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"O horror! O horror!"

Livro "Exterminem todos os malditos"", a história do genocídio praticado pelo imperialismo europeu na África e outras regiões do mundo, ganha nova edição


04/11/2023 04:00 - atualizado 03/11/2023 23:36
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Ilustração incluída no livro 'Exterminem todos os malditos'
Ilustração incluída no livro "Exterminem todos os malditos": "A humilhação final""(1898) mostra a submissão do rei africano Prempeh aos europeus (foto: WELCOME COLLECTIONS)

“Exterminem todos os brutos” e “O horror! O horror!” são duas exclamações contundentes perpetuadas pelo clássico da literatura “O coração das trevas” (“Heart of darkness), do escritor britânico-polonês Joseph Conrad (1857-1924). Lançado em 1899, o livro conta a história de Marlow, um aventureiro contratado como capitão de um navio a vapor por uma empresa colonial para resgatar Kurtz, traficante de marfim ensandecido na África, que pronuncia as duas célebres frases em tom enigmático que ainda hoje intriga os leitores. A obra – uma espécie de autobiografia de Conrad na África e considerada racista e colonialista por muitos críticos e leitores comuns –, é a principal referência do escritor e doutor em literatura sueco Sven Lindqvist (1932-2019) em seu livro “Exterminem todos os malditos – Uma viagem a Coração das trevas e a origem do genocídio europeu” (“Utrota varenda jävel”), que detalha o holocausto colonialista mundo afora no século 19 e que acaba de ser relançado no Brasil (editora Fósforo). A obra de Conrad inspirou o filme “Apocalypse now”, adaptado por Francis Ford Coppola para a guerra do Vietnã, com Marlon Brando como Kurtz.

A escravidão e o genocídio de povos originários praticados por portugueses na África e no Brasil e por espanhóis na América Latina ao longo de quatro séculos são hoje fonte de indignação e também de muitos estudos por aqui. “Exterminem todos os malditos” mostra que igualmente cruel foram os imperialismos belga e britânico. Com a justificativa de “civilizar” selvagens, na prática, foi carnificina praticada como política de Estado para eliminar “raças inferiores”, tendo à frente também mercenários e criminosos.

Em 1992, Lindqvist embarcou para a África central e acabou escrevendo essa obra essencial que denuncia a escalada de exploração e morte Congo sob o comando do rei Leopoldo II, já no fim do século 19, quando as principais nações já haviam abolido a escravidão e a maioria das colônias se tornado independentes. É um misto de diário de viagem, investigação histórica e análise literária baseado em fontes primárias e ampla pesquisa. Ele defende a tese de que há relação direta entre a violência colonial contra os povos africanos e o genocídio no continente europeu contra os judeus e outras minorias e que também vai culminar com o racismo contra os negros e outros povos  no século 20.

A cada página, como na trilogia “Escravidão”, do jornalista Laurentino Gomes, sobre a desgraceira promovida por portugueses no Brasil e na África, Lindqvist vai fornecendo detalhes de crueldade que “embrulham” o estômago do leitor sobre como realmente agiram os belgas e os britânicos - embalados pela célebre rainha Vitória, que comandou o maior império não continuo da história. Aqui vão exemplos relatados por Lindqvist. Ele cita uma coleção (“Três anos no Congo” – 1887) escrita por três oficiais suecos que revelam suas experiências no Congo a serviço de Leopoldo. Em seu relatório, o tenente Georg Vilhelm Pagels diz que moral, amor amizade não existem entre os “selvagens”:  “Ele não respeita nada a não ser a força bruta. Toma amizade por estupidez. Sendo assim, não se deve jamais demonstrar amizade a um selvagem.”

Outro exemplo partiu do missionário Edward James Grave, que escreveu em seu diário que os nativos precisavam ser tratados com “total severidade” e que os vilarejos deveriam ser atacados “caso não aceitem trabalhar para o bem da terra”. E dissertou: “Não é nenhum crime, mas bondade obrigá-los a trabalhar (…) Os métodos empregados são duros, mas o convencimento não basta para lidar com o nativo, é preciso governá-lo pela violência”.

Lindqvist relata também que ao voltar ao Congo anos depois, Grave ficou chocado com a brutalidade. Ele diz: “O chicote de couro de hipopótamo, especialmente quando novo, torcido como saca-rolhas e cortante como faca, é uma arma terrível, e o sangue escorre já com poucas chibatadas (…) É ruim o bastante quando homens são açoitados, mas pior ainda é o castigo aplicado a mulheres e crianças (...) Acredito que quem recebe 100 chibatadas chega perto da morte e vê-se destruído pelo resto da vida. (…) Antigamente, os nativos eram bem tratados, mas agora expedições foram lançadas em todas as direções para obrigá-los a fazer borracha. O Estado adota essa política odiosa a fim de fazer lucro”. Grave se referia ao monopólio dos belgas sobre o comércio de borracha e marfim, que aumentou a exploração e a atrocidade sobre sobre nativos.

