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Silviano Santiago: 'O mistério do saber se cruza com o mistério do viver'

Ao assumir cadeira na Academia Mineira de Letras, escritor relembra vivência "solidária e boêmia" e cita Drummond e Guimarães Rosa; leia discurso na íntegra


31/03/2023 04:00 - atualizado 31/03/2023 00:24

Silviano Santiago
"Quero ter Belo Horizonte na velhice para nela desentranhar o perfil do jovem que começa a sua formação educacional há exatos 66 anos, em 1957, ao tomar o elevador do edifício Acaiaca e descer no vigésimo andar, já inscrito na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais." (foto: Felipe Varanda/Folhapress)

 

Silviano Santiago

 

Ter uma cadeira onde sentar. Ter uma casa onde descansar o corpo. Ter uma cidade que lhe fala da juventude.
De repente, já na velhice carioca e durante a pandemia, você se dá conta de que, na cidade da sua juventude, você não tem mais a cadeira onde senta e a casa onde descansa. Belo Horizonte ameaça mergulhar definitivamente na lembrança, de braços dados com a cidade de Formiga, onde nasci. “Minas não há mais” – o lamento de José, no poema de Carlos Drummond, ressoa nos meus ouvidos. E agora?


Essa recente sensação de desamparo existencial repete outra e semelhante, acontecida há 55 anos, em 1968. Trabalhava na América do Norte e o meu pai falecia de ataque cardíaco na capital mineira. O desamparo existencial volta a atacar nos últimos meses do ano de 2021. Perco, então, uma das minhas três irmãs, a Nilda.


Desde a morte do meu pai em 1968, todas as vezes que viajei a Belo Horizonte eu me hospedava na sua casa e lá desfrutava de curtas e repousantes temporadas.


Silenciosamente, eu me revolto contra a condição ancestral de órfão. A minha vida sentimental nunca foi de fácil convivência. Às vezes, tive a coragem de torcer o seu pescoço para ir adiante. Ou melhor, para sobreviver. E sobrevivo uma vez mais, agora graças a telefonemas recebidos de saudosos e queridos amigos mineiros. Não estavam a par do luto familiar. Passavam-me uma informação e me faziam uma pergunta. Há uma cadeira vaga na Academia Mineira de Letras. Por que você não se candidata?


No entrecruzar de fortes e contraditórias sensações, eu me pergunto: E agora, José?


Sou de natural pouco afeito à rotina das instituições culturais. A razão é simples. Tive a minha vida profissional excessivamente conformada pela longa, restritiva e exigente carreira universitária, no estrangeiro e aqui. Nada contra a universidade. Pelo contrário. Tenho de lhe ser fiel e agradecido pela boa acolhida e generosidade. Foi o
cotidiano de pé e falante, ao lado do quadro-negro, que me trouxe o autossustento financeiro que viabilizou a tranquilidade para a produção religiosa e libertária dos muitos livros que escrevi e publiquei.


E agora? Nas conversas ao telefone, eu, indeciso, titubeio. As pessoas amigas tiveram a perspicácia de insistir. E insistem. Candidate-se! todos me apoiam. Conspiram e me convencem. Em setembro de 2021, aos 84 anos, decido candidatar-me e escrevo mensagem ao atencioso e receptivo Presidente da Academia Mineira de Letras, Rogério de Vasconcelos Faria Tavares, Comunico-lhe o interesse e cordialmente lhe solicito a inscrição como candidato à vaga aberta com o falecimento do ilustre acadêmico e embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima. Siga o protocolo, informa-me o Senhor Presidente.


Escrevi e assinei as cartas formais em que comunicava às Senhoras e aos Senhores Acadêmicos a minha inscrição. A querida colega Antonieta Cunha deve lembrar-se. Em resposta à solicitação de voto, incentiva-me com carinho e gentileza, e acrescenta: “Minha única pergunta, que deve ser de muitos: por que só agora?”.

