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Estado de Minas ARTES CÊNICAS

"Tudo", que coloca o dedo nas feridas latino-americanas, chega a BH

Peça do argentino Rafael Spregelburd adaptada e dirigida por Guilherme Weber tem sessões neste sábado (12/11) e domingo, no Grande Teatro do Sesc Palladium


11/11/2022 04:00 - atualizado 11/11/2022 00:42

A atriz Dani Barros é carregada pelo ator Vladimir Brichta e dá risada em cena da peça Tudo
Com Dani Barros e Vladimir Brichta no elenco, texto do argentino Rafael Spregelburd adota tom cômico e farsesco para tratar de temas como burocracia, arte e religião (foto: Flávia Canavarro/divulgação)

Por que todo estado vira burocracia? Por que toda arte vira negócio? Por que toda religião vira superstição? Cada uma dessas perguntas funciona como mote para as três fábulas que compõem a peça “Tudo”, que chega a Belo Horizonte para duas apresentações, neste sábado (12/11) e domingo, no Grande Teatro do Sesc Palladium.

Texto do dramaturgo argentino Rafael Spregelburd traduzido e adaptado por Guilherme Weber, também responsável pela direção, “Tudo” tem no elenco Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito. As fábulas morais – “como as de Esopo, mas sem os animais”, segundo Weber – investigam o indivíduo em confronto com o poder, a partir das três perguntas, que, em vez de respostas, suscitam outros questionamentos.

A primeira fábula apresenta um grupo de funcionários vivendo suas rotinas em uma repartição pública, quando começam a questionar valores impostos e alguns comportamentos absurdos. A segunda foca um jantar de Natal em que os convidados dão início à ceia somente após uma acalorada discussão acerca de valores absolutos e particulares do pós-modernismo. A terceira traz um casal e seu filho recém-nascido, que fica doente em uma noite de tempestade.

Weber explica que as três fábulas estabelecem entre si diferentes níveis de diálogo: por exemplo, o temático, relacionado às perguntas, e o estrutural, já que sutilmente alguns personagens se repetem nas distintas cenas. A peça, que estreou no 30º Festival de Curitiba e passou por Rio de Janeiro e São Paulo, está indicada em seis categorias do próximo Prêmio Cesgranrio de Teatro: melhor espetáculo, direção, ator, atriz, desenho de luz e cenografia.

Para o diretor, Spregelburd é uma das vozes mais originais da dramaturgia contemporânea, atento às questões latino-americanas, mas com um olhar profundamente universal e humano. Weber diz ter com ele uma relação já de alguns anos, em razão de uma pesquisa que desenvolve sobre textos assinados por autores de diferentes países da América Latina.

''Tudo' adquire, às vezes, o valor de um manifesto, mas que visa a efeitos sensoriais e ambíguos, e em nenhum momento cai na armadilha da arte que faz do discurso e do didatismo sua meta explícita'

Guilherme Weber, diretor


Dramaturgos latinos

O diretor diz tratar-se de uma pesquisa informal, mas que ganhou raízes em Buenos Aires, em Santiago (Chile) e em outras capitais de países latino-americanos. Em 2018, durante o processo de criação do espetáculo “Antes que a definitiva noite se espalhe em latino-américa”, com Felipe Hirsch, no Rio de Janeiro, a dupla convidou dramaturgos de vários países para que escrevessem textos curtos sobre a situação do continente.

“Na ocasião, falei para o Rafa que eu gostaria de montar ‘Tudo’ no Brasil, para ver de que maneira o país responderia a essas questões levantadas por um argentino e que se referem ao continente. O Brasil é uma espécie de lente de aumento da problemática da América Latina, uma espécie de fantasma no qual todo o continente vê seus medos e desejos, então quis entender de que maneira essas fábulas poderiam ecoar aqui”, destaca Weber.

Ele considera que, pela extensão e pela pluralidade do país, que qualquer espécie de trauma ou abalo continental ganha, aqui, uma proporção gigantesca. “A polarização entre esquerda e direita, a questão das fake news, isso no Brasil chega às raias do surrealismo; coisas que em países menores talvez se deem de maneira menos selvagem”, aponta.

'Vladimir Brichta é praticamente um Buster Keaton tropical, Dani Barros é nossa Giulietta Masina, Júlia é nossa Lucille Ball. Em cena, eles são violentos e tristes ao mesmo tempo'

Guilherme Weber, diretor


Formação da identidade

O diretor pontua que todo pensamento sobre ideologia implica uma relação estreita com o conceito de comunidade. É nessa medida que “Tudo” gera outras perguntas derivadas das que servem de mote a cada uma das três fábulas: o que, em dado momento, conforma a identidade de um povo? É algo casual? Somos uma sociedade que partilha o temor dos colapsos coletivos? Esses colapsos criam nossa identidade?.

“Claro que o teatro vai sempre expor isso tudo de maneira muito lúdica e incerta. Nesse sentido, ‘Tudo’ adquire, às vezes, o valor de um manifesto, mas que visa a efeitos sensoriais e ambíguos, e em nenhum momento cai na armadilha da arte que faz do discurso e do didatismo sua meta explícita”, diz Weber, sublinhando que a montagem é uma comédia apresentada em ritmo de farsa.

Ele destaca que Spregelburd é um iconoclasta, “um demolidor”, e que esse texto traduzido e adaptado para o público brasileiro propõe a observação por meio da evocação. “Ele, de certa forma, confronta o espectador com o desmonte de instituições, como a família, a religião, as representações de poder na política e na economia”, diz.

País dividido

Ao conceber uma montagem de “Tudo” no Brasil, o diretor quis entender como essas provocações poderiam reverberar em um país muito dividido, assolado, que assistia à ascensão da extrema-direita, com a religião ocupando, ainda que em um contexto deslocado, um lugar central nas discussões.

