Sentada em cadeira, Isabel Casimira, Rainha Conga de Minas Gerais e das Guardas de Moçambique e Congo 13 de Maio encara a câmera

Isabel Casimira, Rainha Conga de Minas Gerais e das Guardas de Moçambique e Congo 13 de Maio, é uma das 13 mestras retratadas no livro

Patrick Arley/Divulgação

Fruto de um trabalho cujo início remonta a 2012, o livro “Mulheres reinadeiras: Rainhas, capitãs e cozinheiras do Rosário de Belo Horizonte” terá um primeiro evento de lançamento nesta quinta-feira (20/4), às 20h, na Livraria Quixote – outros dois estão previstos para o próximo sábado (22/4), na Mimulus Escola de Dança, e domingo (23/4), na sede da Guarda São Jorge de Nossa Senhora do Rosário.

Idealizada pela jornalista e escritora Júlia Moysés, por seu marido, o produtor cultural Elias Gibran, e pela designer Mariana Misk, a obra apresenta 13 perfis de mestras dos reinados e congados de Belo Horizonte, construídos a partir de entrevistas realizadas por jornalistas, e traz farto material fotográfico das mulheres retratadas e de seu cotidiano nas respectivas irmandades. 

Os textos são assinados por Ártemis Brant, Carol Macedo, Karina Marçal, Juliana Afonso, Mayra Bernardes, Patrick Arley, Pedro Kalil e Sarah Santos, além da própria Júlia Moysés, com a colaboração da também jornalista Joyce Athiê na redação e edição.

Entre as mestras retratadas no livro estão Isabel Casimira, conhecida como Belinha, Rainha Conga de Minas Gerais e Rainha das Guardas de Moçambique e Congo 13 de Maio, no bairro Concórdia; Dona Zelita, que morreu durante o processo de feitura do livro, da Guarda de Caboclinhos do Divino Espírito Santo; Maria do Nascimento, Neusa e Zilda Pereira, que estão à frente da pioneira Guarda Feminina Nossa Senhora do Rosário, do bairro Aparecida.

Leia também
Silviano Santiago: "O mistério do saber se cruza com o mistério do viver"

Júlia conta que ela e Gibran já trabalham há muito tempo com o universo do congado, por meio da Napele Produções Artísticas, que cuida dos projetos de Maurício Tizumba. Em 2012, eles fizeram, para os festejos do Tambor Mineiro – centro de referência da cultura afro-brasileira coordenado pelo artista –, um minidocumentário focalizando a viagem da irmandade Os Carolinos a Aparecida do Norte (SP).

A mestra do congado Vânia beija imagem religiosa

A reinadeira Vânia é uma das que contam na obra as razões de sua devoção a Nossa Senhora do Rosário

Patrick Arley/Divulgação

Cartografia das irmandades

Esse contato inaugural com a cultura e as tradições dos reinados e congados acabou desembocando no livro “Percursos do sagrado: Irmandades do Rosário de Belo Horizonte e entorno”, lançado em 2015. A obra apresenta uma cartografia de 60 irmandades. Para “Mulheres reinadeiras”, que é um desdobramento daquele trabalho, foram eleitos dois recortes – um geográfico e outro de gênero.

“Foi uma forma de fazer uma abordagem diferente da que outros livros apresentam, inclusive o nosso próprio, de 2015. A ideia é contribuir para a difusão desse universo tão presente nas margens da nossa cidade, e que por vezes é tratado como algo distante, exótico, restrito, sendo que, na realidade, é algo fundante da cultura mineira”, diz Júlia.

Ela destaca que os jornalistas convidados para a empreitada são, em sua maioria, mulheres. O projeto editorial teve a participação da antropóloga Júnia Torres e da mestra e Rainha Conga da Guarda de São Jorge, Kelly Simone, conforme aponta. “O olhar das duas foi muito importante para delimitar o que seria o livro”, diz.