Perdoe-me, cara colega, se cito a frase que traduz a justa curiosidade dos acadêmicos. Cito também a frase que lhe escrevi em resposta, frase aparentemente enigmática, não fosse eu admirador de Machado de Assis. No dia 16 de setembro de 2021, deve lembrar-se, eu lhe disse:


“Eu entendo que a oportunidade aberta pelo Acaso seja intrigante e que desperte a curiosidade dos acadêmicos”.


O Acaso. Tudo o que realmente acontecia foi dito às Senhoras e Senhores acadêmicos. Ao atender tardiamente a convocação implícita nos telefonemas dos amigos e de alguns dos futuros companheiros de Casa, estava subjugado pelo desamparo existencial. Publicamente, ilumino hoje as circunstâncias familiares que, por obra do Acaso, abriram a oportunidade de não repetir em tom pessimista o verso do genial poeta mineiro, “Minas não há mais”.


Minas há. Abro a minha fala de posse com a descrição do meu inesperado e decisivo impulso, a fim de poder concluir que sento na cadeira de número 13 da Academia Mineira de Letras, ocupada no passado por ilustres e insignes figuras da história e da cultura mineira, por obra e força do intrigante e enigmático Acaso, e graças ao generoso voto das Senhoras e dos Senhores Acadêmicos, a quem dirijo o meu mais sincero e afetuoso agradecimento.


Compete-me agradecer também a todas e a todos os conspiradores do bem. Menciono três deles, que achei justo me acompanhassem neste ritual de posse, o Wander Melo Miranda, o  ngelo Oswaldo e a Maria Esther Maciel.


Na velhice carioca, tenho a cadeira simbólica, onde sentar. Tenho a casa, onde descansar o corpo. Tenho também a cidade que me fala da juventude.


No entanto, é menos por valor da obra pessoal e por merecimento próprio que aceito permanecer de pé, e ao lado da cadeira que tem como patrono o historiador Xavier da Veiga e como fundador, o escritor Carmo Gama, autor do fascinante relato Quilombolas de Minas Gerais. E tem como sucessores, o romancista Godofredo Rangel, de minha predileção e admirado pelo meu mestre Autran Dourado. Ainda o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Antonio Moraes, defensor das ideias revolucionárias que redundarão na criação da SUDENE pelo economista Celso Furtado. E o professor e jurista João Franzen de Lima, cujo neto, o notável ator de teatro e poeta Paulo Augusto, foi um bom amigo na juventude, e o já citado Embaixador Flecha de Lima.


Espero não contrariar as suas expectativas!


Nos poucos anos que me faltam ou me restam, desejo representar nesta Casa, de pé e em ações, uma geração de jovens escritores, artistas e universitários rebeldes, inteligentes e imaginosos, que nos anos 1950, se reúnem por interesse comum e amizade espontânea em torno da revista Complemento. Nenhum ser humano é uma ilha porque, na qualidade de cidadã ou de cidadão, pertencemos ao fantástico arquipélago que nos soma e afetuosamente nos ata, para constituir a atual Nação democrática brasileira.


Primeiro, citarei os nomes dos habitantes da pequena ilha que represento, para em seguida mostrar onde e como nos associamos a outras ilhas de jovens e nos tornamos o mini arquipélago das Minas Gerais, responsável pelas várias e diferentes manifestações de arte, de cultura e de saber-universitário que aqui se deram na década de 1950 e na seguinte.


Na Academia Mineira de Letras, ao meu lado, estão presentes na ausência: o Teotônio dos Santos Júnior, sociólogo, o Maurício Gomes Leite, crítico de cinema e cineasta, o Ary Xavier, poeta, o Ezequiel Neves, ator e produtor musical, o Pierre Santos, poeta, e o Heitor Martins, crítico e professor universitário. Vieram coabitar a pequena ilha de Complemento: o Ivan Angelo, escritor e jornalista, o Flávio Pinto Vieira, crítico de cinema, o Augusto Degois, cenógrafo do Teatro Experimental e tapeceiro, o Frederico Moraes, crítico de arte, e a artista plástica Wilma Martins, sua esposa.


