Beth Carvalho e Nelson Cavaquinho se abraçam e sorriem um para o outro

Beth Carvalho com Nelson Cavaquinho, seu compositor favorito, de quem gravou vários sucessos

TV Zero/Divulgação

Sem o cavaquinho, mas com uma filmadora à mão, Beth Carvalho chega a uma roda de samba no bar Bip Bip, tradicional ponto de encontro de músicos, no Rio de Janeiro. Ela atende aos apelos de frequentadores do botequim e volta a lente da câmera para Mário Lago (1911-2002), multiartista que, ao fundo, ouvia uma das canções que escreveu ser entoada com o auxílio de pandeiro, cavaco e bandolim. 

“Beth, olha só, que momento!”, festeja o cantor e compositor Moacyr Luz, também retratado na cena. Enquanto os acordes de “Atire a primeira pedra”, de Lago e Ataulfo Alves (1909-1969), continuam a ressoar, Beth procura, com o zoom da câmera, o folclórico Alfredinho, dono do Bip Bip. Os sambistas Walter Alfaiate (1930-2010) e Dorina são outros a aparecer.

A confraternização abre o documentário “Andança – Os encontros e as memórias de Beth Carvalho”, que estreia nesta quinta-feira (2/2) no cinema. O longa de Pedro Bronz foi montado a partir de imagens feitas pela cantora e por auxiliares, como o motorista Antônio Carlos. 



Durante os 110 minutos do filme, há diversos registros inéditos da carreira da “Madrinha”, que morreu em 2019. Segundo Bronz, a ideia do filme é mostrar “Beth pela Beth”. O processo de confecção do longa começou com uma análise das 2 mil horas de imagens do acervo da cantora, nascida em 1946. A amizade entre a mãe do cineasta e Beth, que se aproximaram na sala de aula do colégio, persistiu até os momentos finais da artista, em que ela ficou internada, acometida, sobretudo, por fortes dores na coluna.

Acervo

 Bronz sugeriu à cantora e compositora utilizar as gravações para construir um documentário. Beth não apenas aceitou, como surpreendeu o diretor ao apresentar um DVD que reunia todos os registros sobre ela encontrados nos acervos da TV Globo. 

A atitude, aliás, faz jus ao apelido “cabeça de museu” que Beth dá a si mesma, a certa altura do longa. “O legal do filme é que você entra em uma viagem. É como se fosse a Beth produzindo um filme da família dela. Ela produziu esse filme. A gente foi lá e deu um ‘lacinho’ final a essa história”, afirma o diretor em entrevista ao Estado de Minas.

"O legal do filme é que você entra em uma viagem. É como se fosse a Beth produzindo um filme da família dela. Ela produziu esse filme. A gente foi lá e deu um 'lacinho' final a essa história"

Pedro Bronz, diretor



Para costurar as diferentes fases da vida de Beth Carvalho, os encontros dela com outros artistas formam o fio condutor. A obra mostra a relação da cantora com nomes da velha-guarda do samba, como Cartola (1908-1980) e Nelson Cavaquinho (1911-1986), mas retrata também o carinho com compositores surgidos depois. 

Não à toa, Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz, descobertos por Beth nas rodas de samba armadas sob a sombra da tamarineira do Cacique de Ramos, costumam chamá-la de Madrinha.

“Ela tem uma coisa fantástica: tomou, quase como uma posição política, a questão de ser uma reveladora de compositores e dar visibilidade a eles. Não só com os caras da antiga, dos quais ela ia ao baú tentar procurar coisas novas, como aqueles que revelou no encontro com o Cacique de Ramos. E continuou fazendo isso até o fim da vida”, diz o jornalista e escritor Leonardo Bruno, roteirista de “Andança”. O título do documentário remete ao primeiro sucesso da cantora, escrito por Paulinho Tapajós, Danilo Caymmi e Edmundo Souto.

Quando começaram a assistir às imagens, lembra Leonardo Bruno, havia a sensação de que a equipe estava diante de uma “mina de ouro”. Começou então o processo de busca pelas grandes pepitas. “A cada suspiro que a gente dava, a cada 'oh!' que fazíamos, a cada olho arregalado quando víamos as imagens, a gente se falava e dizia: ‘Cara, tem isso, aquilo, vê ‘tal’ fita’”, conta.

Em meio às constantes expressões de incredulidade e interjeições de espanto, foi possível descobrir pérolas como a gravação original de “Folhas secas”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito (1922-2006), e versões ao violão de “O mundo é um moinho” e “As rosas não falam”, clássicos de Cartola. 

