O saxofonista mineiro Nivaldo Ornelas segura o sax e Milton Nascimento toca violão na gravação do disco Milagre dos peixes

O saxofonista mineiro Nivaldo Ornelas e Milton Nascimento durante as gravações do LP "Milagre dos peixes", lançado em 1973

Acervo Nivaldo Ornelas


Gabriel de Sá
Especial para o EM

Milton Nascimento orquestrou um time dos sonhos para dar vida a “Clube da Esquina”, LP duplo divisor de águas em sua carreira, lançado por ele e Lô Borges em 1972. Estavam lá Wagner Tiso, Nelson Angelo, Tavito, Beto Guedes, Toninho Horta, Luiz Alves e Robertinho Silva. Em “Milagre dos peixes”, o compositor cercou-se novamente de grandes amigos – que, por sorte, eram alguns dos melhores instrumentistas da época, como mostra a terceira reportagem da série sobre os 50 anos do disco.

Para criar a densa atmosfera sonora do LP de 1973, Milton manteve Tiso no piano e Angelo nos violões e guitarra. E recrutou para a trupe os saxofonistas Nivaldo Ornelas e Paulo Moura, o baixista Novelli, o baterista Paulinho Braga e o percussionista Naná Vasconcelos. A amizade de Bituca com esses músicos, contudo, vinha de outros tempos.

Nivaldo Ornelas e Milton se conheceram em meados da década de 1960, no Berimbau Club, reduto do jazz e da bossa nova no Edifício Arcângelo Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Recém-chegados de Três Pontas, no Sul do estado, Milton e Wagner Tiso formavam com Paulinho Braga o Berimbau Trio, que se apresentava ali naquela casa noturna.

“Tivemos identificação imediata, e ali nasceu nossa grande amizade”, conta Nivaldo Ornelas sobre Bituca. O saxofonista, reconhecido como um dos maiores tenoristas mineiros de sua geração, foi um dos fundadores do clube de jazz, e integrava o Tempo Trio com o pianista Helvius Villela e o baixista Paulo Horta.

Em 1973, Nivaldo Ornelas estava gravando com Hermeto Pascoal em São Paulo quando recebeu um telefonema de Milton Nascimento, que estava em estúdio no Rio e fez um convite ao amigo. Era para tocar em “Milagre dos peixes”. “Fiquei muito honrado, pois sabia que seria um trabalho realmente inovador, de alto nível, além da reunião da nossa turma de Belo Horizonte”, recorda o instrumentista.
 

'Meu solo foi improvisado na hora, realmente nada previsto. Como o ambiente era muito bom, isso foi possível de ser realizado'

Nivaldo Ornelas, saxofonista

 

O sax de Nivaldo Ornelas aparece nas faixas “Hoje é dia de El-Rey” e “Sacramento”. “‘Hoje é dia de El-Rey’ eu já conhecia, pois estava por perto quando Márcio e Milton a compuseram, com letra e tudo, (eu sabia) o sentido dela”, diz ele.

Já “Sacramento”, parceria de Milton com Nelson Angelo, Ornelas conheceu no estúdio. “Em ambas, meu solo foi improvisado na hora, realmente nada previsto. Como o ambiente era muito bom, isso foi possível de ser realizado.”

No estúdio, como não poderia deixar de ser em se tratando de Milton Nascimento, o clima era de pura camaradagem. Além dos músicos, circulavam por lá os letristas Fernando Brant e Márcio Borges. “Foi uma época maravilhosa”, diz Nivaldo. Para ele, a partir do lançamento de “Milagre dos peixes”, a carreira de Milton tomou nova direção. “Era uma música absolutamente inédita, rica, de uma elegância jamais vista, e que ia rodar o mundo”.
 
Wagner Tiso sentado ao piano lê partitura

Wagner Tiso sentado ao piano lê partitura

Instagram/reprodução
 

'Não pode cantar com letra? Então vamos cantar sem mesmo. E ficou muito bom (...) A censura destrói tudo. Destrói a democracia, o poder de escolha e o trabalho cultural de um país'

Wagner Tiso, pianista e maestro

Livre, quero poder dizer

Wagner Tiso relembra que desde os tempos da juventude, quando ele e Milton formaram um grupo vocal em Três Pontas, o amigo sempre se destacou nos vocalises. Sem poder cantar as letras criadas pelos parceiros, aquela foi a oportunidade ideal para Bituca explorar sua voz de outras maneiras.

“Não pode cantar com letra? Então vamos cantar sem mesmo”, provoca Tiso. “E ficou muito bom. Sou da música instrumental, esse é meu ramo.” A proibição das letras ainda hoje, 50 anos depois, é um tema incômodo para Wagner Tiso. 