No pós-guerra e nas províncias ultramarinas, a arte mundial privilegia o cinema, como no restante do século e ainda hoje privilegiará a música popular. Na época de JK, somos os filhos bastardos do cinema. Somos só espectadores entusiastas, fieis e críticos. O incansável Raimundo Fernandes supervisiona as exibições de filmes aos associados do Centro de Estudos Cinematográficos, o CEC. Cedido pela Cinemateca de S. Paulo, o filme clássico ou o atual de valor artístico viaja em cópia de 16 mm até Belo Horizonte e atrai aos jovens e aos mais velhos no amor à Sétima Arte. E também, sub-repticiamente, motiva a busca de diálogo crítico e o exercício da amizade em torno da cestinha de pães-de-queijo na Camponesa.


No CEC, a ilha Complemento busca chegar à competência para ficar à altura do mini arquipélago mineiro. Tornamo-nos companheiros da gente de teatro, liderada pelo Carlos Kroeber, o Carlão, e pelo nosso confrade, o médico e ator Jota Dangelo e sua esposa, Maria Amélia, e performada pela Magda Lenhard,  pelo João Marschner, a Neuza Maria, a Letícia Mallard, o Sílvio Castanheira, e tantas outras e outros. Lá também, nos associamos ao pessoal da moderna dança clássica, liderado pelo casal Angel e Klauss Vianna, com performances das queridas Duda Machado e Sigrid Hermany, e de dois bons companheiros, o Dedé, Décimo, e o Ricardo Teixeira. A amizade intelectual se estendeu aos artistas plásticos, muitos deles oriundos da “escola do Guignard”, como dizíamos coloquialmente.


A cada noite de sábado, tínhamos os olhos fixos na tela, que podia ser um lençol branco esticado na parede. Ao se incorporar a outras ilhas cidadãs, o grupo Complemento se ampliava e reganhava autenticidade própria.


Essa vivência solidária e boêmia, expressa pelo trabalho pessoal e pelas várias e diferentes manifestações artísticas, agrupava pessoas duma única faixa etária, a da promissora juventude. Não havia lugar para a soberba, o egoísmo ou a vaidade; somos, os jovens, os “passarinhos”, como nos apelida carinhosamente o José Nava (irmão do Pedro). Somos os passarinhos que nos alimentamos do alpiste cultural que nos é atirado pelas palavras dos mais velhos e sabidos.


Permitam-me que afunile a multidão dos coroas, sabidos e notáveis profissionais dos anos 1950, entre eles os críticos de cinema Fritz Teixeira de Salles, Cyro Siqueira e João Etienne, e ainda o arquiteto Sílvio de Vasconcellos e o eterno prefeito de Diamantina, Sílvio Felício, tio do querido Alexandre Eulálio, permitam-me, pois, que afunile para focar simbolicamente os dois mentores que complementam a minha formação artística e cultural interiorana. Refiro-me ao mais culto e silencioso dos poetas mineiros, Jacques do Prado Brandão, e ao insigne historiador Francisco Iglésias, cujo centenário de nascimento se comemora neste ano.


O Jacques supre a minha opção pelo estudo da imagem-em-movimento com o incentivo à leitura da palavra-que-puxa-palavra em páginas e mais páginas de romance, poesia ou ensaio. Empresta-me livros da sua biblioteca e me introduz ao básico e ao melhor que a Literatura e a Filosofia podem municiar-me para o restante da vida profissional. Já o Iglésias puxa a orelha do rapazinho empolgado e estudioso que analisa o texto e se esquece do contexto. O contexto, ensina-me ele, é o saber que se adquire no estudo das Ciências sociais, em especial da História brasileira e universal. Não serei mais o só aluno de Letras.


Cinco décadas mais tarde, esse saber das Ciências sociais se soma ao da Literatura e me autoriza a formatar a antologia Intérpretes do Brasil, três volume com perto de cinco mil páginas em papel bíblia. Lá estão reunidas e prefaciadas onze obras-primas do pensamento brasileiro, de Joaquim Nabuco ao meu bom colega e amigo, Florestan Fernandes. Nabuco é prefaciado pelo Iglésias, eis a mínima homenagem que, pouco antes de ele falecer, lhe presto.