As três canções dos baluartes mangueirenses foram regravadas por Beth — também tida como ícone da Estação Primeira de Mangueira. “Ela pode até ser considerada uma madrinha de Cartola e Nelson, no sentido de releitura da obra deles”, comenta Bronz.

Visionária

As imagens reveladas pelo filme começam em 1969, com fragmentos de vídeos feitos pela artista em uma viagem à Europa. Nos registros, a botafoguense Beth Carvalho aparece, ainda, preparando-se para dar à luz Luana, produtora associada do documentário e estrela de versos improvisados feitos por Nelson Cavaquinho, definido pela artista como “o maior compositor do mundo”. 

O último show, feito em 2018, no qual Beth cantou deitada num sofá por causa das dores na coluna, também está contemplado. Para o diretor, ela foi uma “visionária” ao retratar diversos momentos da própria vida. 

Beth começou a gravar cenas do cotidiano com uma câmera super-8, formato comum nos anos 1960. Foi evoluindo, lado a lado com a tecnologia do cinema, e, nos últimos anos, usava o celular para fazer os vídeos. Uma câmera telefônica, aliás, é o que capta uma das últimas músicas compostas por Arlindo Cruz antes do acidente vascular cerebral (AVC) sofrido em 2017. “Anjos de branco”, escrita a pedido de Beth, foi pensada para homenagear as enfermeiras que cuidavam da Madrinha.

"A cada suspiro que a gente dava, a cada 'oh!' que fazíamos, a cada olho arregalado quando víamos as imagens, a gente se falava e dizia: 'Cara, tem isso, aquilo, vê tal fita'"

Leonardo Bruno, produtor



A relação de Beth com o carnaval das escolas de samba é outra seara da vida contemplada no documentário. Chamada de “Túnel Rebouças” pelo jornalista Sérgio Cabral, por causa da capacidade de conectar diversos setores sociais, assim como a alça de acesso entre as zonas Sul e Norte carioca, a cantora foi tema do primeiro desfile da Marquês de Sapucaí. Em 1984, passou pela pista como enredo da Unidos de Cabuçu. 

Trinta e três anos depois, voltaria à passarela pela Alegria da Zona Sul — isso sem contar as homenagens feitas pela Acadêmicos do Tatuapé, em São Paulo, e pela Botafogo Samba Clube, em 2020, no Rio. Em meio aos diversos personagens presentes no filme, há dois nomes que ajudam a explicar a história das escolas de samba: Therezinha Monte, presidente da Cabuçu nos anos 1980 e precursora na escolha por homenagear personalidades vivas; e Fernando de Lima, reconhecido pelos pares por ser dono de uma das canetas que mais assinaram letras de sambas de enredo.

“ANDANÇA – OS ENCONTROS E AS MEMÓRIAS DE BETH CARVALHO”
(Brasil, 2023, 110min) Documentário. Direção: Pedro Bronz. Estreia nesta quinta (2/2), no Cineart Shopping Cidade (Sala 4, 16h10)

Beth Carvalho, de vestido amarelo, canta em roda de samba

A cantora em roda de samba. Registro está no documentário e faz parte do acervo de 2 mil horas reunido pela artista

TV Zero/Divulgação

CANTORA ERA FÃ DE POLÍTICA

Apoiadora de Leonel Brizola (1922-2004), fundador do PDT e ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, Beth foi presença constante em comícios das Diretas já. “Virada”, música de Noca da Portela gravada por ela, costumava ser entoada pelos que iam às ruas exigir a efetiva redemocratização do país, com a retomada das eleições diretas. 

“Quando ela grava ‘Virada’, se sente muito parte daquilo, fica muito realizada com a dimensão que a música toma, como hino das Diretas – e muito importante no processo de reabertura”, afirma o produtor Leonardo Bruno. A canção marcou também a trajetória política do mineiro Tancredo Neves (1910-1985), que a usou em 1982, quando disputou o governo do estado pelo PMDB e venceu Eliseu Resende (PDS). 

Além da veia trabalhista, Beth também se aproximou da ex-presidente Dilma Rousseff, que, antes de filiar-se ao PT, passou pelo PDT. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a se corresponder com a Madrinha durante o período em que esteve preso em Curitiba.

O líder cubano Fidel Castro (1926-2016) também ganhou a admiração da artista. “Ela era uma pessoa de esquerda antes de a gente falar ‘esquerda’. Antes de ficar fácil ver os campos políticos, ela já se definia como de esquerda”, diz Pedro Bronz. “Era política na relação com as gravadoras e os compositores, sempre tentando puxar a bola para eles”, observa.