“A censura destrói tudo. Destrói a democracia, o poder de escolha e o trabalho cultural de um país”, lamenta ele. “A cultura fica na mão de quem tá comandando o país, e isso é horrível. Mas dá-se sempre um jeitinho, né?”.

Não morra que o mundo quer saber

Antes das gravações, Milton reuniu-se por três noites com os amigos Nelson Angelo, Naná Vasconcelos e Novelli para elaborar a sonoridade de “Milagre dos peixes”. As sessões ocorreram em um sobrado que pertencia a Káritas, companheira de Milton à época, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

“O trabalho foi centrado nessa pequena banda”, diz o guitarrista e compositor Nelson Angelo. “Mas não eram longas as sessões de ensaio, não”, detalha.

Mesmo em um período de tensão política, a calmaria exalada por Milton Nascimento contagiava a atmosfera das reuniões noturnas. “Era o privilégio da música. Éramos muito amigos e entrosados. Tudo feito com muita atenção, concentração e carinho”, rememora o guitarrista.
 
Nelson Angelo olha para a câmera

Nelson Angelo olha para a câmera

Cafi/divulgação
 

'Bituca sabia que havia algo errado no ar e sentiu que tinha o dever de fazer aquele disco. Ele poderia ter cancelado, afinal, as palavras haviam sido varridas, não podiam ser cantadas'

Nelson Angelo, violonista e guitarrista


Nos estúdios da Odeon, onde o disco foi gravado, o clima de confraternização continuou. “A gente estava gostando do que estava fazendo, sem procurar defeitos. Era tudo muito natural. Fomos muito felizes, muito premiados”, brinda Nelson Angelo. “Todo mundo estava andando na mesma direção.”

Com letra de Milton e melodia de Nelson Angelo, “Sacramento” foi gravada na íntegra em “Milagre dos peixes”, sem sofrer a caneta da censura. A música havia sido composta por Angelo no fim dos anos 1960. Algum tempo depois, ele tocou-a ao violão para Bituca.

“Quando ouviu a melodia, com algumas poucas palavras, ele logo disse: ‘Pode passar pra cá’”, conta o músico. Milton colocou a letra na hora e eles nunca mais mexeram na estrutura da canção.

Nelson adorou o resultado: uma letra dinâmica, segundo ele, com jogo de palavras sofisticado adornado por ambiente religioso. “Três pessoas vieram me pedir/ Não morra que o mundo quer saber/ As coisas que a vida não te impôs/ A morte que sempre a ti perdeu/ O amor que teus olhos sabem dar, dizem os versos escritos por Bituca, posteriormente gravados por Nana Caymmi.

“Eu tinha a maior dificuldade de decorar a letrar”, diverte-se Nelson Angelo. “Mas adorei. Quando a coisa rolava, não tinha dúvida: dava certo no começo, no meio e no fim”, relembra o compositor mineiro.

Nelson Angelo analisa a trajetória de “Milagre dos peixes” como uma forma de denúncia do regime militar e da censura. “Bituca sabia que havia algo errado no ar e sentiu que tinha o dever de fazer aquele disco. Ele poderia ter cancelado, afinal, as palavras haviam sido varridas, não podiam ser cantadas”, aponta o instrumentista. “Foi um disco contrarrevolucionário não pelo discurso, mas pela música, que estava querendo dizer tudo”, argumenta.

Para Angelo, a censura a “Milagre dos peixes” e a tantas outras produções da época escancara certa “burrice” dos censores, e até “preconceito” em relação a determinados artistas. 

“Muitas vezes, eles não percebiam coisas, ou interpretavam de maneira errada. A gente debochou de algumas coisas censuradas quando o Milton mostrou pra gente. A maioria delas era uma grande bobagem”, diz ele.

Nelson Angelo acredita que muitas das proibições demonstravam o caráter passional dos militares em relação aos censurados. “Eles tinham aversão ao pensamento de nomes como Chico Buarque, mesmo sem razão, e por isso procuravam bloqueá-los”, afirma.
 
 

A chamada

“Foi tudo muito intenso, muito emocionante”, conta o contrabaixista e compositor pernambucano Djair de Barros e Silva, o Novelli. Ele já havia esbarrado em alguns dos nomes que orbitariam o chamado Clube da Esquina, como Wagner Tiso e Toninho Horta, quando conheceu Milton Nascimento no Festival Internacional da Canção de 1967 – aquele em que Milton levou o prêmio de melhor intérprete e sua “Travessia” chegou em segundo lugar, lançando Bituca direto ao olimpo da música popular brasileira.
 