Permitam-me, pois, representar nesta Casa tanto os jovens como os nossos mestres que cá não estão, porque julgo que eu tenha assumido no Brasil e no estrangeiro o sonho da juventude mineira nos anos 1950, para nunca o trair. Quero ter Belo Horizonte na velhice para nela desentranhar o perfil do jovem que começa a sua formação educacional há exatos 66 anos, em 1957, ao tomar o elevador do edifício Acaiaca e descer no vigésimo andar, já inscrito na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 1960, já diplomado, tomo o ônibus para o Rio de Janeiro, onde me especializo em literatura francesa. E em outubro de 1961, embarco no navio que me leva aos bancos escolares da Sorbonne.


Sinto que minha formação educacional tenha sido inconscientemente endossada por versos do eterno Carlos Drummond. Cito-os: “Meus olhos brasileiros sonhando exotismos. / Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo. / Os cais bolorentos de livros judeus / e a água suja do Sena escorrendo sabedoria” (“Europa, França e Bahia”).


A espinha dorsal da vida profissional, que desentranho nos anos da juventude, é nítida e mais e mais me aproxima do chamado público, em virtude de eu associar o ensino à crítica literária e cultural, e os dois à criação propriamente literária. Professor, crítico e romancista. Há que lembrar que a sobrevivência na tumultuada e já longa vida cotidiana formata um corpo físico em contradições e experiências de fragmentação da personalidade, experiências que desnorteiam, entontecem e enriquecem a estabilidade necessária ao bom cumprimento da vida profissional.


Ainda que a mente esteja de posse de boa e ampla formação cultural, não é fácil esboçar o corpo físico correspondente, que se desloca pela geografia do planeta em semelhança ao nômade no deserto do Saara. O nômade que vos fala caminhou em busca de algo que talvez seja menos o sucesso na vida que uma espécie de sina atávica, a sinalizar a busca da sobrevivência em luta contra as suas imposições. As coisas do saber são muito abstratas e salvadoras, enquanto as coisas do viver são por demais materiais e autodestrutivas.


O mistério do saber se cruza com o mistério do viver e ambos explodem o corpo em performances íntimas e atuações públicas, nas quais se torna intrigante apreender o claro enigma de que é construído o conhecimento humano e a prática do social, do político e do econômico, ou esse outro enigma, só obscuro, o do viver – ou seja, o da convivência diária do saber com o sabor da vida herdado do deus Dionísio.


Não há que ressaltar o eterno aluno nem o professor que já se aposentou, não há que ressaltar o ensaio crítico universitário nem a escrita artística, não há que ressaltar solidão humana nem companheirismos com os indígenas Pueblo, os Black Panthers ou os porto-riquenhos, não há que ressaltar a teoria ou a práxis, não há que ressaltar o trabalho absurdo nem o prazer compensador, não há que ressaltar a entrega ao difícil nem a submissão ao fácil, não há que ressaltar a conquista nem o desastre. Não há que ressaltar dor nem paixão. A noite é mais profunda do que pensava o dia. Todo saber e todo prazer ambiciona a eternidade, e sempre se frustra ao meio do caminho.


E a ambição teria se frustrado precocemente, caso não tivesse recebido dois apoios substantivos em diferentes situações difíceis da carreira profissional e da vida. 


No ano de 1962, quando o futuro miserável do bolsista em Paris se anuncia, o Heitor Martins me escreve dizendo que havia um posto livre para o ensino da literatura na Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Candidatei-me. Em 1974, diante da tenure na cadeira de literatura francesa em Buffalo que, na verdade, passa a significar um muro branco à minha frente, o Affonso Romano de Sant’Anna me escreve. A Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a PUC, está contratando professores de literatura brasileira. Candidatei-me.


Muito obrigado aos dois colegas e a todas e a todos os que confiaram no meu trabalho em sala de aula e lhe deram asas.