As entrevistas começaram a ser feitas em 2019, todas presencialmente. “Era importante para as entrevistadoras ver o ambiente, capturar questões subjetivas para além do que essas mulheres contam, então não tinha como ser por telefone, por exemplo. Nem digo que são perfis; são retratos feitos a partir desses encontros, que podiam durar de três a quatro horas”, diz a idealizadora do projeto.

Ela ressalta que Júnia e Kelly contribuíram decisivamente, estabelecendo critérios norteadores para o desenvolvimento do trabalho. “O principal deles foi abordar mulheres reconhecidas como principais lideranças desses grupos em Belo Horizonte, dentro e fora deles. Mulheres mestras, líderes tem em todos os reinados da cidade, mas existem aquelas que são guias mesmo”, aponta.

Leia tambémLivros de Malluh Praxedes e André Simões dão destaque a criadores de música

Kelly Simone acompanhou a maioria das entrevistas, o que foi de suma importância, segundo Júlia. “A gente chegava nos territórios sagrados com uma pessoa conhecida, de confiança, de dentro do universo do congado, então ela não só acompanhou as jornalistas, como também sugeria perguntas”, diz.

Ela pontua que o fotógrafo e antropólogo Patrick Arley esteve presente na maior parte das entrevistas. Um quinhão das imagens que ilustram “Mulheres reinadeiras” leva seu crédito. A obra também conta com fotos de arquivo de Pablo Bernardo e Netun Lima. A ideia é que os registros fossem todos feitos durante os festejos dessas irmandades, mas como eles foram interrompidos por causa da pandemia, foi necessário recorrer a esses arquivos.
 
A mestra Iara fala ao microfone, vestida para festa de congado

A conquista do papel de liderança exercido por mulheres como Iara em ambientes tradicionalmente masculinos é um dos aspectos abordado pela publicação

Netun Lima/Divulgação
 

Mudança de cenário

O livro tem, como tema central, o aumento da presença feminina nos reinados e congados ao longo das últimas décadas, com as mulheres ocupando cargos na hierarquia religiosa e administrativa que, até os anos 1970, na maioria dos grupos, eram destinados exclusivamente aos homens.

As mulheres sempre carregaram as coroas, mas a elas era vedada a capitania, a fundação de guardas, as decisões de gestão e até mesmo a participação – para além do trono coroado – nos grupos de Moçambique. Essa mudança, como vários depoimentos revelam, foi gradual e conflituosa. Júlia destaca que a Guarda Feminina Nossa Senhora do Rosário, do bairro Aparecida, foi muito importante nesse processo.

“São pioneiras, mulheres que fundaram uma guarda, assumiram estar à frente de uma guarda”, diz. Ela observa que essa transformação do papel das mulheres nos reinados e nos congados mostrou que a tradição pode ser porosa aos novos tempos, sem que os fundamentos sagrados sejam violados.

Espaços de poder

“Elas começam a reivindicar, o que vem na esteira do próprio movimento global das mulheres de ocupar espaços de poder. Elas começam a integrar os grupos em outras posições, até que se tornam capitãs, que é um cargo alto da hierarquia religiosa; é quem comanda os rituais. Alguns grupos até hoje não permitem mulheres no Moçambique fora do trono coroado, mas isso vem mudando a passos largos”, afirma.

As mulheres estão ocupando cargos também na esfera administrativa das guardas, e a maioria dos grupos é muito acolhedora a esse processo atualmente, conforme aponta. “Uma vez conversei com a capitã Elizangela, da Guarda de Moçambique Alto dos Pinheiros, e ela disse que o cenário está mudando porque está nascendo muita mulher. Parece uma explicação simplista, mas é isso, as mulheres precisam ser incorporadas”, pontua.

Segundo ela, embora os congados e os reinados sejam todos mantenedores de tradições seculares, não estão à margem do que está acontecendo no mundo. “As mais velhas falam de como foi difícil num primeiro momento, foi sofrido, violento, desafiador, como é sempre. Mas, hoje, muitas dessas comunidades têm a tradição defendida justamente pela força feminina, que atua para garantir o zelo aos fundamentos e a continuidade dos grupos”, diz.