Novelli toca baixo

Novelli toca baixo

Instagram/Reprodução

'Participar do disco 'Milagre dos peixes' me trouxe sensações muito emocionantes. O canto do Bituca me tocou profundamente'

Novelli, baixista

 

Ali, o pernambucano e o carioca de alma mineira deram partida em uma amizade musical que foi em frente. Novelli foi convidado a gravar “Milagre dos peixes” e emprestou o som de seu contrabaixo para praticamente todas as faixas.

“Como já tocávamos juntos, era muito prazeroso. Nós nos encantávamos com as composições. Os ensaios eram incríveis e as músicas me tocaram a alma”, recorda o artista, hoje com 78 anos, que vive no Rio de Janeiro. “Participar do disco ‘Milagre dos peixes’ me trouxe sensações muito emocionantes. O canto do Bituca me tocou profundamente”.

Aquele foi um ano produtivo para Novelli. Em 1973, ele gravou em Paris um álbum com os amigos e parceiros Naná Vasconcelos e Nelson Angelo, colegas de “Milagre dos peixes”, produzido por Pierre Bahout e Michel Legrand; e outro coletivo, com Danilo Caymmi, Beto Guedes e Toninho Horta.

Novelli compôs “Minas”, faixa de abertura do álbum homônimo de Milton de 1975, que, acrescida da letra de Ronaldo Bastos, fecha o disco “Geraes”, lançado por Bituca em 1976. 
 
Paulinho Braga toca bateria

Paulinho Braga, companheiro de Milton no Berimbau Trio de BH, foi convocado para gravar 'Milagre dos peixes'

Reprodução
 

O contrabaixista aparece também nos créditos de “Clube da Esquina 2”, álbum duplo que Milton e companhia colocaram na praça em 1978 (Novelli é o autor de “Toshiro”). O contrabaixo do pernambucano é parte marcante da sonoridade destes três discos de Milton.

Ao longo dos anos, Novelli tocou com Tom Jobim, Elis Regina, Egberto Gismonti, Gal Costa, João Donato, Chico Buarque e família Caymmi, entre muitos outros.

Contudo, o instrumentista não participou da gravação ao vivo de “Milagre dos peixes”, no Theatro Municipal de São Paulo, lançada como LP em 1974, sendo substituído por Luiz Alves, o mesmo baixista do antológico “Clube da Esquina”, de 1972.
 
Milton Nascimento abraçado com Naná Vasconcelos

Milton e Naná Vasconcelos, cuja percussão assumiu o papel de 'solista' ao longo de 'Milagre dos peixes'

Instagram/Reprodução
 

Em tudo é o mesmo suor

O pernambucano Naná Vasconcelos (1944-2016) é peça fundamental na engrenagem sonora de “Milagre dos peixes”. As intervenções do percussionista foram decisivas para criar o ambiente musical do disco.
 
• Ouça o tema instrumental 'A chamada'. Em meio aos vocalises, Milton grita: 'Eu tô cansado! Me solta!":
 
 

“A percussão em muitos casos possui a função de solista. Os instrumentos utilizados por Naná criavam uma sonoridade sombria, estranha, na qual é perceptível o clima vivido pelos músicos durante a concepção de um disco fantasmagórico, porém carregado por uma proposta claramente aguerrida”, observa o historiador Bruno Viveiros Martins.

Leia amanhã: Depoimento exclusivo de Ruy Guerra, o cineasta moçambicano que filmou Milton Nascimento em “Os deuses e os mortos” e escreveu a letra de “Cadê”, uma das três músicas vetadas pela censura do regime militar.
 
Milton Nascimento de boné com Paulo Moura que segura o clarinete

Milton Nascimento e o saxofonista carioca Paulo Moura (1932-2010), que fez parte da banda de 'Milagre dos peixes'

Adalberto Diniz/reprodução
 

SÉRIE DE REPORTAGENS

O jornal Estado de Minas publica desde  domingo a série de reportagens “O milagre de Milton”, sobre os 50 anos de lançamento do  LP “Milagre dos peixes”. Lançado em 1973, o álbum tornou-se o grito de Milton Nascimento contra a censura vigente na ditadura militar. O sucessor do aclamado “Clube da Esquina” foi mutilado pelos censores, que vetaram os versos de três parcerias do cantor: “Os escravos de Jó” (com Fernando Brant), “Hoje é dia de El-Rey” (com Márcio Borges) e “Cadê” (com o cineasta Ruy Guerra). Milton, então, preencheu as melodias com vocalises, gritos, falsetes e timbres que expressavam o que havia sido proibido. As reportagens já publicadas podem ser lidas no em.com.br