De pé, contra parede de cor neutra, Itamar Vieira Junior encara a câmera

O escritor esteve neste mês no Japão para acompanhar o lançamento de "Torto arado" no país asiático

Renato Parada/Divulgação

Quando terminou de escrever “Torto arado”, Itamar Vieira Junior percebeu que não havia conseguido explorar no livro tudo o que gostaria. Ainda que o romance tenha vencido o Prêmio Jabuti em 2020 e caído na graça dos brasileiros, o autor sentia a necessidade de dar início a um novo ciclo para falar de mais personagens.

Começou, então, a colher informações e a rememorar os casos que ouviu ao longo dos anos em que trabalhou viajando pelos locais mais recônditos do Brasil pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Desse material, nasceu “Salvar o fogo”, romance que chega nesta semana às livrarias.

Com múltiplos narradores, que são também personagens da trama, a obra faz uma espécie de spin-off (derivação) de “Torto arado”. Os protagonistas são os familiares de Maria Cabocla - vizinha de Belonísia, uma das personagens principais do livro de estreia de Itamar. 

“Salvar o fogo”, no entanto, não se concentra na vida de Maria Cabocla, e sim na de seus irmãos Luzia e Moisés, que vivem no povoado rural Tapera do Paraguaçu, no interior da Bahia.

É claro que não é uma pesquisa, uma investigação científica, ou acadêmica. É apenas literatura. E aí eu estou lidando com imaginação, com subjetividades. Mas, ainda assim, eu acho que a literatura tem a capacidade de nos fazer imaginar as subjetividades dos implicados nessa trama histórica

Itamar Vieira Junior, escritor


Mosteiro

De origem humilde – o pai agricultor e a mãe dona de casa –, Luzia ganha a vida como lavadeira. Seu principal cliente é Dom Tomas, abade de um importante mosteiro da comunidade. Toda a vida da aldeia, aliás, acontece no entorno do convento: “as referências, o tempo, a história, era como se nada tivesse existido antes”, conta Moisés, o primeiro narrador do livro.

“O povo já não sabia quem tinha chegado antes, se os donos das terras, se o mosteiro, se a nossa gente. Mas a resposta não fazia muita diferença. O fato é que se houve uma ordem de chegada, isso não importava”, continua o narrador.

Conforme a história vai se desenrolando, o leitor entende que a aldeia de Tapera fazia parte de uma enorme fazenda cuja proprietária doou parte das terras ao clero. Em pouco tempo, os religiosos passaram a ditar as regras locais e a exigir dos moradores o pagamento de tributo para não serem despejados.

A comunidade vive relativamente bem em sua ignorância e miséria. Pagam o caro tributo aos monges e trabalham por uma parca colheita sem reclamar. Somente Luzia vive em desgraça e sabe de sua condição de infortúnio. 

Persona non grata em Tapera, ainda pequena foi tachada de feiticeira e constantemente é ameaçada pelos moradores da comunidade. Para piorar, na juventude, uma corcunda cresceu em suas costas e ela passou a ser hostilizada ainda mais.

Moisés, por sua vez, não é indesejado em Tapera. Sua existência, na verdade, passa despercebida. Bem mais novo que a irmã, ele é um “temporão”, conforme o pai dizia.

Estranhamente, entre ele e Luzia há uma ligação íntima de, ao mesmo tempo, carinho e desafeto. Contudo, a irmã assume responsabilidade sobre o garoto, como se fosse a mãe dele. Foi graças a ela, inclusive, que ele conseguiu uma vaga para estudar na escola regida pelos monges.
 

Abusos

O que era para ser um privilégio para o garoto virou tormento. No colégio, Moisés vê de perto os abusos de Dom Tomas. Conforme lembra, certa vez, entrou sem ser notado em uma sala e viu uma criança sentada numa cornija, com o abade “ajoelhado à sua frente, os olhos fechados, a cabeça balançando”.

A crítica social é o que marca o novo romance. A chegada dos monges à Tapera e o modo autoritário como eles ditam as regras da comunidade em seguida, apagando todo tipo de costume ou tradições que havia no local, nada mais são do que uma alegoria para falar de como a Igreja contribuiu para o apagamento sócio-cultural com a colonização do Brasil e, posteriormente, com o processo de escravidão.

“Eu acho que o empreendimento colonial não seria o mesmo se não tivesse todo o suporte e o aparato da Igreja para permitir que a colonização e a escravidão prosperassem”, afirma Itamar em entrevista ao Estado de Minas. 

“Quando chegaram no território brasileiro, a primeira coisa que colocaram foi uma cruz. De certa maneira, era o início de um apagamento de tudo que existia antes”, emenda.

Com personagens que vivem em uma época não especificada - mas que bem poderiam ser os dias atuais - Itamar provoca o leitor, ao jogar luz na história de um povo que, por muito tempo, ficou ausente da historiografia oficial do país. 