Ofereço-lhes, pois, como alimento e como claro enigma obscuro uma vida complexa e autoral, demasiadamente humana, para citar o filósofo Nietzsche, ou demasiadamente literária, para citar o mestre Machado de Assis, ou ainda demasiadamente fragmentada, para citar o poeta Fernando Pessoa.

Nada ressalto nada ostento. Em prato encardido pelos tempos turbulentos que nos tocou viver, entrego-lhes vida e obra que se constituíram no cruzamento de contradições, desencontros, choques e brutalidades, de acertos, equívocos e algum remorso, tudo isso que, no extremo, são afirmações de amor à vida na morte nossa de todos os minutos. Tenho uma sensibilidade permeável aos pequenos atos de loucura que cometo e que, afinal, enobrecem paradoxalmente a minha tímida personalidade humana, política e intelectual.


Na condição demasiadamente humana que me define, onde a obra monta a necessária crítica por terceiros e esta, por sua vez, norteia a autocrítica, é que, apesar do carinho das pessoas amigas e dos colegas de profissão, titubeei em me candidatar a uma cadeira onde pontificam seis ilustres varões mineiros, responsáveis por vidas onde a firmeza da espinha dorsal não se desnorteia nem se entontece pelo sabor do caminhar nômade pelo planeta.


Para não alongar essa fala, recorro de novo ao funil simbólico. Homenageio a todos os meus antecessores nessa cadeira de número 13, discorrendo sobre dois deles. O patrono da cadeira, o historiador Xavier da Veiga, e o acadêmico, a que sucedo, o embaixador Flecha de Lima. Para retomar a diferença entre narradores estabelecida por Walter Benjamin, darei primeiro a palavra ao lavrador, o amante da terra, e depois ao marinheiro, o desbravador de oceanos. O arquivista Xavier e o diplomata Paulo Tarso. A terra natal e a viagem pelo mundo significam vidas e obras mineiras, complementares.


Graças à lição de vida, trabalho e obra que, na atual conjuntura social e política, os acadêmicos Xavier da Veiga e Flecha de Lima nos oferecem, exprimo simbolicamente a honra que norteia meu espírito nesta noite em que me franqueiam a cadeira, a casa e a cidade que fala da juventude.


Primeiro, o arquivista. Que maravilha poder sentar-me na cadeira ocupada por um notável historiador dos pequenos grandes acontecimentos da história mineira, inspirador de um inesquecível conto de Guimarães Rosa, como tentarei demonstrar-lhes. Como não sentir orgulho, como não admirar e até invejar esse intelectual discreto e monumental, já que dedicou a vida ao trabalho incansável – por um lado silencioso e modesto e pelo outro, loquaz e indispensável −, o da arquivística, alicerce insubstituível da obra do grande artista e da análise do pensador genial. O patrono da cadeira de número 13 é o fundador e o primeiro diretor do Arquivo Público Mineiro, situado ali na avenida João Pinheiro, e responsável pelos quatro e fundamentais volumes que compõem a obra Efemérides mineiras, 1664-1897.


O arquivo, segundo um colega argentino que organiza neste mês um colóquio internacional sobre o tema, “é o lugar onde se negociam os significados e a memória comum”. Os fatos históricos existem para ser arquivados com paciência e desarquivados no momento oportuno, se possível com genialidade.


Nesta noite, apresento-lhes evidência da materialidade artística proporcionada pelo trabalho meticuloso e requintado do Xavier da Veiga. Décadas atrás, eu estava perdido diante de um fascinante conto apocalíptico de Guimarães Rosa. “Um moço muito branco”, em Primeiras estórias. O conto se abre por uma data precisa.

Lembre-se, todo o Grande sertão: veredas se desenrola sem menção a uma única data. Trata-se de uma extraordinária alegoria sobre o atraso construído pelo próprio desenvolvimentismo brasileiro. Estranhei a data precisa a abrir o conto. Cito as suas primeira palavras: “Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se os fatos de pavoroso suceder...”. O pavoroso suceder, descrito no conto, foi um terremoto que performava o fim do mundo com linguagem tomada de empréstimo ao Velho Testamento.


