No meio da pandemia, entre 2020 e 2021, Adriana Calcanhotto recebeu um presente mais do que especial: o violão que havia sido de Orlando Silva (1915-1978), o “cantor das multidões”. Mais surpreendente que o presente em si foi a descoberta de que Orlando usava a mesma afinação que ela havia adotado há pouco tempo.

“Alguns anos antes da pandemia, eu vinha trabalhando com o violão afinado meio tom abaixo da afinação normal, porque os graves e o bordão ficam mais gordos. É uma afinação que Dorival Caymmi usava e também o Los Hermanos”, explica Adriana.

“Aí, quando esse violão (do Orlando) chegou para mim, intacto, praticamente novo, vi que ele chegou afinado em Mi Bemol, justamente a afinação que eu usava. Aí, falei: ninguém mexe nesse violão, ele seguirá afinado como está e não se fala mais nisso (risos)”.

Adriana Calcanhotto cobre um de seus olhos com uma rosa vermelha

Adriana Calcanhotto conta que compôs as músicas do novo disco em violões que pertenceram a Orlando Silva e a Nara Leão

Leo Aversa/Divulgação


Foi no violão de Orlando Silva que Adriana compôs metade das 11 canções de “Errante”, álbum de inéditas que ela lança nesta sexta-feira (31/3) nas plataformas digitais. As outras canções, foram compostas no violão que pertenceu a Nara Leão e que também está sob os cuidados de Adriana.

“Errante” é um disco poético e repleto de referências que a artista buscou na literatura - é possível encontrar alusões que vão de Lygia Clark a Oswald de Andrade. A sonoridade, no entanto, é o que Adriana chama de polirrítmica, um resultado da junção de samba, samba-reggae e funk.

Samba

As faixas contam com arranjos cheios. Mas, “se você tirar tudo isso, vai ver que, no fundo, é um samba, mesmo que eu não tenha gravado como samba”, afirma a cantora e compositora, observando que o ritmo está muito mais evidente nesse disco do que em “Micróbio do samba” (2011), que, conforme ela mesma classifica, “é mais pro lado do samba”.

“No ‘Errante’, algumas coisas eu toquei com minha batida de samba, e a banda tocou outra coisa. Coube, encaixou. Isso foi maravilhoso, porque deixa a música com mais camadas”, ressalta.

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O nome e o design da capa do álbum, elaborado a partir de carimbos de vistos e fotos de passaportes de Adriana, sugerem que o tema abordado nesse novo trabalho da gaúcha é o vagar, andar sem rumo. 

Contudo, ao olhar mais atento, as letras das canções que integram “Errante” não se limitam à ideia única de perambular. A primeira faixa, “Prova dos nove”, por exemplo, já sugere isso no verso “em tudo o que faço sou não mais do que impostora”, conferindo o sentido de se equivocar ao verbo errar.

O verso final da canção dá a deixa para o que vem adiante. “A alegria é a prova dos nove”, canta Adriana, fazendo referência ao modernista Oswald de Andrade (1890-1954) para anunciar que as próximas músicas seguirão uma toada que transita entre a felicidade e a melancolia, de modo que, no fim, é alegria o que deve prevalecer. 

Otimismo

A felicidade, no entanto, não se mostra em arranjos expansivos e acordes maiores, e sim nas letras que, mesmo ao tratar de decepções, fazem isso do ponto de vista positivo. A artista deixa claro que términos de relacionamento não são o fim do mundo.

“Eu vou deixar a minha solidão sozinha e caminhar/ Que o caminho é feito daquilo que se andar”, canta Adriana em “Pra lhe dizer”. E, em “Quem te disse”, indaga: “Quem te disse que o amor vê diferenças?”.

A dor da perda de um grande amor não é negligenciada, contudo. “Foi comprar cigarro/ Voltou de cabelo molhado/ Levou para o samba a minha fantasia / De ser feliz um dia”, são os versos de “Levou para o samba minha fantasia”. 

E em “Era isso o amor?”, a artista questiona: “Era isso o amor?/ Era isso?/ Arder, arder, arder, queimar e/ Retirar-se sem aviso”. 

Compositora

Embora seja seu 13º disco, todo o processo de produção de “Errante” foi novidade para Adriana. “Eu tinha um material inédito como compositora que nunca tive antes”, revela, lembrando que, antes de ir para o estúdio, estava com 18 canções prontas.

Isso não seria motivo de nota, caso Adriana não tivesse revelado em 2004 que considerava um sofrimento o processo de compor.

“Compor não é mais sofrido. Fui gostando ao longo do tempo. E, depois, quando passei a dar aula de composição musical na Universidade de Coimbra, minha relação com a composição mudou, passei a compor muito mais. É o mesmo processo, porque eu ainda levo dias, meses, ou anos atrás de um verso ou uma sílaba, mas é com prazer que eu faço isso”, garante.

Outra novidade para ela na produção de “Errante” foi o tempo entre a gravação e o lançamento. Acompanhada dos músicos Alberto Continentino (baixo, piano e lira), Davi Moraes (guitarra e violão) e Domenico Lancellotti (bateria e percussão), ela gravou as canções em 2021, mixou-as e masterizou-as em 2022, e lança o disco neste 2023.

O processo de gravação também foi diferente do habitual. Os músicos se hospedaram por nove dias no estúdio Rocinante, isolado em Araras (RJ), para registrar as faixas. 

“Nesse tempo, fui entendendo o que o disco era. Ele não parte de uma ideia pronta. Pelo contrário, fui achando o recorte dele, tirando canções que eram (espécie de) gordurinhas”, revela. Assim, das 18 músicas, entraram 11.

Faltava só o nome do álbum. “Demorei e penei muito para achar o nome ‘Errante’”, admite Adriana. “Isso também foi uma novidade para mim, porque muitas vezes eu fiz um disco que já tinha um nome planejado muito antes.”

Adriana está em turnê com o show “Gal: Coisas sagradas permanecem”, em homenagem a Gal Costa (1945-2022). Ela se apresenta na capital mineira em 7 de maio. Quando terminar a turnê de “Gal”, em meados de junho, Adriana dará início aos shows de divulgação de “Errante”.

A cantora ainda não sabe dizer com precisão as cidades em que vai apresentar a nova turnê. Mas o público releva. Afinal, fechar esse itinerário não deve ser tarefa fácil para quem, por natureza, é errante.

FAIXA A FAIXA

• "Prova dos nove"
• "Larga tudo"
• "Quem te disse"
• “Levou para o samba a minha fantasia"
• "Era isso o amor?"
• "Lovely"1
• "Jamais admitirei"
• "Reticências"
• "Para lhe dizer"
• "Horário de verão"
• "Nômade"
Todas as músicas são de autoria de Adriana Calcanhotto
 
Adriana Calcanhotto em foto de documento na capa do disco Errante

Adriana Calcanhotto em foto de documento na capa do disco Errante

Reprodução
 

“ERRANTE”

• Álbum de Adriana Calcanhotto
• 11 faixas 
• Disponível nas plataformas digitais