INIMIGOS INVISÍVEIS

Tão terrível ou pior dos que os chicotes e outros meios de tortura nos castigos físicos foi o avanço armamentista dos europeus no século 19 que os tornou “invisíveis” diante dos nativos,  exterminados sem nem sequer enxergar os invasores. Os mosquetes de pouco alcance foram substituídos pela produção em grande escala de canhões e metralhadoras. Lindqvist sustenta que a Europa pré-industrial não tinha muito a oferecer ao mundo além do seu principal “produto” de exportação: a violência. Era vista apenas como um povo guerreiro, como tártaros e mongóis.
    
Ele diz que os chineses, depois de inventar a pólvora no século 10 e o canhão em meados do século 13, se sentiam seguros em seu canto do mundo e abdicaram da corrida armamentista. “Foi assim que a Europa atrasada e pobre em recursos naturais que existia no século 16 passou a ter o monopólio sobre embarcações armadas capazes de espalhar morte e destruição mesmo a enormes distâncias. Os europeus tornaram-se os deuses dos canhões e passaram a matar antes mesmo que as armas dos inimigos pudessem atingi-los. Trezentos anos depois esses deuses dos canhões haviam conquistado um terço do globo terrestre.”

DARWIN NA ARGENTINA

Lindqvist mostra também em “Exterminem todos os malditos” como surgiu a pseudociência da superioridade racial dos brancos europeus para justificar a exploração, a escravização e o genocídio de povos originários, inclusive se aproveitando da então recente teoria da evolução das espécies, lançada em 1859 por Charles Darwin. Abusando da “seleção natural”, começou a ser difundido que as espécies mais fracas – no caso os negros – são aniquiladas pelos mais fortes – brancos. O autor sueco cita o livro “África Selvagem” (“Savage Africa – 1864), de ”William Read, membro da Sociedade Antropológica de Londres, que faz uma previsão sobre o futuro da raça negra. Lindqvist conta: “Depois de Darwin, a atitude sábia passou a ser dar de ombros para o genocídio. (…) A África será dividida entre a Inglaterra e a França, ele afirma. Sob o comando europeu, os africanos passariam a construir diques para irrigar o deserto. Seria um trabalho árduo, e os africanos provavelmente seriam exterminados. 'Esse tipo de resultado deve ser encarado de maneira sóbria. Esse é um exemplo de lei benéfica da natureza, segundo a qual os fracos são aniquilados pelos fortes'. Um mundo repleto de gratidão deveria honrar a memória dos negros”.
   
Lindqvist cita ainda o genocídio nas Américas, dos EUA ao sul da Argentina. “Nas partes mais remotas da América do Sul, a conquista europeia ainda não estava completa quando Darwin chegou [à Argentina] em agosto de 1832 [depois de passar pelo Rio de Janeiro e se enojar com o regime escravista que viu – passagem não citada no livro de Lindqvist]. O governo argentino havia acabado de decidir que exterminaria os nativos que ainda dominavam os Pampas. A tarefa foi confiada ao general Rosas. Darwin encontrou o general e suas tropas às margens do Rio Colorado e concluiu que jamais havia se reunido um exército mais abjeto de bandidos. Em Bahia Blanca, ele viu mais tropas, cheias de homens embriagados, manchados de sangue, sujeira e vômito”, conta Lindqvist.
  
 “Em 1871, quando Darwin publicou 'O origem do homem', a caça aos nativos estava ainda em pleno vapor na Argentina. Tudo financiado com títulos públicos. Quando os indígenas foram exterminados, as terras foram divididas entre os credores. Cada título garantiu ao proprietário 2.500 hectares”. Começou assim o apagamento dos povos originários na história da Argentina e até os dias de hoje fica no imaginário popular a ideia de que não existiam indígenas e negros por lá. 

“Exterminem todos os malditos – Uma viagem a Coração das trevas e a origem do genocídio europeu”
• Sven Lindqvist
• Tradução de Guilherme Braga 
• 248 páginas
• Editora Fósforo
• R$ 89,90 (e-book: R$ 59,90)

Trecho 

(De “Exterminem todos os malditos”,  a história do genocídio praticado pelo 
imperialismo europeu na África e outras regiões do mundo)

“Kurtz, o protagonista de Coração das trevas, termina o relatório sobre a tarefa civilizatória dos brancos em meio aos selvagens da África com um pós-escrito redigido à mão que resume o conteúdo real de toda a retórica: 'Exterminate all the brutes' (…). Por anos imaginei ter encontrado a fonte do 'exterminate all the brutes' de Conrad no grande filosófo liberal Herbert Spencer. Em 'Social estatics' ('Estática social' – 1850), ele escreve que o imperialismo prestou serviços à civilização por ter varrido as raças inferiores da face da Terra. 'As forças que operam no grande projeto de felicidade completa, sem atentar para o sofrimento de caráter secundário, exterminam (exterminate) todas as parcelas da humanidade que se põem no caminho (…) humano ou besta (brute) – o obstáculo precisa ser removido'. Esse trecho encerrava toda a retórica civilizatória de Kurtz, bem como as palavras chave 'exterminate ' e 'brute', e ademais o homem era tratado ao mesmo tempo como animal e objeto de extermínio. (…) Logo descobri que Spencer não estava sozinho de forma nenhuma nessa visão de mundo. Era uma ideia comum e tornou-se cada vez mais comum na segunda metade do século 19.”


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