O 11 de novembro de 1872 tem de significar um acontecimento concreto e profético, matutei. O evento, os protagonistas e a transcendência apocalíptica do conto não são gratuitos. E devem ser atuais. Não só a data é precisa, também o local. Como chegar ao âmago da criação artística de Rosa? Como chegar à gênese misteriosa do conto e ao sentido da associação da trama histórica mineira à repercussão hoje de amplitude planetária? Quem nos informaria sobre o “pavoroso suceder” no Serro e nos garantiria que a hipótese de leitura de “Um moço muito branco” recobre também os desastres que tornam hoje o meio-ambiente irrespirável, desastres que compete à cidadã e ao cidadão sustar na atualidade?


A resposta é evidente: o Xavier da Veiga. Corro a estante e puxo um dos volumes das Efemérides mineiras, hoje reeditada pela Fundação João Pinheiro e accessível a qualquer um dos presentes, como deve ser todo livro. Abro o volume e vou diretamente à data. Sou tocado pela experiência da epifania, que agora transmito aos presentes.


Nas páginas das Efemérides está impecavelmente descrito o “pavoroso suceder” no Serro, que fascina e ilumina a tal ponto a mente de Guimarães Rosa que ele não só imagina uma narrativa apocalíptica como reproduz textualmente (a expressão é essa mesmo) palavras e expressões do patrono da cadeira 13. Minha homenagem ao patrono arquivista, ao fundador e aos sucessores dessa cadeira é, pois, simples e concreta. E, no plano humano, é profética. Por isso não estarei a trair nem a Xavier nem a Rosa se transcrevo e leio as palavras compartilhadas das Efemérides para apenas recomendar aos presentes, como acréscimo, a leitura – ou releitura − do conto na tranquilidade do lar ou da biblioteca.


Abrimos o arquivo: no Serro em 1872 (e em Brumadinho e em Mariana neste século 21), os mineiros e a humanidade sobrevivem em tempos apocalípticos. Sem mais delongas, quem lhes fala é a voz atemporal e definitiva do patrono da cadeira:


Terremoto e inundação do rio do Peixe. – À noite, pelas 11 horas, ouviram-se no Condato, distrito da cidade do Serro, dois grandes estrondos, quase juntos, e a terra estremeceu: passados 10 a 15 minutos rompeu tão monstruosa enchente como nunca viu-se ali. Houve perda de muitas vidas; além da enchente rolou uma grande montanha, que levou a casa de Antônio Gonçalves e toda a família, composta de 4 pessoas, e de um estrangeiro  que ali pernoitara naquela noite. A uma légua de distância, rio abaixo, se ouviam os gritos, sem que se lhes pudesse acudir, porque, além das águas terem-se tornado um mar bravo, os montes corriam uns por cima dos outros, além dos grandes troncos e madeiras que eram levadas pela corrente e faziam cercas. Em uma vertente do mesmo rio, no lugar denominado ‘Caldeiras’, correram os morros de um e outro lado, ficando o lugar completamente desconhecido: aí Serafim Ribeiro Caldas e sua família foram submersos, uns enterrados até o pescoço, e outros até os ombros, e assim passaram toda a noite, sem poderem salvar uma filhinha, que morreu também enterrada. As terras de cultura, à distância de uma légua, ficaram completamente inutilizadas, e aquele terreno foi reduzido a lapas e rochedos. Outras muitas desgraças ocorreram nesta tempestuosa noite, cuja descrição seria longa e quase impossível aqui darmos. No dia seguinte abrigaram-se na fazenda do finado Severiano Metelo mais de 100 pessoas. Da ponte do rio do Peixe a duas léguas, contaram-se 87 desmoronamentos! As águas subiram mais de 60 palmos acima do nível do rio!”


