De roupas brancas, Júnior Itaguaí, Ademir Batera, Bira Presidente, Sereno e Márcio Alexandre sorriem para a câmera. Eles formam o grupo Fundo de Quintal

Júnior Itaguaí, Ademir Batera, Bira Presidente, Sereno e Márcio Alexandre levam adiante a história do Fundo de Quintal

Facebook/reprodução

Jornalista, produtor, roteirista e diretor de shows, Marcos Salles foi escolhido por unanimidade pelos integrantes do Fundo de Quintal para escrever a biografia do grupo. O título “O som que mudou a história do samba” faz justiça à banda. Afinal de contas, com seu repique de mão e banjo, ela trouxe nova sonoridade para o mais brasileiro dos gêneros musicais.

Com 448 páginas e muitas fotos, “Fundo de Quintal – O som que mudou a história do samba” (Malê) é fruto de 161 entrevistas realizadas pelo jornalista. Formado na década de 1970, por lá passaram Arlindo Cruz, Almir Guineto (1947-2017), Ubirany (1940-2020), Sombrinha e Jorge Aragão, entre outros bambas.

Tudo começou em Ramos

O grupo surgiu nas rodas de samba do bloco carnavalesco carioca Cacique de Ramos, criado em 1961 por Bira Presidente, seu irmão, Ubirany, e Sereno. No livro, Salles conta a história dos instrumentos usados inovadoramente pelo grupo, destaca a importância da cantora Beth Carvalho, a “Madrinha”, e detalha as várias formações, com 19 músicos.

O biógrafo convive com o Fundo de Quintal desde 1984, quando foi lançado o LP “Seja sambista também”. Foram 116 horas de gravações em três anos e 11 meses de trabalho, além de quase dois de espera, por causa da pandemia.

Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Rildo Hora, Leci Brandão (autora da apresentação do livro), Anderson Leonardo, Elza Soares, Jairzinho, Líber Gadelha, Milton Manhães, Mauro Diniz, Nei Lopes, Ricardo Cravo Albin e Túlio Feliciano são alguns dos entrevistados.

Marcos Salles diz que convive com os músicos há tanto tempo que nem precisou pesquisar para criar o roteiro. “Escrevi a contracapa e o encarte do LP ‘Seja sambista também’, coordenei a produção do LP ‘Divina Luz’, lançado em 1985, o primeiro a conquistar o disco de ouro”, comenta. Ele também dirigiu a temporada no Asa Branca, casa de shows da Lapa carioca, em 1992.

Fundo de Quintal é capítulo fundamental da história da música brasileira. “Além de trazer de volta a cultura dos pagodes – que Bira, Ubirany, Sereno, Neoci e Sombrinha aprenderam com os pais em casa –, o grupo introduziu instrumentos no samba. Sereno adaptou a tambora dos conjuntos de bolero para seu tantã, Ubirany criou o repique de mão, e o Almir Guineto entrou com o banjo. A partir daí, mudou a forma de compor e cantar samba”, afirma o jornalista.
 
Beth Carvalho sorri, ao centro de roda de samba com vários músicos

A "Madrinha" Beth Carvalho apresentou o Fundo de Quintal ao Brasil

Acervo Fundo de Quintal
 

Um capítulo para a 'Madrinha'

A cantora Beth Carvalho (1946-2019) ganhou capítulo à parte no livro. Levada à quadra do bloco Cacique de Ramos por Alcir Capita, jogador do Vasco da Gama, ela apresentou o Fundo de Quintal ao Brasil. Beth levou o grupo pela primeira vez a um estúdio, gravou com ele e o indicou à gravadora RGE. Também se apresentava na TV ao lado do Fundo de Quintal.

Salles conta que a ideia do livro surgiu em 2017, quando ele fez a proposta a André Tomassini, empresário da banda na época. “André até me mostrou uns quatro ou cinco e-mails de pessoas que queriam fazer o livro e eles brecaram”, lembra Salles.

“Quando falou no meu nome, foi unanimidade. Passei a conversar com todos e a montar o esquema para lançar a biografia. Primeiro, fiz o livro, e depois fui à busca de editoras. Encontrei a Malê, que topou fazer o projeto.”
 
 

O jornalista explica a origem do nome da banda, que participava, às quartas-feiras, do pagode do bloco Cacique de Ramos. “É bom esclarecer: o nome de tudo aquilo que faziam lá no Cacique e se espalhou pelo Brasil é pagode. Ou seja, pagode é o nome da festa, não do gênero musical. Significa encontro, que era o que acontecia lá no Cacique”, diz

A partir daqueles encontros, os pagodes se estenderam às casas das pessoas. “Valdomiro, técnico da gravadora TapeCar, sugeriu o nome Fundo de Quintal. Ele dizia: ‘Vocês estão sempre no quintal das pessoas, nos aniversários. Este é um nome bom’. Eles gostaram. Isso foi no dia 26 de junho de 1976, no aniversário da cantora Elza Soares, na casa dela”, lembra.

“A partir dali, o grupo passou a se chamar Fundo de Quintal. Eles continuaram tocando, mas não tinham planos de gravar disco ou fazer sucesso. Em 1977, a Beth Carvalho gravou com eles”, afirma Salles.

Fundo de Quintal gravou com a “Madrinha” no álbum “Pé no chão”, lançado em 1978. “Só em 1980 eles gravaram o primeiro LP, ‘Samba é no fundo de quintal’, pela RGE. Foi a Beth quem conseguiu o contrato deles. Inclusive, até pediu para o pessoal da RGE aumentar os royalties.”