A entrevistada de Júlia no livro, Maria do Rosário, capitã mor da Guarda de Moçambique do São José, dá um depoimento emblemático desse processo. O pai dela, Seu Tiziu, já falecido, está entre os pioneiros do congado em Belo Horizonte, foi dos primeiros a chegar à capital trazendo essa tradição. Ele não deixava as mulheres acompanharem o Moçambique, com exceção da filha, que já marcava presença desde os 5 anos.

“Ele dizia que mulher não podia acompanhar, e Maria do Rosário perguntava: ‘E eu?’. Ele respondia: ‘Você pode’. Quando Seu Tiziu estava perto de morrer, os filhos não queriam assumir o posto, e foi ela quem ocupou o lugar dele à frente da guarda. Ele teve essa abertura porque sentiu nela alguma coisa”, conta Júlia.

Ela destaca que todos os depoimentos colhidos pelos jornalistas participantes do projeto trazem elementos já esperados, como a dificuldade de se enfrentar o machismo e de se conciliar o lugar no reinado e no congado com as durezas da lida diária, mas ressalva que todos, como este de Maria do Rosário, carregam também algo de impressionante.
 
Mary dos Santos  caminha na rua durante desfile de guarda de congado

Mary dos Santos mantém a tradição nas ruas de BH

Netun Lima/divulgação
 

Entrega ao sagrado

“Me toca muito essa questão da fé. A vida dessas mulheres é muito difícil, de muita labuta, mas todas falam da alegria que Nossa Senhora do Rosário traz, e elas são, efetivamente, pessoas muito alegres, apesar de tudo. Todas dizem isso, e sempre me surpreende essa entrega ao sagrado, esse amor por Nossa Senhora do Rosário e por São Benedito. É algo que elas repetem sempre, e sempre me causa um espanto, uma emoção”, ressalta.

Júlia conta que seus próprios caminhos foram guiados por essa instância da fé, a partir das pesquisas para o livro “Percursos do sagrado”. “Eu já apreciava culturalmente esse universo dos reinados e congados, mas ali, em 2015, fui tocada pelo sagrado, pelo mistério, e hoje sou fardada dos Carolinos. Começou como algo profissional e virou um elemento muito significativo na minha vida, que transformou mesmo minha forma de estar no mundo”, diz.

Com relação ao triplo lançamento de “Mulheres reinadeiras”, ela explica que atende tanto ao que foi colocado no projeto aprovado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura quanto ao desejo dos proponentes de dialogar com públicos que estão em locais distintos da cidade.

Guardas espalhadas

“As guardas estão espalhadas, a maioria nas margens, e a gente considerou muito importante lançar em uma festa de congado de uma das editoras, a Kelly Simone”, diz, se referindo ao evento do próximo domingo, no bairro Concórdia. Ela situa que o lançamento estava inicialmente previsto para o início deste mês, mas foi adiado porque ainda era o período da quaresma, quando as guardas se recolhem. “Aí o livro ficou recolhido também”, diz.

De acordo com ela, o lançamento na Mimulus Escola de Dança se relaciona também com a localização, já que o espaço tinha como vizinho o Tambor Mineiro, no bairro Prado, que, impactado pela pandemia, fechou as portas em agosto de 2020.

“E a gente não queria deixar de promover esse lançamento também na área central da cidade, por onde circula um público que tem menos informação acerca da importância dos reinados, dos congados. Esse evento na Quixote é porque a gente acha que as irmandades têm que estar no centro também, geográfico e de entendimento das pessoas”, sublinha.

“MULHERES REINADEIRAS: RAINHAS, CAPITÃS E COZINHEIRAS DO ROSÁRIO DE BELO HORIZONTE”

Lançamento nesta quinta-feira (20/4), às 20h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi), no sábado (22/4), às 15h, na Mimulus Escola de Dança (Rua Ituiutaba, 325, Prado), e no domingo (23/4), às 11h, na sede da Guarda São Jorge de Nossa Senhora do Rosário (Rua Tamboril, 629, Concórdia). Entrada franca.