Consultado o arquivo e lido o conto, descobriremos como o patrono Xavier e o genial Rosa se dão as mãos na representação de Minas no Mundo, ontem e hoje. Um reproduz em minúcias o terremoto em terreno pré-cambriano onde a crosta apresenta alguma fraqueza, e o outro inventa com a imaginação moderna, febril e crítica os desastres ambientais causados e armados pelo homem. Nenhum autor brasileiro, ou estrangeiro, teria feito descrição mais fiel para nós, os humanos, dos desastres que vêm acontecendo nos últimos anos nesse Estado. Os desastres e as mortes causados pela fúria dos elementos, como se dizia então, é hoje a consequência da ferocidade da Natureza que reage à ganância do extrativismo predador e à destruição da harmonia nos reinos mineral, vegetal e animal.


Em determinado momento da sua vida, Sigmund Freud falou das três feridas narcísicas que marcam a história do homem ocidental. A primeira foi imposta por Copérnico quando retirou a Terra do centro do sistema planetário. A segunda foi infligida por Darwin quando disse que o homem descendia do macaco. E a terceira é de responsabilidade do próprio Freud. Afirma ele que a consciência repousa no inconsciente.

Xavier e Rosa profetizam: a humanidade vive hoje uma quarta e mortal ferida narcísica.


Ameaçada de morte prematura, a humanidade está se preparando para sair do palco em que protagoniza o papel de único dominador da natureza. Sai do palco e entrega à Natureza o direito exclusivo de atuação em cena. A Quarta-feira de Cinzas da história da humanidade na Terra será bem outra, não tenhamos ilusão. Só em cena, moribunda e exaltada, a Natureza, com lances e gestos de grande dama ofendida, se dirige à Humanidade, agora a sua espectadora. No centro do palco, ela lhe diz que abomina o trabalho que a destrói.

Faz-lhe, no entanto, uma súplica: que a deixem abdicar da condição de objeto privilegiado das boas e más intenções do ser humano. E acrescenta: sua cura − se há condições para a cura da Natureza na atual edição do planeta − só virá no momento em que o ser humano dela se retirar. Quando? Nunca. Ou amanhã. 


Deixo a Minas profunda e profética do lavrador para abraçar o diplomata que esteve a serviço do Estado brasileiro. A Minas do marinheiro. Dou adeus ao arquivista Xavier e saúdo o embaixador Flecha de Lima, um dos mais representativos da sua geração.


Talvez o tenha elegido para simbolizar os demais antecessores por inesperada coincidência que me chega, ao refletir sobre a carreira profissional do confrade no contexto das belas histórias de acadêmicos que também deixaram Minas, como o Arcebispo de Olinda e Recife. A coincidência permitiu que a sensibilidade artística refletisse sobre outra e importante questão atual, sempre pendente na política brasileira. O embaixador Flecha de Lima, homem pragmático e negociador das coisas brasileiras no estrangeiro, lembrou-me um artista plástico da vanguarda e homem sonhador, o meu grande amigo e um dos mais extraordinários representantes das artes no mundo, o carioca Hélio Oiticica.


Permitam-me uma nova comparação. Como é que, em determinado momento de incontornável atraso no Brasil, causado pela política ditatorial instalada em 1964, o embaixador e o artista perceberam – no entrecruzar do pragmatismo de um e do vanguardismo do outro − que a saída do buraco da violência governamental estava na expansão da nação democrática brasileira pelo mundo. O paradigma da formação do cidadão brasileiro, objeto elaborado pelos maiores pensadores oriundos do Modernismo, estava ficando obsoleto e havia a necessidade de ser suplementado por outra experiência, a da inserção do cidadão brasileiro no mundo. A reflexão sobre a nova experiência ajudaria a retirar o Estado nacional da condição autoritária e persecutória, que se desdobrava no exercício da violência entre irmãs e irmãos.


Teremos de começar a pensar e a agir − como recomenda o irreverente Hélio Oiticica no ensaio “Brasil diarreia”, de 1973, − pela “inserção da linguagem-Brasil em contexto universal”. A nação, se tornada democrática e pacificada, passará a se significar pelo equilíbrio interno e pelo arrojo externo, em suma, pela originalidade da presença da linguagem-Brasil fora do Brasil. A nação democrática brasileira está fadada a ocupar um lugar de destaque no planeta.