Milton Manhães, integrante do Cacique de Ramos, assinava a produção. Ele também fazia parte da turma que se apresentava em aniversários e nos quintais das residências. “Milton enveredou pela produção e acabou produzindo os cinco primeiros discos do Fundo”, conta Salles.

O biógrafo destaca a importância dos primeiros álbuns. “O repertório deles já fazia a carreira de qualquer cantor. O Rildo Hora entrou somente em 1986, no disco 'Mapa da mina'.”
 
Ubirany, Délcio Luiz, Bira Presidente, Ademir Batera, Ronaldinho e Sereno, que formavam o grupo Fundo de Quintal em 2012

Fundo versão 2012: Ubirany, que morreu de COVID em 2020 e inventou o repique de mão, com Délcio Luiz, Bira Presidente, Ademir Batera, Ronaldinho e Sereno

Acervo pessoal
 

Tantã, banjo, repique e tambora

O tantã, o repique e a tambora passaram a fazer parte do grupo no início dos anos 1970. “Ubirany criou o repique em 1970, pouco depois de Sereno adaptar a tambora. Ela já existia nos grupos de bolero e ele formatou para o samba”, explica Salles.

Por volta de 1974, Almir Guineto levou o banjo para o Fundo de Quintal. “Havia a lenda de que ele tocava com afinação do cavaquinho e havia serrado o braço do banjo country para transformar naquele braço pequeno. É tudo mentira. Ele usava a mesma afinação do violão, isso me foi dito pelo Jorge Aragão. Ou seja, ré, sol, si e mi”, assegura Salles.

“O próprio Almir me disse que havia comprado o banjo em São Paulo”, revela o jornalista. “O instrumento já tinha o braço pequeno. Ele começou a tocar banjo não no Cacique, mas em São Paulo, quando fazia parte do Originais do Samba. Chiquinho, irmão dele, e o Mussum, grande amigo dele, o levaram para São Paulo. Como as cordas do cavaquinho arrebentavam muito, Almir preferiu trocá-lo pelo banjo. Levou o instrumento para o Cacique de Ramos e foi aquele sucesso.

Ubirany, o inventor 

Já repique foi criado por Ubirany durante uma festa, informa Marcos Salles. “Brincando com um repinique de escola de samba, ele tirou um dos lados do nylon e, aos poucos, foi adaptando até chegar ao som que ele queria, tocando com os dedos e colocando rebatedor na parte de dentro”, detalha.

“Por ironia do destino, ele nunca registrou essa invenção. Poderia ter ficado milionário, pois quando o Fundo de Quintal surgiu, várias fábricas de instrumentos produziram e venderam repiques a torto e a direito. Ubirany não ganhou um centavo com isso. Para ele, a satisfação de ver que sua invenção deu certo significava mais do que qualquer outra coisa.”

O livro “O som que mudou a história do samba” traz a história dos discos e DVDs do Fundo, mostra quem mais gravou com a banda e traz informações sobre os 19 integrantes das várias formações.

O “segredo” do Fundo de Quintal está em vários pilares, acredita o biógrafo da banda. “Um deles é o repertório fantástico. O outro é que as pessoas saíam, mas a base rítmica, com Bira, Ubirany e Sereno, continuava ali, firme e forte. Além disso, tem os cantores: quando saem Almir Guineto e Jorge Aragão, entra Arlindo Cruz e o Sombrinha começa a cantar. Quando os dois saem, entram o Mario Sérgio e o Ronaldinho. Mário era paulista, mas muito carioca”, comenta.

“Quando Mário Sérgio morre e o Ronaldinho sai, entram o Júnior Itaguaí e o Márcio Alexandre, ótimos cantores, que estão lá desde 2016.” E garante: “Com um repertório daquele, a batucada presente e cantores muitos bons, sem dúvida, o Fundo de Quintal é referência para muitos grupos de samba.”

Atualmente, cabe a Bira Presidente, Sereno, Ademir Batera, Júnior Itaguaí e Márcio Alexandre levar toda essa história adiante.
 
O jornalista Marcos Salles segura LP e mostra a capa para o cantor Jorge Aragão. Os dois estão na rua, no Rio de Janeiro, e ao fundo se vê o mar

Marcos Salles, biógrafo do Fundo de Quintal, com Jorge Aragão

Robson Moreira/divulgação
 
 
A história do autor da biografia com o grupo começou em 1981, na Cinelândia. Durante um show, Milton Manhães veio falar com o repórter Marcos Salles.

“Você tem de ir à quadra do Cacique de Ramos ver o que acontece lá”, convidou. “Fui e nunca mais deixei de ir. Estava lá todas as quartas-feiras, porque aquilo era simplesmente maravilhoso”, diz Salles.

Os dois ficaram amigos, Manhães convidou o jornalista para trabalhar com ele na produção do disco “Divina Luz”. Depois, Salles dirigiu a temporada de shows no espaço Asa Branca. “Estava com o grupo nas festas, pagodes e em minha casa, onde o Ubirany ia muito”, finaliza.

Foto do grupo Fundo de Quintal na capa do livro sobre a banda

Foto do grupo Fundo de Quintal na capa do livro sobre a banda

Malê/divulgação
“FUNDO DE QUINTAL – O SOM QUE MUDOU A HISTÓRIA DO SAMBA”

• De Marcos Salles
• Editora Malê
• 448 páginas
• R$ 84,90