“É claro que não é uma pesquisa, uma investigação científica, ou acadêmica. É apenas literatura. E aí eu estou lidando com imaginação, com subjetividades. Mas, ainda assim, eu acho que a literatura tem a capacidade de nos fazer imaginar as subjetividades dos implicados nessa trama histórica”, diz o autor. 

“No fundo, parece que esse movimento tenta sair um pouco da história oficial a fim de entender o Brasil de uma maneira diferente. Entender que somos um país fundado num ambiente de extrema violência.”

A violência, aliás, é latente em “Salvar o fogo”: os monges abusam das crianças; Luzia é hostilizada e apedrejada por crianças em praça pública; Maria Cabocla apanha do marido; Moisés bate em quem zomba da irmã, e por aí vai. 

Todos esses episódios, contudo, não são gratuitos. Estão presentes para mostrar que a violência é um elemento do cotidiano do país, por mais que os brasileiros se recusem a enxergar isso.

Eu acho que o empreendimento colonial não seria o mesmo se não tivesse todo o suporte e o aparato da Igreja para permitir que a colonização e a escravidão prosperassem

Itamar Vieira Junior, escritor


Protagonismo feminino

Quem enfrenta a violência com valentia, no entanto, são as mulheres da história. Cada uma a seu modo, elas assumem o papel de heroínas nesse novo romance. Não que isso seja novidade nas obras de Itamar - em “Torto arado” e “Doramar ou a odisseia – Histórias”, as protagonistas também eram mulheres.

A escolha tem várias justificativas. Itamar cresceu em uma família na qual se acreditava que o papel dos homens era o de sustento da casa por meio do trabalho, enquanto cabia às a criação dos filhos. “Acho que essa imagem tenha ficado de maneira determinante no meu inconsciente”, diz o escritor.

“Mas acho que não é só isso”, pondera. “Acredito que também tem uma ideia de subverter a história, porque, se a gente pensar que nossa história (oficial) foi planejada e projetada por homens, percebemos o quanto as mulheres foram silenciadas e apagadas durante muito tempo”. 

Ele lembra que, antes da chegada dos colonizadores, existia entre os povos originários uma perspectiva matriarcal. Ou seja, a posição e os saberes das mulheres eram respeitados e levados em conta. “É provável que (a escolha de protagonistas mulheres) seja um movimento para resgatar um pouco disso, devolver aquele protagonismo que foi usurpado pela história patriarcal eurocêntrica”, diz.

Embora seja uma derivação do romance premiado com o Jabuti, “Salvar o fogo" não depende de uma leitura anterior de “Torto arado”. A história tem vida própria e cumpre o intento do autor ao escrevê-la: provocar a reflexão.

“Acho que para uma história prosperar e ter êxito naquilo que o autor planejou, ela deve ter essa capacidade de incomodar o leitor. A literatura tem que provocar um pouco para tirar a gente desse lugar confortável, para que a gente possa refletir a partir de outras perspectivas”, afirma.

Mulher de roupa branca está de costas segurando a mão de menino na capa do livro Salvar o fogo

Mulher de roupa branca está de costas segurando a mão de menino na capa do livro Salvar o fogo

Todavia/reprodução
“SALVAR O FOGO”

• Itamar Vieira Junior
• Todavia (320 págs.)
• R$ 76,90
 
Mulher negra está sentada em cadeira, com mãos sobre as coxas, observada por pessoas sentadas mais ao longe no espetáculo Depois do silêncio

Cena de 'Depois do silêncio', espetáculo de Cristiane Jatahy inspirado no livro 'Torto arado'

Cristopher Ayanaud Delage/site Cristiane Jatahy
 

VERSÕES DE “TORTO ARADO”

“Salvar o fogo” é o segundo livro lançado por Itamar Vieira Junior depois de “Torto arado” – antes, ele publicou “Doramar ou a odisseia – Histórias”. Seu livro de estreia já vendeu mais de 350 mil exemplares e foi traduzido para 15 países. Neste mês, o escritor esteve no Japão para o lançamento da obra no país asiático.

“Torto arado” também foi inspiração para o espetáculo “Depois do silêncio”, de Christiane Jatahy, e para a canção homônima do novo disco de Rubel, "As palavras Vol. 1 & 2", lançado em março passado.

Recentemente, foi anunciado que o livro vai virar série da HBO Max, com direção de Heitor Dhalia (“O cheiro do ralo”); e peça teatral dirigida por Aldri Anunciação, prevista para estrear no primeiro semestre do ano que vem.
 
“Eu olho com muita satisfação para tudo isso, porque, como leitor, entendo quando um livro nos marca de uma maneira muito potente. E talvez essa história tenha reverberado de maneira muito interessante nesses leitores que são artistas e terminam criando novas leituras dessa mesma narrativa”, afirma Itamar.