Hélio se explica em seguida. Inserir a linguagem-Brasil em contexto universal leva a uma constatação de ordem política. Os problemas locais se tornam irrelevantes se situados apenas e somente em relação a interesses locais. Só não vê quem não quer. E ele conclui: “A urgência dessa ‘colocação de valores’ num contexto universal é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma ‘saída’ para o problema brasileiro”.


A palavra esperançosa do artista genial se deixa recomendar pela atuação pragmática do embaixador, e vice-versa. A missão do Itamaraty se torna indispensável se o chanceler apoiar com persistência uma maior abertura e exposição no mundo da linguagem-diplomática-Brasil, se me permitem a expressão. Flecha de Lima, reconhecido pela capacidade de trabalho e pelo empenho em produzir resultados salientes e mais rápidos, instiga outros colegas a participar de importantes negociações comerciais e políticas nos mais diversos postos em que representam o Brasil.


É sabido de todas e de todos os presentes o nome de quem em 1964 fechou as portas do Brasil e nos isolou do mundo moderno. Também é sabido de todas e de todos o nome de quem há cinco anos trancou as portas do Brasil. Não há que repetir os nomes, por mais necessário que seja. Há que não os esquecer, como recomenda o arquivista Xavier da Veiga. Sabemos também o nome de quem nos anos 1980 reabriu as portas da nação para as diretas-já. Sabemos também o nome de quem nesse janeiro de 2023 as reabriu e quer trilhar o caminho que virá a inserir, pela linguagem-diplomática-Brasil, a nossa pacífica nação democrática no mundo em guerra na Europa.


Na confluência de Xavier e de Paulo Tarso, na similitude entre os vanguardistas Rosa e Hélio, homenageio a todos os acadêmicos, artistas, professores, profissionais, cidadãs e cidadãos que já têm cadeira – ou a merecem – nesta Casa mineira e na história brasileira.


Aos confrades acadêmicos e às pessoas amigas é essa sensação transformadora e saudável, esperançosa também, de estar entre os bons que pensam, pelo conhecimento aliado à pesquisa e à inquietação política, o enorme potencial da nação democrática brasileira, e atuam de modo a concretizá-lo na realidade nossa de todos os dias, é essa sensação gostosa, repito, que gostaria de lhes transmitir e lhes passar nesta noite.


Muito obrigado a todas e a todos pela presença.


 

“Falha da academia está sanada”

 

A cadeira treze da Academia Mineira de Letras tem como patrono o jornalista Xavier da Veiga, antigo senador estadual, fundador e primeiro presidente, em 1895, do Arquivo Público Mineiro, instituição que salvou do esquecimento e da destruição boa parte da documentação provincial e da memória do povo e do território das Minas Gerais. Também foi Xavier da Veiga quem lançou a importante revista do Arquivo. Sob seu patronato, ocuparam a referida cadeira o poeta Carmo Gama; o notável romancista Godofredo Rangel; o célebre orador sacro Dom Antônio Moraes; o jurista e professor João Franzen de Lima, e, finalmente, o Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, na sucessão de quem Silviano Santiago se elegeu, em outubro de 2021, com 35 votos. A candidatura de Silviano foi lógica e natural. A única pergunta que não conseguimos responder, àquela altura, era porque um dos mais completos intelectuais nascidos no estado ainda não fazia parte da Casa de Alphonsus e de Henriqueta. Agora, a falha da Academia está sanada.

 

Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em Literatura e presidente da Academia Mineira de Letras. 

Sobre Silviano Santiago

 

Nascido em Formiga (MG) em 1936, Silviano Santiago tem obra que inclui romances, contos, ensaios literários e culturais. Entre os mais de 30 livros, títulos premiados como “Em liberdade”, “Uma literatura nos trópicos” e, nos últimos anos, “Machado”, “Mil rosas roubadas”, as memórias em “Menino sem passado: 1936-1948” e os ensaios “Genealogia da ferocidade” e “Fisiologia da composição”. Doutor em letras pela Sorbonne e professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF), venceu seis vezes o Prêmio Jabuti. O conjunto de sua produção literária recebeu o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Foi laureado com o Prêmio Camões em 2022. 


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