“A força de Bolsonaro vem de uma população treinada para aderir pela fé ao que não diz respeito à fé. Você vê tudo o que se tem noticiado a respeito de Cássia Kis, por exemplo, misturando fanatismo religioso com ataques à democracia com questões de gênero, tudo isso encampado por essa senhora como uma coisa só. É um povo desesperado por pertencimento, que adere à fé assuntos que não têm nada a ver com a fé”, aponta.

Weber observa que quando Spregelburd propôs as três perguntas que embasam “Tudo”, foi a convite de um festival de teatro alemão, em 2009, comemorativo pelos 20 anos da queda do muro de Berlim. A maneira que o dramaturgo encontrou para tratar de identidades e do colapso de ideologias foi falar da totalidade, segundo o diretor. 

Júlia Lemmertz, que vive uma mesma personagem, mas em situações distintas, na primeira e na segunda fábulas, diz que a atemporalidade das questões levantadas em “Tudo” foi o que a cativou no projeto.

“É um espetáculo que fala do nosso momento, uma peça que foi escrita há mais de 10 anos e que continua dialogando muito com nosso mundo, nossa sociedade, nossas questões mais prementes. ‘Tudo’ não se propõe a responder às perguntas que o balizam, pelo contrário, se desdobra em outras, ou seja, tem muita capilaridade”, afirma.

Ela ressalta, também, a capacidade que o texto e a montagem, como foi proposta, têm de dialogar com um público amplo. “A tendência é que cada espetáculo converse com um tipo de público. Eu sinto que ‘Tudo’ se dirige a uma audiência mais geral, seja mais intelectualizada ou mais popular. A recepção nos lugares por onde já nos apresentamos nos dá essa noção, do quanto ele é abrangente”, diz.

'Vejo o futuro próximo com otimismo, com esperança, mas sem tirar disso o peso de uma limpeza, um trabalho que precisa ser feito, até como resgate da nossa cidadania, da nossa potência como um Brasil múltiplo e feliz. Estamos quebrados e há muito o que consertar'

Julia Lemmertz, atriz


Ingrediente cômico

O humor é o ingrediente que torna a receita de “Tudo” agradável aos diferentes paladares, segundo a atriz. Júlia diz que o tom cômico e farsesco torna tudo “mais relaxado” e faz com que as pessoas consigam absorver a crítica, as observações mais duras, de forma mais suave, menos pessoal, mais contextual e generalizada.

Ela destaca que outro ponto de atração da montagem é o aspecto visual. “É um espetáculo muito bonito. Não é realista; praticamente não tem cenário, os corpos dos atores é que compõem a cena. Tem uma parte física que é muito potente”, observa. A atriz credita o êxito de “Tudo”, em grande medida, à direção sagaz de Guilherme Weber. “É um ator que eu amo, mas nunca tinha trabalhado com ele como diretor. Nessa função, Guilherme é genial, muito cativante”, comenta.

Sobre a montagem do elenco, a propósito, Weber diz que todos foram escolhidos por sua fisicalidade. Ele pontua que, em seu processo de escrita cênica, imaginou atores quase circenses, “clownescos”, o que se aplicaria principalmente à primeira fábula, onde a cena é quase toda vazia e a representação está nos corpos do elenco.

Assinatura corporal

“Optei por representar a burocracia opressiva de que a primeira fábula trata através do nada. Os arquivos não existem, as máquinas não existem, os carimbos não existem. Por isso precisava de atores que tivessem uma assinatura corporal muito forte”, aponta. “Vladimir Brichta é praticamente um Buster Keaton tropical, Dani Barros é nossa Giulietta Masina, Júlia é nossa Lucille Ball. Em cena, eles são violentos e tristes ao mesmo tempo”, completa.

Ele diz que outro traço marcante do texto de Spregelburd se relaciona com a atuação, à medida que debate grandes temas, atuais ou arquetípicos, por meio da dramaturgia de personagens. “Acho isso fascinante”, ressalta.

“O teatro contemporâneo vive uma certa tendência ao depoimento, à autoficção, ao relato biográfico, o que é interessante, mas gosto dos códigos da dramaturgia de personagens. Acho que existe uma corrente de dramaturgos latino-americanos que está fazendo isso muito bem, e o Rafa é, com certeza, um dos grandes expoentes”, opina.

Novas possibilidades

Júlia afirma estar muito feliz por chegar com “Tudo” a Belo Horizonte, especialmente depois do que chama de “momento tenebroso” vivido até o fim das eleições para presidente, no último dia 30. “A gente chega comemorando o teatro, as novas possibilidades de uma cultura mais pujante, mais livre, mais forte, poderosa e respeitada”, salienta.

Ela se diz esperançosa com a eleição de Lula e crê em novas, sólidas e duradouras políticas públicas para o teatro, para as artes em geral e para a educação. “Vejo o futuro próximo com otimismo, com esperança, mas sem tirar disso o peso de uma limpeza, um trabalho que precisa ser feito, até como resgate da nossa cidadania, da nossa potência como um Brasil múltiplo e feliz. Estamos quebrados e há muito o que consertar.”

“TUDO”

De: Rafael Spregelburd. Direção: Guilherme Weber. Com Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Claudio Mendes e Márcio Vito. Neste sábado (12/11), às 21h, e domingo (13/11), às 19h, no Grande Teatro do Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro, 31. 3270-8100). Ingressos para plateia 1 a R$ 90 e R$ 45 (meia) e para plateia 2 a R$ 70 e R$ 35 (meia), à venda na bilheteria do teatro e no site Sympla


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