obra, dessa figura de linguagem caracterizada como sendo um conjunto simbólico criado para transmitir um segundo sentido além do sentido literal das palavras – e, no caso, das imagens.

Um dos destaques da programação, “A caça” é um bom exemplo de como o diretor se valia desse recurso, de acordo com o gerente do Cine Humberto Mauro. “O filme focaliza um grupo de amigos que sai para caçar coelhos e, de repente, no meio da trama, eles começam a se digladiar por dinheiro, por ganância, por inveja. Isso é uma alegoria da própria Espanha durante o franquismo. Saura também faz isso com a própria vida, traz elementos biográficos que perpassam os filmes”, diz.
Cena de Mamãe faz 100 anos, de Carlos Saura

O clássico "Mamãe faz 100 anos" integra o ciclo


A sessão única de “A caça” – que, conforme a sinopse, aborda experiências traumatizantes do passado e de estímulos violentos do presente dos personagens –, no próximo sábado (1/7), às 18h, ocorre dentro da faixa História Permanente do Cinema e será comentada pelo cineasta e crítico Luiz Fernando Coutinho. Um dos títulos mais famosos da filmografia de Saura, “Cría cuervos” é outro bom exemplo de como o diretor trabalha a alegoria, segundo Miranda.

“Ali temos uma criança que está aprendendo a lidar com a morte, mas o teor é altamente político, o diretor está falando da morte de uma geração, da morte de um país devastado por uma ditadura. Ao mesmo tempo, é uma narrativa muito pessoal, com passagens e alusões à sua própria vida”, destaca. Ele chama a atenção para o fato de que, além da alegoria, diversos outros elementos se constituem como marca registrada do cinema de Saura.

“É um diretor que trabalhou com diversos gêneros - comédia, suspense, ação, policial - uma variedade temática grande, mas ele está sempre olhando para a história e a cultura de seu país. Por ser espanhol e sempre ter filmado na Espanha, Saura tem como substrato os elementos estéticos e culturais de seu país. Ele recebeu diversos convites para trabalhar em Hollywood e nunca aceitou”, pontua.

Cena de Iberia, de Carlos Saura

Em "Ibéria" a alegoria também está presente


Dança na tela

O encontro do cineasta com o bailarino Antonio Gades representou um momento importante dessa relação do cineasta com as tradições da cultura espanhola. “Ele abraça o universo da dança, apresentando o flamenco com um olhar de quem mora na Espanha; não é uma coisa estereotipada, para inglês ver. É um olhar que ele aplica para que os próprios espanhóis se identifiquem. 'Bodas de sangue' beira o documental, então você vê a estrutura do flamenco de uma forma muito incrível”, comenta Miranda.

Com frequência, Saura recebia convites para realizar documentários que somassem música e dança, a partir do sucesso de sua Trilogia Espanhola, composta pelos filmes  “Bodas de sangue”, “Carmen” e “Amor brujo”. Produtores argentinos correram atrás dele, e da parceria nasceu “Tango” (1998)  e “Zonda, folclore argentino” (2015). Portugal também recorreu ao cineasta para dirigir “Fado” (2007). Na própria Espanha, Saura ainda realizaria os filmes musicais “Sevilhanas” (1992), “Flamenco” (1995) e “Flamenco, Flamenco” (2020).

Para além da esfera musical, Miranda diz que o cinema de Saura é um ponto de interseção entre Buñuel, uma de suas influências mais fortes, e Pedro Almodóvar, que sempre disse ser muito influenciado por ele. Juntos, eles formam uma espécie de Santíssima Trindade do cinema espanhol. “Um está sempre referenciando o outro, o que é normal na cinematografia de qualquer país, porque existem mesmo esses diálogos entre os grandes realizadores”, pontua o gerente do Cine Humberto Mauro.

Cena de  A caça, de Carlos Saura

"A caça" terá sessão comentada


Miranda observa que a alegoria e o surrealismo estão presentes tanto em Saura quanto em Buñuel. “Ambos têm filmes em que você não sabe exatamente o que é realidade, o que é fantasia ou o que é memória. 'Cría cuervos' é assim, e em várias tramas de Buñuel a realidade fica suspensa, não há uma sequência lógica das coisas, como é o caso de 'O anjo exterminador' ou 'O discreto charme da burguesia'. Há esse paralelismo”, diz, acrescentando que os dois também compartilham um olhar crítico para a sociedade burguesa espanhola.

Já a obra de Almodóvar traz em comum com a de Saura as tintas do melodrama, com grandes momentos existencialistas e monólogos reflexivos, conforme aponta. Ele observa, ainda, que “Cría cuervos”, por exemplo, tem um foco agudo na figura feminina. “É um filme que tem uma criança como protagonista, mas também é sobre a tia, a mãe, a avó dessa criança. Outra coisa em comum com o cinema de Almodóvar é que, em seus filmes mais recentes, Saura carrega nas cores, trabalha muito com o vermelho”, diz.

Carlos Saura continuou produzindo incansavelmente até seus últimos dias. Sua filha Anna cuidava da pré-produção de um longa documental que seria dirigido pelo pai sobre Rosalía, a voz que vem hibridizando e renovando o flamenco. Aos 30 anos, a cantora, depois de fazer carreira na Espanha, radicou-se nos EUA. Não houve, porém, tempo para que o cineasta pudesse materializar o projeto.

“AS ALEGORIAS DE CARLOS SAURA”
• Mostra com oito títulos do cineasta espanhol, a partir desta quarta-feira (28/6) até 5/7,
• Cine Humberto Mauro do Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro, 31.3236-7400).
• Entrada franca, com ingressos distribuídos na bilheteria do cinema, uma hora antes de cada sessão.

Hoje (28/6)

17h - “Cría cuervos” (1976)
19h - “Goya” (1999)  

Quinta (29/6)

16h - “Elisa, vida minha” (1977)  

Sexta-feira (30/6)

16h - “Mamãe faz 100 anos”  
18h - “Ai, Carmela!” (1990)
20h - “Bodas de sangue” (1981)

Sábado (1/7)

18h - História Permanente do Cinema – “A caça” (1966) - Sessão comentada por Luiz Fernando Coutinho  

20h30 - “Ibéria” (2005)  

Domingo (2/7)

18h - “Cría cuervos” (1976) 
20h - “Mamãe faz 100 anos” (1979)

Terça-feira (4/7)

15h - “Cría cuervos” (1976) 
17h - “Elisa, vida minha” (1977) 

Quarta-feira (5/7)

16h - “Goya” (1999) 
18h - “Mamãe faz 100 anos” (1979) 
20h - “Ai, Carmela!” (1990)